Jornal Estado de Minas

PENSAR

Primeira leitura: 'Terra sangria', de Alexandre Marino

O mapa do inferno


O que é o inferno, doce criança? 
Há tantos infernos 
em teu doce paraíso. 
O inferno pode ser esse rio diáfano 
cheio de vômitos das máquinas 
e peixes assassinados. 




O inferno pode ser a casa ao lado. 

Queres fugir do inferno, triste criatura? 
Não adianta correr pelas ruas  
que percorremos todos os dias 
como se nos levassem ao futuro. 
O inferno não tem endereço fixo 
nem convida a uma visita. 
O inferno pode ser a única saída. 

Conheces o inferno, garota melancólica?
Há meio século se dizia 
que o mundo seria um inferno 
em cinquenta anos. E agora, 
que ares infernais te sufocam, 
só falta meio século 
para que o inferno aflore. 

Ah, bela menina, o inferno
não é um lugar desconhecido, 
nem aquela dor que te alucina, 
mas este mundo que te rodeia, 
os sonhos que te sonharam, 
todas as histórias que contaram 
enquanto, no berço, dormias. 




 
 
 
 

Pistas 


Deixamos pistas por toda parte. 
Sangue coagulado na calçada, 
um olhar desesperado que perdura 
sobre a cegueira da noite escura, 
restos de uma fogueira que arde. 

Deixamos pistas por toda parte, 
uma caixa de pandora cheia de fúria, 
sobras de amor em obras de arte, 
sinais de um grafite sob o piche, 
cicatrizes de torturas renovadas. 

Suores, silêncios, lágrimas ressecadas. 
Deixamos pistas por toda parte. 
Nossas pegadas em tardes de chuva, 
prazeres inconfessos, pequenos pecados, 
a sombra imóvel no local da partida. 





Se deixamos pistas por toda parte, 
por que tantas memórias esquecidas? 
De nossos sonhos restaram pesadelos, 
dos desejos, uma esperança esmorecida. 
Jardins fossilizados não exalam perfumes. 

Há um adeus a pairar no horizonte, 
a dor contagiosa de alguém que chora, 
um inocente à espera de um algoz. 
O planeta de volta ao ponto de partida 
e o amor que muda as cores da aurora. 

Deixamos pistas por toda parte. 
Mistérios com uma dose de tristeza, 
histórias em que ninguém acredita, 
uma beleza frágil e aflita. 

 
 
 
 

O pássaro 
em pânico 


O pássaro invadiu a sala. 




O pássaro em pânico 
choca-se contra os limites 
que o separam do nada 
e subvertem seu poder 
de buscar o infinito.

O pássaro sobrevoa 
as carambolas podres, 
a camisa manchada de sangue 
abandonada no sofá 
e o brilho dos cacos de vidro 
sobre o ladrilho. 

Sem espaço, o pássaro 
percorre o corredor, 
repele as flores murchas 
no vaso quebrado, 
e ao entrar no quarto 
pela fresta da porta, 
o pássaro ignora 
a TV narrando crimes 
à mulher morta. 

Na cama ensolarada 
ela mira a paisagem 
onde os pássaros cantam 
sem compreender 
seus reflexos nas vidraças. 
 
 
 

Pêndulos 


Não é minha esta cidade 
nem seu colo de trapos enlameados. 




Uma pedra vaga na rua, talvez 
anseie por minha pisada. 
Também já não é a mesma, 
depois de tantas chuvas, 
tanta fuligem, 
tantas solidões. 

A cidade caminha trôpega 
sobre filhos e agregados, 
um meteoro os ameaça. 
Esta cidade não cabe em meu coração, 
é feita de barulhos demais, 
silêncios demais, 
gente demais nas ruas e porões, 
sem saber aonde vai. 

Prédios, meros esqueletos 
ao meu olhar estranho. 
Outros passantes admiram 
sua portentosa grandeza, 
sua obsessão espelhada, 
seu mau-olhado. 




Há mofo e rachaduras 
no concreto sedutor 
que abriga outros esqueletos, 
enforcados, feito pêndulos, 
contando as horas 
do esquecimento.  
 
  
 

Sobre o autor e o livro

Mineiro de Passos, Alexandre Marino começou na literatura ainda adolescente, quando publicou contos e poemas na revista mimeografada Protótipo, que criou e editou ao lado de outros escritores em sua cidade natal. Jornalista e escritor, mora em Brasília e trabalhou nas redações de O Estado de S. Paulo, Jornal do Brasil e Correio Braziliense, entre outros. “Terra sangria”, o oitavo livro, foi escrito durante a pandemia e com a utilização da poesia como “ferramenta contra o pesadelo”. Na apresentação do livro, Maria Valéria Rezende afirma: “Equilibrista em corda bamba, lá no alto, muito alto, vai o poeta, passo a passo, transformando em poesia as incertezas, as dores, mas sobretudo as esperanças, as pequenas luzes que rebrilham no meio da treva, da neblina que nos cega.”
 
 
“Terra sangria”
Alexandre Marino
Penalux Editora
102 páginas
R$ 42
“Sempre um Papo” com autógrafos do autor neste sábado (5/11), das 11h às 14h, na Livraria Quixote (Rua Fernandes Tourinho, 274, Savassi, Belo Horizonte) 
O livro pode ser encontrado também no site: editorapenalux.com.br