Jornal Estado de Minas

PENSAR

Em 'Alma corsária', Claudia Roquette-Pinto vislumbra a fragilidade da vida

Rafael Fava Belúzio*
Especial para o EM



“Alma corsária” é uma obra que traz o vigor sonoro e imagético da poesia de Claudia Roquette-Pinto, além de avançar na densidade com que a poeta trabalha recursos conceituais, havendo destaque para a noção de corpo. A escritora carioca, nascida em 1963 e tendo morado nos Estados Unidos no final da adolescência, publica seu primeiro livro na década de 1990 e participa de uma safra relevante de autores que segue o tratamento erudito encontrado na década de 1980. Formada em tradução literária pela PUC-RJ, onde foi aluna de Paulo Henriques Britto, a escritora está razoavelmente próxima de uma geração que contém nomes como Antonio Cicero, Carlito Azevedo, Eucanaã Ferraz, Prisca Agustoni e Sérgio Alcides, embora cada um deles desenvolva linhas de força relativamente distintas entre si. No caso específico de Claudia Roquette- Pinto, é possível vislumbrar, entre outras questões, uma poética corpórea voltada para a percepção da fragilidade da vida e da observação de que no interior do mais pequeno – peito, jardim, obra de arte – habita a flor do espaço mais imenso.





A questão física é aguda em “Alma corsária”, livro que sai 17 anos depois do último volume de poemas de Claudia Roquette-Pinto. Com cerca de 60 textos, é a mais extensa reunião de versos da autora. Ao todo, conta seis seções: “Alma corsária”, “Na estrada”, “As horas nuas”, “Poemas do Rio”, “Escritos da pandemia” e “Resumo da ópera”. Nos conjuntos, vale destacar as referências literárias, por vezes tensionando a liberdade de Walt Whitman e a rítmica regular; as menções à cidade natal da artista, o Rio de Janeiro; a presença de calor, fogo, sol, verão; um campo semântico a sugerir desintegração, queda, ruína, naufrágio; bem como a morbidez política da pandemia. Em “Poema para o dia de hoje”, o eu lírico escancara: “As camisas amarelas de um orgulho / genocida vicejando em suas bolhas, / nas escolhas do Algoz, / senhor do engulho, / escrituras às escuras na bandeja”. O tema físico continua pulsando em Claudia Roquette-Pinto, contudo agora dizendo também sobre os horrores genocidas vistos durante a pandemia de Covid-19, quando aquilo que não era apenas uma gripezinha assassinou muito mais de 666 mil brasileiros.

O trato corporal é um tema com variações encontrado em todos os livros poéticos da autora, desde o primeiro, “Os dias gagos” (1991), que apresenta uma seção chamada “Visão e tato”. Em “Saxífraga” (1993), a mão traça muitos versos com quebras inusitadas, de maneira a gerar efeitos potentes: “para escrever no espaço: o / arco do braço mais / ágil que o sobressalto / das ideias em fuga”. “Zona de sombra” (1997) ganha “a caminho”, espécie de máquina do mundo revisitada onde se pode ouvir o sutil deslizar sibilante da tez em “o suave / subido roçar de / dedos”. “Corola” (2002) segue adensando essa lírica sensível, delineando matizes, a exemplo do contorno ontológico das linhas: “De mãos postas o louva-a-deus ora, / monge de primeira hora, longe do coro das cigarras / enquanto a tarde esbarra / na noite”. E o corpo é uma tópica vista, ademais, no impactante “Margem de manobra” (2005), reunião de versos a provocar um enorme estrondo no contexto literário brasileiro e ocasionar novos passos na estética de Claudia Roquette-Pinto.

Essa poeta

Em tradições da lírica brasileira, o tratamento dado ao corpo é muito contundente em alguns nomes. Adélia Prado realiza tensões entre o sagrado e o profano, por exemplo, na maneira como olha para o Cristo crucificado. Ana Cristina Cesar, por sua vez, em uma conjuntura ligada à poesia marginal, lança “A teus pés” – ateus pés? – e lida com questões ontológicas, em atitude bem menos religiosa. Intensifica, na verdade, o olhar para o físico feminino, criando ficções da intimidade ao supostamente falar de suas partes íntimas, mas com um estilo muito próprio, capaz de produzir espanto em plena ditadura militar e ao mesmo tempo parecer, aos olhos de hoje, até relativamente contida.





