Jornal Estado de Minas

PENSAR

Castro Rocha: 'Em ilusão, bolsonaristas serão confrontados pela realidade'


O bolsonarismo em dissonância cognitiva coletiva se aproxima de um momento traumático: o choque frontal com a realidade. A avaliação é do ensaísta João Cezar de Castro Rocha, professor titular de literatura comparada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), autor de livros como “Guerra cultural e retórica do ódio” (Editora Caminhos) e estudioso do comportamento da extrema direita no Brasil. Ele lembra que centenas de grupos de WhatsApp e Telegram mantidos para apoiar Jair Bolsonaro fizeram circular a notícia falsa de que, ao final de míticas 72 horas após a proclamação da vitória eleitoral de Lula – encerradas nesta quinta-feira, 3 de novembro - as Forças Armadas agiriam e, por meio de um golpe, manteria Bolsonaro no poder.





“Como a profecia falhou, a primeira reação é a racionalização do fracasso. É o que estão fazendo quando tentam buscar justificativas em leituras das mensagens de Bolsonaro pretensamente cifradas. E o que acontecerá quando a profecia falhar outra vez? Creio que haverá uma diáspora da maioria. Restará um núcleo radicalizado que seguirá até as últimas consequências”, considera o pesquisador, assinalando que esse núcleo deverá ser criminalizado e responsabilizado: “A maior parte tenderá a se afastar, porque profecias que não se cumprem em algum momento se esgotam: não é possível eternamente racionalizar ou adiar a sua realização”.


Nos eventos que se seguiram à eleição de Lula, há farto material para os estudos comportamentais sobre a extrema-direita brasileira, em dissonância cognitiva coletiva. A hipótese foi descrita por Castro Rocha em entrevista concedida em 21 de outubro ao caderno Pensar, do Estado de Minas, dias antes do segundo turno da eleição presidencial. “Há um fenômeno inédito, que é a produção de dissonância cognitiva coletiva deliberada, por meio das facilidades propiciadas pelo universo digital e pelas redes sociais”, afirma o pesquisador, que lançará livro em 2023 sobre a dissonância cognitiva. Segundo João Cezar de Castro Rocha, no circuito interno da midiosfera extremista, milhões de pessoas são aprisionadas e passam a viver numa realidade paralela.  


Confirmando a análise do pesquisador sobre a criação de uma realidade paralela, foram registradas nos últimos com reações extremas de apoiadores do atual presidente da República, derrotado nas urnas no último domingo. Alguns vibraram, se ajoelharam e até choraram com a leitura do “ofício” que informava a “prisão” de Alexandre de Moraes, - o que nunca ocorreu; anunciaram a “eleição de Bolsonaro com 61% dos votos”, o que, por óbvio, também jamais aconteceu. Outros bolsonaristas também chegaram a orar, em rodovia federal, para um pneu ao centro do círculo da fé.





 


“Todos esses episódios são a demonstração concreta de que essas pessoas não estão em erro. Mas recordando a distinção de Freud, estão em ilusão, pois a ilusão é sempre a projeção do próprio desejo”, acredita Castro Rocha, em referência ao ensaio de psicologia social “O futuro de uma ilusão”, em que o pai da psicanálise demonstra que o erro está no campo do objetivo e pode ser demonstrado. Contudo, para compreender a sociedade, o importante é compreender a ilusão, a projeção de um desejo. “Quando estou diante da ilusão, pouco importa se posso demonstrar para a pessoa iludida que do ponto de vista objetivo, há um erro. Trata-se da projeção de um desejo. E o desejo é de que as teorias conspiratórias e as fake news que circulam na midiosfera extremista, e que são confirmadas pela rádio Jovem Pan, sejam a verdade”, lembra o pesquisador.


Para João Cezar de Castro Rocha, na dinâmica própria desses movimentos messiânicos, se há um líder que muito promete e nunca cumpre, o próprio líder pode se tornar o bode expiatório dos seguidores. “Talvez estejamos assistindo a um momento dramático, em que os bolsonaristas se revelarão mais radicais e corajosos do que o covarde presidente. O presidente é um covarde, que só pensa em salvar a própria pele e a família. O presidente está usando a radicalização dos bolsonaristas fanatizados pela midiosfera extremista para ter um poder de barganha maior e tentar obter algum tipo de imunidade jurídica”, avalia o estudioso do comportamento da extrema direita.

