Jornal Estado de Minas

PENSAR

Poeta mineiro Ricardo Aleixo recria memórias em dois novos livros


O artista intermídia e pesquisador de literaturas, outras artes e mídias Ricardo Aleixo se apresenta ao mundo a partir da poesia. A dedicação às dimensões verbal, vocal e visual das palavras mostra como elas são constituintes da obra do artista. No entanto, no que ele chama de “inversão de prioridades”, Aleixo assumiu, em 2022, a tarefa de dedicar-se à prosa, lançando-se na escrita simultânea de dois livros que chegam às livrarias nas próximas semanas: “Sonhei com o anjo da guarda o resto da noite – Vidapoesia” (Todavia) e “Campo Alegre” (Editora Conceito), o 37º da coleção “BH: A cidade de cada um”, que será lançado em 10 de dezembro, às 11h, na Outlet do Livro. Também haverá lançamento das duas obras na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), da qual Ricardo Aleixo é convidado para o painel “O corpo de imagens”, no dia 24, às 19h, na cidade fluminense.




 
Em uma temporada vivendo na cidade do Rio de Janeiro, Ricardo Aleixo recuperou a rotina de escrita que se dá a partir das memórias. A prosa demonstra que a poesia não só constitui a base da obra do escritor, como é fundamental para a formação dele próprio como sujeito. O neologismo ‘vidapoesia’ dá conta da palavra como a confluência da linguagem e da existência do artista.

As obras são carinhosamente chamadas por Aleixo de “livros maninhos”, e nasceram mesmo de forma fraternal. “Por vezes, eu acordava de madrugada ou muito cedo, escrevia três, quatro, cinco laudas, às vezes oito, e ficava sem saber para qual livro era. Entrei em momentos de bastante dúvida: isso fica melhor no ‘Campo Alegre’ ou melhor no ‘Sonhei com o anjo da guarda o resto da noite’. Era curioso porque eu dizia para as pessoas que eu estava escrevendo um livro de memórias e um livro sobre o Campo Alegre, até que me dei conta de que estava escrevendo dois livros de memórias”, disse ao Pensar acerca da tarefa de escrever dois livros ao mesmo tempo. 

Campo Alegre, bairro da Zona Norte de Belo Horizonte, é o lugar do qual Aleixo olha para o mundo, em movimentos de saída e retorno àquele território, de modo que as histórias do lugar e as lembranças do poeta se fundem. “São memórias do bairro, as minhas  memórias e as minhas memórias no bairro”, define.





Apesar de terem como substrato comum a trajetória de Ricardo Aleixo, os dois livros se diferem na forma, embora preservem ambos o estilo experimental da linguagem. Em “So- nhei com o anjo da guarda”, os textos assu- mem um caráter mais ensaístico, em que o autor revela os caminhos artísticos que tri- lhou, com passagens que permitem saber de onde nasce o interesse pela poesia, e propõe reflexões sobre o fazer artístico. 

Uma das passagens saborosas é quando conta que a paixão pela poesia foi despertada por um professor não de literatura, como se poderia supor, mas de matemática. A narrativa não se prende à linearidade, embora o autor recupere momentos vividos na infância, na juventude e na vida adulta. Aleixo respeita o fluxo da memória, apesar de não deixar de lado a relação de causalidade dos encontros, leituras e experiências vividas. Já em “Campo Alegre”, os textos vêm na forma de pequenas crônicas, entremeadas com entrevistas e com documentos que contam a história do bairro.    
 
“O texto tem a marca dele. É um texto as- sim, digamos, até experimental. Ele mistura memória, entrevista, memorando da compra da casa pelo pai, documentos, tem um pouco de poesia. Faz uma mistura que se encaixa no espírito da coleção de falar com afeto de um lugar”, avalia o editor e escritor José Eduardo Gonçalves, idealizador da coleção “BH. A cida- de de cada um”.

O título 37 da coleção não foge ao ponto em comum entre todos eles: o afeto ao lugar como linha condutora da escrita. Com isso, Ricardo Aleixo conta a própria história e da família, com destaque nobre para a mãe, Íris, o pai, Américo, e a irmã, Fátima. Também reserva boas histórias de pessoas ilustres do bairro, como os artistas Paulo Nazareth e Santone Lobato, que ganham capítulos próprios. 





“Eu inventei o Campo Alegre como Manuel Bandeira inventou Pasárgada, Jorge Amado cartografa Salvador (...), Luiz Gonzaga redese- nhou o sertão, Nicolas Behr afirma ter inventado Brasília, Manoel de Barros desaprendeu o Pantanal, Wander Piroli recontou a Lagoinha (...)”, escreve o autor em “Campo Alegre”.

Nos últimos tempos, Ricardo fica parte do tempo no Rio de Janeiro, e tem realizado viagens pelo Brasil e para o exterior. No entanto, ele sempre retorna ao Campo Alegre, onde está seu acervo: livros, entrevistas que concedeu, trabalhos que desenvolveu, recortes de jornais e um número de coisas que pesquisou ao longo da vida. “Você deve se lembrar do filme ‘Central do Brasil’, em que a personagem da Fernanda Montenegro disse ‘eu guardo muito tudo’”, contou ao Pensar. 

