Jornal Estado de Minas

PENSAR

Saramago: antologia reúne trinta celebrações ao mestre da escrita

Caricatura artesanal em biscuit criada pelo artista plástico Marco Prata, da loja Bunker, no Shopping 5ª Avenida, em BH (foto: Ramon Lisboa/EM/D.A Press)

 

Anelito de Oliveira *

Especial para o EM

 

Impossível contemplar, na totalidade, o significado do centenário deste escritor português, uma das maiores referências de multiplicidade em literatura do nosso tempo. A despeito disso, a Páginas Editora lançou, com prefácio de minha autoria, “Todos os Saramagos”, coletânea de 30 contos de autores de partes diversas do Brasil e três residentes no país de José Saramago – sendo dois portugueses. No último dia 16, data do aniversário saramaguiano, a celebração se deu com lançamento do livro na Embaixada de Portugal, em Brasília, e celebrações de autores em São Paulo, Rio e novamente na capital mineira, desta vez na Outlet de Livros. O primeiro lançamento aconteceu na Biblioteca Pública de Minas Gerais, em Belo Horizonte, num evento com leituras de textos do homenageado.





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O fim ou não da modernidade, o fim da história, a morte disso ou daquilo, de Deus, da Arte, do Homem, do Autor, nada disso chegou a constituir “a” questão para José Saramago. O escritor procurou se orientar sempre por uma perspectiva crítico-realista em franca oposição a uma perspectiva mítico-idealista. A disposição dos elementos na vida social tem ascendência sobre os discursos que se produzem sobre esses elementos, que consistem evidentemente numa interpretação sobre esses elementos.

 

Nessa antologia, organizada pela escritora e diretora da Páginas, Leida Reis, e pela escritora Myrian Naves, Saramago passa de autor a personagem. É dada a ele a liberdade de protagonizar um conto aqui, ter seu estilo de escrita celebrado ali, e livros ou personagens seus são tomados de empréstimo a narrativas.

 

(foto: Ramon Lisboa/EM/D.A Press)
Cada contista, a seu modo pessoal, narra a genialidade de Saramago. Maria Valéria Rezende, ganhadora de três prêmios Jabuti e residente em João Pessoa, dá início ao desfile de escritores que vêm de Lisboa e Porto, em Portugal, do Rio, de Minas, de São Paulo, da Bahia, de Brasília e do Mato Grosso do Sul. Os ficcionistas englobam atos da política, economia, cultura, religião, história na construção de suas narrativas.





 

Saramago é, afinal, um operador obstinado dos muitos órgãos que compõem esse corpo, que maneja a pena como um bisturi, com o qual perfura sentidos que costuram outros sentidos, como aponto em meu prefácio. Aproximar-se da obra saramaguiana, como se faz em “Todos os Saramagos” é, então, envolver-se com uma operação altamente objetiva, dotada de uma logicidade que, por si só, denuncia o lugar central que nela ocupa a consciência, que se define em termos fenomenológicos, como se sabe, pela intencionalidade.

 

A intencionalidade que distingue Saramago consiste, em linhas gerais, na manutenção de uma distância entre sujeito e objeto, entre obra e autor, que foi se tornando cada vez mais difícil ao longo do século 20 à medida que se intensifica a proverbial crise da modernidade, com o desmanchamento no ar de tudo que havia de sólido no mundo pré-moderno, para recordar o Manifesto Comunista de Marx e Engels.

 

Com o insucesso dos livros de poesia e teatro, Saramago segue no gênero romance, mas não que tenha se rendido ao mercado editorial, mesmo porque nas suas narrativas esses gêneros estão presentes. A vocalidade, a descontinuidade e a reflexividade, por exemplo, que caracterizam a lírica; a objetividade, a presentidade e a transitividade que caracterizam o drama. E está vinculado tanto à filosofia quanto à política. Dir-se-ia que na filosofia está seu ponto de partida, especialmente na filosofia da linguagem, seu arcabouço racionalizante, mas é na política que está seu ponto de chegada, sua potência inquisidora, dessacralizante, de que “Levantado do chão” e o grande marco e “Ensaio sobre a lucidez” é ponto culminante.





 

O mesmo autor que ousou reconhecer categoricamente o acanhamento de visão do português médio, o romântico Almeida Garrett, parece insinuar, com a prosa de “Viagens na minha terra”, a necessidade de libertação do verso para a exploração da matéria histórica lusitana em sua complexidade. Ainda que Eça, realista ‘mimético’, seja a referência imediata do realismo crítico saramaguiano, Garrett representa algo que é da ordem de um pensamento heterodoxo, não extremista, flexível, que tem na própria escrita o referente estruturante de sua complexidade.