A voz de Claudia Roquette-Pinto, quando escutada já nos anos 1990, não guarda tanto a verve de religiosidade encontrada em Adélia Prado, e parece dizer menos de si mesma do que antes dizia Ana C. Na literatura da autora de “Alma corsária”, a condição da mulher, a sua visão de mundo, e ainda a condição singular dessa mulher, isso tudo surge de formas bem matizadas nos poemas. Nos livros iniciais, o tom é mais ameno, abstratizante. Está certo que o sujeito lírico não raro demarca o seu traço feminino ao olhar para a pessoa do outro. No entanto, o lançamento do poema “Sítio”, em 2001, na revista Inimigo Rumor, e, depois a inclusão desse texto na abertura de “Margem de manobra”, em 2005, promove um impacto decisivo na literatura brasileira contemporânea. É como ir de certa sutil afinação do sublime para uma clave mais afeita ao cotidiano. Aparece a violência, a bala perdida.

A Claudia Roquette-Pinto anterior a 2001 e suas construções de jardins da intimidade são um tanto próximas de nomes posteriores, a exemplo de Ana Martins Marques. Versos encontrados em “A vida submarina” dizem o vasto mundo a partir de espaços singelos, algo que muito lembra a poética de “Zona de sombra”. Entretanto, a fúria corpórea de “Sítio” e “Margem de manobra” parece mais alinhada a autoras na esteira de Angélica Freitas. Sem dúvida, a relação entre corpo e violência é diferente em cada uma dessas criadoras. Em Claudia Roquette-Pinto, por vezes há mais um espanto, um tipo de alumbramento negativo diante da atrocidade que se apresenta; em Angélica Freitas de “O útero é do tamanho de um punho” e em uma geração de poetas posteriores aos eventos de 2013, a brutalidade é muito mais rascante sobre o próprio eu poético. Não devo deixar de dizer, todavia, que ficar tecendo esses percursos historiográficos pode trazer lá os seus problemas, visto que a lírica de uma escritora em particular e as séries literárias em geral tendem a mais sutilezas e vieses do que seria admissível aqui alinhavar. De todo modo, o poema “Sítio” parece um ponto fundamental: entre Ana Cristina Cesar de “26 poetas hoje” e Angélica Freitas de “As 29 poetas hoje”, os versos dessa poeta, Claudia Roquette-Pinto, vararam a cabeça da poesia brasileira. Agora, em “Alma corsária”, o eu lírico de Claudia Roquette-Pinto, ou talvez caiba dizer o seu corpo lírico, segue retrabalhando, como se vê em “Maçarico”:

Esse sol onipresente que não me deixa pensar
em coisas além do corpo, essa sandice
imprimindo seu brilho tenso,
impiedoso
sobre toda e qualquer superfície
em que se encosta, esse suor
que reduz o mundo a um chiste
sideral – e de mau gosto –
esse estupor

Logo na abertura, o poema focaliza: “Esse sol onipresente não me deixa pensar / em coisas além do corpo”. Esta última palavra recebe aqui tonalidades ontológicas, epistemológicas, políticas, éticas, estéticas. A quebra do verso tensiona uma leitura mais intransitiva e metafísica (o sol onipresente, essa espécie de Deus, não deixa pensar) e uma leitura em que o eu textual não pensa além do seu possível corpo humano. Essa face demasiadamente humana impõe, corporalmente, limites ao conhecimento; há uma razão corpórea, crítica e vista diante da impossibilidade de se pensar além. Ademais, existe uma dimensão ambiental, sentida no suor causado pelo maçarico solar que grita na Terra contemporânea assolada por tragédias ecológicas – o sal do suor é político. E a posição da poeta frente ao desastre biológico é de partilha do espanto, incomodada com o estupor.

