O mapa do inferno
O que é o inferno, doce criança?
Há tantos infernos
em teu doce paraíso.
O inferno pode ser esse rio diáfano
cheio de vômitos das máquinas
e peixes assassinados.
O inferno pode ser a casa ao lado.
Queres fugir do inferno, triste criatura?
Não adianta correr pelas ruas
que percorremos todos os dias
como se nos levassem ao futuro.
O inferno não tem endereço fixo
nem convida a uma visita.
O inferno pode ser a única saída.
Conheces o inferno, garota melancólica?
Há meio século se dizia
que o mundo seria um inferno
em cinquenta anos. E agora,
que ares infernais te sufocam,
só falta meio século
para que o inferno aflore.
Ah, bela menina, o inferno
não é um lugar desconhecido,
nem aquela dor que te alucina,
mas este mundo que te rodeia,
os sonhos que te sonharam,
todas as histórias que contaram
enquanto, no berço, dormias.
Pistas
Deixamos pistas por toda parte.
Sangue coagulado na calçada,
um olhar desesperado que perdura
sobre a cegueira da noite escura,
restos de uma fogueira que arde.
Deixamos pistas por toda parte,
uma caixa de pandora cheia de fúria,
sobras de amor em obras de arte,
sinais de um grafite sob o piche,
cicatrizes de torturas renovadas.
Suores, silêncios, lágrimas ressecadas.
Deixamos pistas por toda parte.
Nossas pegadas em tardes de chuva,
prazeres inconfessos, pequenos pecados,
a sombra imóvel no local da partida.
Se deixamos pistas por toda parte,
por que tantas memórias esquecidas?
De nossos sonhos restaram pesadelos,
dos desejos, uma esperança esmorecida.
Jardins fossilizados não exalam perfumes.
Há um adeus a pairar no horizonte,
a dor contagiosa de alguém que chora,
um inocente à espera de um algoz.
O planeta de volta ao ponto de partida
e o amor que muda as cores da aurora.
Deixamos pistas por toda parte.
Mistérios com uma dose de tristeza,
histórias em que ninguém acredita,
uma beleza frágil e aflita.
O pássaro
em pânico
O pássaro invadiu a sala.
O pássaro em pânico
choca-se contra os limites
que o separam do nada
e subvertem seu poder
de buscar o infinito.
O pássaro sobrevoa
as carambolas podres,
a camisa manchada de sangue
abandonada no sofá
e o brilho dos cacos de vidro
sobre o ladrilho.
Sem espaço, o pássaro
percorre o corredor,
repele as flores murchas
no vaso quebrado,
e ao entrar no quarto
pela fresta da porta,
o pássaro ignora
a TV narrando crimes
à mulher morta.
Na cama ensolarada
ela mira a paisagem
onde os pássaros cantam
sem compreender
seus reflexos nas vidraças.
Pêndulos
Não é minha esta cidade
nem seu colo de trapos enlameados.
Uma pedra vaga na rua, talvez
anseie por minha pisada.
Também já não é a mesma,
depois de tantas chuvas,
tanta fuligem,
tantas solidões.
A cidade caminha trôpega
sobre filhos e agregados,
um meteoro os ameaça.
Esta cidade não cabe em meu coração,
é feita de barulhos demais,
silêncios demais,
gente demais nas ruas e porões,
sem saber aonde vai.
Prédios, meros esqueletos
ao meu olhar estranho.
Outros passantes admiram
sua portentosa grandeza,
sua obsessão espelhada,
seu mau-olhado.
Há mofo e rachaduras
no concreto sedutor
que abriga outros esqueletos,
enforcados, feito pêndulos,
contando as horas
do esquecimento.
Sobre o autor e o livro
Mineiro de Passos, Alexandre Marino começou na literatura ainda adolescente, quando publicou contos e poemas na revista mimeografada Protótipo, que criou e editou ao lado de outros escritores em sua cidade natal. Jornalista e escritor, mora em Brasília e trabalhou nas redações de O Estado de S. Paulo, Jornal do Brasil e Correio Braziliense, entre outros. “Terra sangria”, o oitavo livro, foi escrito durante a pandemia e com a utilização da poesia como “ferramenta contra o pesadelo”. Na apresentação do livro, Maria Valéria Rezende afirma: “Equilibrista em corda bamba, lá no alto, muito alto, vai o poeta, passo a passo, transformando em poesia as incertezas, as dores, mas sobretudo as esperanças, as pequenas luzes que rebrilham no meio da treva, da neblina que nos cega.”
“Terra sangria”
Alexandre Marino
Penalux Editora
102 páginas
R$ 42
“Sempre um Papo” com autógrafos do autor neste sábado (5/11), das 11h às 14h, na Livraria Quixote (Rua Fernandes Tourinho, 274, Savassi, Belo Horizonte)
O livro pode ser encontrado também no site: editorapenalux.com.br