A seguir, a entrevista de Castro Rocha com uma análise do que foi registrado no país logo após o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) decretar a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), ainda na noite do último domingo.



João Cezar de Castro Rocha (foto: Divulgação)

 O que mais o impressionou na midiosfera bolsonarista após a vitória de Lula nas urnas?

A nossa hipótese de pesquisa para o diagnóstico se reforça. Há um fenômeno inédito, que é a produção de dissonância cognitiva coletiva deliberada, por meio das facilidades propiciadas pelo universo digital e pelas redes sociais. Isso é feito no circuito interno de uma midiosfera extremista, um circuito comunicativo, em cujo interior milhões de pessoas são aprisionadas e passam literalmente a viver numa realidade paralela. Todos esses episódios que mencionei - a “prisão” de Alexandre de Moraes, a “eleição” de Bolsonaro, o grupo que reza para o pneu no meio da estrada, todos eles, são a demonstração concreta de que essas pessoas não estão em erro. Mas recordando a distinção de Freud, estão em ilusão, pois a ilusão é sempre a projeção do próprio desejo. Então esse diagnóstico, infelizmente, revelou-se muito acertado.

 Em sua avaliação, haverá algum momento que essas pessoas vão compreender que a eleição acabou e que Jair Bolsonaro perdeu?

Neste momento nos encontramos próximos a um momento traumático. O problema de todo movimento messiânico é que o messianismo implica em abrir uma porta a um futuro que deve chegar. Quando o movimento messiânico é de tipo milenarista, quando afirma o fim dos tempos ou possui uma data exata em que o acontecimento decisivo e redentor deva ocorrer, o momento traumático é quando a data chega, e esse evento decisivo não ocorre. Isso aconteceu hoje (quinta-feira, 03 de novembro) no Brasil. Havia as míticas 72 horas: como projeção do desejo de Bolsonaro permanecer no poder por meio de uma ditadura, difundiu-se nos grupos bolsonaristas de WhatsApp, que havia um prazo mítico, depois do qual se a convulsão social permanecesse, as Forças Armadas seriam obrigadas a agir, movidas por uma leitura terraplanista do artigo 142 da Constituição. É uma lógica de alienista. A profecia falhou.


E agora que a profecia falhou, qual é o próximo passo, racionalizar a derrota, a exemplo do que revelou em 1956, Leo Festinger, quando publicou o livro “When prophecy fails” (Quando a profecia fracassa)?

Sim, o livro é sobre um caso em Chicago, de 1954, quando a dona de casa, Dorothy Martin, alegava receber supostas mensagens de extraterrestre de um planeta chamado Clarion. Em torno dela formou-se a comunidade dos 7 Raios, que acreditava que em 21 de dezembro de 1954, ocorreria um dilúvio de proporções bíblicas destruiria boa parte da Terra. Mas um disco voador salvaria os adeptos da comunidade. Na anunciada data, o disco voador não pousou e tampouco ocorreu o dilúvio. Martin anunciou, então, ter recebido novas mensagens do planeta Clarion de que o dilúvio não ocorrera pela quantidade de energia positiva concentrada pelos integrantes da fraternidade. Em outras palavras, em lugar da profecia fracassar, o fracasso da profecia foi racionalizada e os adeptos da seita se tornaram salvadores do mundo.





Então, estamos neste momento de uma situação traumática para o bolsonarismo: a profecia falhou, as primeiras 72 horas já passaram, a primeira reação é a racionalização, é o que estão fazendo quando tentam buscar justificativas em leituras “cifradas” das mensagens de Bolsonaro. E o que acontecerá quando a profecia falhar outra vez? Creio que haverá uma diáspora da maioria e um núcleo radicalizado que seguirá até as últimas consequências. Esse núcleo precisará ser criminalizado e responsabilizado. E a maior parte, tenderá a se afastar, porque profecias que não se cumprem em algum momento se esgotam, pois não é possível eternamente racionalizar ou adiar a sua realização.