Inclusive, é conformado corporalmente o ritmo do poema ao trabalhar recursos ligados a sensações. Sendo estratégia recorrente na poética de Claudia Roquette-Pinto, incide aqui o uso virtuosístico de sons vocálicos (a exemplo do som /i/ a expressar luminosidade em “sandice / imprimindo seu brilho tenso, impiedoso”) e consonantais (a exemplo do som /s/ a soar o suor em “superfície / em que se encosta, esse suor que reduz”). Além disso, há propriamente sinestesias (como em “brilho tenso”, no cruzamento da sensação visual, “brilho”, com a táctil, muscular, “tenso”) e jogos antitéticos a aproximar grandezas de proporções opostas (notado no “chiste / sideral”). Sem falar na organização de metro e imagem, a imprimir sobre os ouvidos e na mancha gráfica da página dois movimentos de queda, aproximando o máximo e o mínimo: os quatro primeiros versos (com, respectivamente, 15, 12, 8 e 4 sílabas métricas) e os cinco últimos (com 9, 8, 8, 7 e 4) dançam as diminuições de extensão, as dessonorizações, os afunilamentos, criando blocos pontiagudos de texto, feito raios que se descolam do Sol e imprimem sobre a superfície lírica ínfima.




Por uma poesia reunida

O que não é ínfima é a poética de Claudia Roquette-Pinto e faz muito bem para a literatura o aparecimento do novo livro. Sem falar que, hoje, é difícil encontrar as primeiras obras da escritora, mesmo em sebos e lojas especializadas. Quem sabe haja nesse instante ocasião para o lançamento de uma poesia reunida. Outros poetas da geração também poderiam facilitar o acesso aos seus livros, colocando as raridades em volumes de boa circulação, reapresentando as trajetórias. Assim, o leitor compreenderá ainda mais o percurso de um corpo lírico tão particular e de uma geração bastante vigorosa.

*Rafael Fava Belúzio é doutor em estudos literários (UFMG) e autor de “Uma lira de duas cordas (ensaio sobre a poesia de Álvares de Azevedo)” e “1929” (crônicas)



“Alma corsária”
• Claudia Roquette-Pinto
• Editora 34
• 144 páginas
• R$ 52
• Lançamento neste sábado (19/11), às 11h30, na Livraria e Editora Scriptum (Rua Fernandes Tourinho, 99, Belo Horizonte), com autógrafos da autora e sarau com a presença de Adriana Versiani, Ana Caetano, Carlos de Brito, Fabrício Marques, Kiko Ferreira, Laura Belém, Maria Esther Maciel, Maurício Guilherme, Mário Alex Rosa e Paula Vaz

Três poemas

“Casulo”

Debaixo de uma catedral de folhas,
Sem saber nem precisar quem a erguera,
Sob a anêmona do vento nas folhas
E o que respira agora pela primeira
Vez, eu me deito, contemplando as folhas,
A espinha reta de encontro à madeira
Dura e encerada de um banco,
Manhã alta.
Em meio a tantas folhas
O coração, livre de escolhas,
A um só tempo cheio e nulo.
Nada me falta,
Enquanto arfam as folhas.
Agora e neste aqui,
Pleno casulo.

*
“Outono na montanha”
(Para minha mãe)

No tempo em que eu escrevia sobre a serra das cigarras
Nada me faltava
(mas tanto, em mim,
era desejo).





Fagulhas que o vento põe na água
Zumbido as mamangavas
Cicio das agulhas dos pinheiros.
Hoje vejo
Os frutos corroídos dos meus velhos enredos
Caindo, um por um,
Na grama alta.
E só você me falta.

*

“Sangue de um poeta”

Sempre que o mar, esse bicho
De ventre e visgo de prata
Infla suspira refrata
Rodopiando nas patas,
Sempre que a rosa acende
Sua trama de giz na toalha
E entalha, opalescente,
Em lenta espiral de nata,
E uns panos coloridos
Ondulando na calçada
Gritam “borboletas!”, gritam
E fogem, batendo asas,

Vem o dedo pétreo, em riste,
Estancar a hemorragia
De tudo o que assola e insiste.
Da poesia, que ameaça.