No vasto material, ele guarda com cuidado uma entrevista de página inteira de Rubem Valentim ao jornal O Globo, material que ele retoma para citar trechos em “Sonhei com o anjo da guarda”. “Fiz de palavras como essas a base para o programa criativo que eu ainda não tinha condições de saber que desenvolveria um dia. Para os meus 21 anos, já era muita coisa ter com quem — uma página de jornal — conversar sobre arte e vida.”




“Pessoas-muitas”

Em ambos os livros, é possível identificar as “conversas” que Ricardo manteve ao longo da vida com pensadores, artistas, pessoas comuns, e que foram fundamentais para que ele se transformasse na “pessoas-muitas” como costuma se autodefinir. 

Nos dois livros, o escritor também traz o momento em que perdeu a visão de um dos olhos, aos 18 anos. Ele redesenha a própria história a partir do episódio que recria do momento em que um colega de time de futebol acertou uma bolada no olho de Aleixo, danificando para sempre a vista do autor.

“Eu tive o contato, como que em uma visão, com esse menino que eu fui. E quando o livro ‘Sonhei com o anjo da guarda o resto da noite’ já estava pronto, entendi esse menino virando personagem da literatura brasileira. Era como se eu me descolasse daquilo que eu fui. Eu pude, ao lê-lo como personagem, entender o tamanho do sofrimento dele”.





Ricardo Aleixo revela que caiu numa crise de choro e se despediu daquele menino. No entanto, é perceptível a escolha política que o artista faz nos dois livros, de trazer aspectos da realidade mesmo que fossem duros ou tristes, no entanto adotando a perspectiva de quem “venceu”. Os dois livros, portanto, têm como pano de fundo a obstinação de um jovem apaixonado pela palavra que se tornou um dos grandes poetas da literatura brasileira.

TRECHOS DO LIVRO

“Campo Alegre”

“O Campo Alegre evocado neste livro é um espafro (um “espaço afro”), para usar o neologismo criado pelo músico Naná Vasconcelos que citei no roteiro do áudio-ensaio “Milton Nascimento e o Clube da Encruza”, no primeiro episódio da série ‘Música Negra do Brasil’, produzido por mim e por Natália Alves, a convite da Rádio Batuta, do Instituto Moreira Salles, em maio último. Se lanço mão, ainda uma vez, do vocábulo criado por Naná para tentar pensar o bairro onde vivo desde a infância como um lugar em que a população não só é majoritariamente negra, como, também, organiza-se com base em modos de viver que atualizam certas concepções afro-brasileiras acerca da partilha do  espaço comum, é com o objetivo de falar de uma (inimaginável) parte das Geraes – tão próxima de Venda Nova, parada obrigatória dos tropeiros a caminho do sertão, no século 18 – que resiste, na lentidão dos tempos que se superpõem em sua história e que, de certo modo, definem o seu “jeito” de ser bairro, à expansão desmedida do mercado imobiliário, em sua sanha gentrificadora e vertica- lizante, à ação do crime organizado e à sua contraparte, a violência policial, bem como à tendência contemporânea, mundializada, a ver o outro como ameaça, problema, empecilho, obstáculo a ser  transposto sem mais demora e conversa nenhuma.” 

*

“Sonhei com o anjo da guarda o resto da noite”

“Engraçado isso do modo como a gente se refere às pessoas. Eu sempre chamei Íris de mãe, mas converso com minha irmã e nos referimos à mamãe. Nunca dizemos nossa mãe, jamais minha mãe. Não consegui, na verdade, nem mesmo tentei chamá-la de você. E olhe que nós éramos muito camaradas. Ela, folgazã, me ajudou a me tornar menos virginiano, com tendência a ser, como Américo, do tipo reflexivo, quase fechado.

Dançávamos e cantávamos muito, mais até do que conversávamos. Ríamos — como ríamos, ela e eu. De tudo e de nada. Até perto dela morrer, em 2009, eu me sentava em seu colo.

E a beijação sem fim? E os (auto)elogios? Você me puxou nisso, meu filho.




Há tempos, comecei um trabalho novo, inspirado pelo pequeno e singelo acervo que juntei para recordar minha mãe: sua voz gravada, fotos de diversas épocas, o vídeo de uma conversa dela com Américo e com o meu saudoso amigo José Maria Cançado, escritor e jornalista, e o caderno em que ela conta sua história desde os avós maternos e paternos até o meu nascimento.” 


“Sonhei com o anjo da guarda o resto da noite”
• Ricardo Aleixo
• Todavia
• 160 páginas 
• R$ 59

“Campo Alegre”
• Ricardo Aleixo
• Coleção “BH. A cidade de cada um”
• Editora Conceito
• R$ 40
• Lançamento em 10/12, às 11h, na Outlet do Livro (Savassi)