E o mais importante: o objetivo da extrema direita é manter sob assédio permanente às instituições, a intenção é desacreditá-las, pois a sociedade não aceitará que desacreditadas, imponham freios e contrapesos à pulsão totalitária fundamentalista do bolsonarismo. Agora há um segundo passo possível, que está no livro de Leo Festinger. Houve tanta cobertura da imprensa sobre o caso Martin, que se os organizadores da seita tivessem sabido explorá-la, não seria o final mas um novo começo da seita, com uma expansão do número de membros pela pura exposição. Então a mídia não deve dar destaque a esses atos golpistas. Deixa isso para a Jovem Pan, pois o público é da bolha.

O que pode ocorrer com o líder messiânico desses movimentos quando as profecias anunciadas nunca se cumprem?

Na dinâmica própria desses movimentos, se há um líder que muito promete e nunca cumpre, o próprio líder pode se tornar o bode expiatório do movimento. Talvez estejamos assistindo a um momento dramático, em que os bolsonaristas se revelarão mais radicais e corajosos do que o covarde presidente. O presidente é um covarde, que só pensa em salvar a própria pele e a família. O presidente está usando a radicalização dos bolsonaristas fanatizados pela midiosfera extremista para ter um poder de barganha maior e tentar obter algum tipo de imunidade jurídica. Mas para fazer isso ele está destruindo a vida de muitas pessoas. Muitas delas não se recuperarão da vergonha do fracasso e muitas delas enfrentarão pesadas consequências do ponto de vista jurídico.





Os oficiais da Polícia Rodoviária Federal e das polícias militares estaduais que bateram continência para os atos golpistas deverão ser expulsos de sua corporação. Muitos empresários que apoiaram terão de se explicar. É um movimento organizado: tem sistema de som com microfone nos bloqueios, há uma logística de retaguarda, comida, água, telefones, contato permanente entre eles. Quem está financiando? Não é espontâneo. Quais são os empresários que estão financiando? Então a família Bolsonaro deseja usar as manifestações para obter alguma vantagem jurídica.

 

O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), deseja usar para barganhar o Orçamento secreto. Os partidos do Centrão desejam usar para aumentar as negociações no futuro governo. Todos estão usando as manifestações em interesse próprio. Quem no final vai ficar na ponta sem proteção?

Os manifestantes orgânicos. Tirando uma minoria fanatizada, a grande maioria vai retirar agora o seu apoio a Bolsonaro, que será simbolicamente sacrificado. Ele já fez isso em 7 de setembro de 2021, quando levou uma massa de pessoas para se fosse o caso, os manifestantes estavam dispostos a se sacrificar para impor uma ditadura. Bolsonaro voltou atrás, assinou uma carta constrangedoramente escrita por Michel Temer e teve de ligar para pedir desculpas a Alexandre de Moraes. Agora, Bolsonaro já voltou atrás e pediu às pessoas: “Não pensem mal de mim”.

 

 

Qual o propósito dos atos dos bolsonaristas que bloquearam estradas e saíram às ruas para protestar contra a eleição de Lula?

A extrema direita pretende manter o cotidiano da sociedade em permanente assédio para provocar ondas artificiais, com o propósito de transformá-las em realidade política e colonizar nosso pensamento. Vamos nos libertar. O governo de transição já começou. É um movimento de uma minoria, que não tem condição objetiva de dar golpe e está, cada vez mais, lançada ao ridículo: primeiro celebraram a “prisão” de Alexandre de Moraes, depois celebraram a “vitória de Bolsonaro com 61% dos votos”, depois rezaram para um pneu no meio de uma estrada. Então é preciso celebrar a vitória da frente ampla da democracia, inundar as redes sociais e nosso imaginário com projetos de reconstrução do país, que pode, agora, se tornar a vanguarda mundial da preservação ambiental. Se isso acontecer, o Brasil muda, poderá obter recursos em proporções inimagináveis. Vamos celebrar. Não vamos nos tornar reféns de uma minoria radicalizada, lobotomizada, que só quer viver numa midiosfera extremista. Vamos fazer o contra-movimento de alegria, amor, utopia.