 

A escrita é a viagem, isto é, o deslocamento, escrever é viajar, deslocar-se, o escritor é um viajante, um deslocado, e assim o dado móvel, instável, afigura-se-nos como o paradigma do processo de criação. “Viagem a Portugal”, “A bagagem do viajante”, “A viagem do elefante” – títulos que naturalmente nos vêm à lembrança e conectam Saramago a Garrett tanto quanto aos cronistas-historiadores portugueses do Medievo, como Fernão Lopes e João de Barros, a Camões e outros tantos nomes. 

 

O livro está à venda em plataformas digitais e livrarias físicas, e as organizadoras, Leida Reis e Myrian Naves, pretendem, com ele, que o centenário sirva para perpetuar o nome de Saramago.

 

 

* Anelito de Oliveira é escritor, doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutor em Teoria Literária pela Unicamp. É professor visitante de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa na UFMG, autor de “A menina chinesa” (Páginas Editora), entre outros livros

 

 

(foto: Páginas Editoras/reprodução)
“TODOS OS SARAMAGOS”

 Leida Reis e Myrian Naves (organizadoras)

 Páginas Editora

 274 páginas

 R$ 49 

 

 

(foto: Ramon Lisboa/EM/D.A Press)

Lupa sobre a obra do escritor

 

Paulo Nogueira

 

“A razão de Saramago – e nisso reside a originalidade de sua obra – não é positivista (…) A razão de Saramago é a da ficção e esta exige do leitor outro tipo de fé, que não é menos misteriosa e apaixonada do que a religiosa”, define a paulista Leyla Perrone-Moisés, doutora em Língua e Literatura Francesa e professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. A análise está no livro “As artemages de Saramago”, mais uma obra que chega ao mercado brasileiro na passagem do centenário de nascimento do escritor português José Saramago (1922-2010). A autora reúne textos inéditos e outros já publicados em jornais e revistas para fazer uma espécie de guia para a obra de Saramago.





 

A coletânea aborda obras-primas do escritor, caso de “Ensaio sobre a cegueira”, “O evangelho segundo Jesus Cristo” e “A caverna” e evidencia o seu talento incontestável. “Ao me lançar nessa dispensável aventura de comentar seus romances, devo declarar que o faço para prolongar o prazer de sua leitura, mais do que para pretender elucidá-los”, diz a autora na introdução”. Com a lupa sobre “O evangelho segundo Jesus Cristo”, ela sai em defesa de Saramago na polêmica com a Igreja católica e com o governo português do primeiro-ministro Cavaco Silva, que censurou o livro.

Ao criar sua própria ficção e representar Jesus Cristo crucificado pedindo aos homens que perdoem Deus, questionar a bondade do ser supremo, negar a imaculada concepção e incutir culpa nos ícones bíblicos, por exemplo, Saramago vira alvo de artilharia pesada. “Que esse evangelho não é nada católico, qualquer pessoas medianamente catequizada logo vê. Nele, Deus é mau, os anjos são demoníacos, a Virgem Maria tem nove filhos, Jesus é amante de Maria Madalena, Judas não traiu...”, lembra Leyla Perrone-Moisés para criticar a banalidade da censura e a discussão “ociosa” sobre a obra.

 

A crítica literária cita o narrador de “Caim”, outra obra que causou polêmica teológica ao apresentar o primeiro “criminoso” da humanidade como vítima divina e acusar a crueldade de Deus sobre ele: “A história dos homens é a história dos seus desentendimentos com deus, nem ele nos entende a nós, nem nós o entendemos a ele”. Em Caim, Saramago ainda é mais cruel com Deus, sempre condenado por ele. “Tanto ‘O evangelho segundo Jesus Cristo’ como ‘Caim’ tratam do desentendimento de Saramago com a transcendência e a fé e são os romances em que ele acertas suas contas com Deus, mostrando-o cada vez mais cruel”, avalia.





 

JUSTIÇA 

 

No ensaio “Escritor engajado”, Leyla Perrone Moisés faz apropriada análise do Saramago ateu e “comunista de carteirinha”, afiliado ao Partido Comunista Português após a Revolução dos Cravos, em 1974, em que assumiu funções de liderança e lutou por um regime socialista no país, inclusive na defesa da luta armada. Mas engana-se quem pensar que ele era um militante submisso. Já famoso como escritor e pelo Nobel de Literatura conquistado em 1998, admitiu que o modelo comunista falhou, após o colapso da União Soviética (1991). Dez anos depois, retirou seu apoio a Cuba. “A esquerda hoje (1994) não sabe em que pensar, nem como pensar, porque seus modelos desmoronaram e seus ideais foram pervertidos”. E ainda: “Ressuscitar Marx? Não. Vivemos em outro tempo. É preciso algo mais imaginativo do que a simples indignação – que é legítima – para mudar as coisas”, disse ele em 2008.

 

Entretanto, seu ideal de socialismo jamais esmoreceu, como ele definiu em seus “Cadernos de Lanzarote”: “Não devemos aceitar que a justa acusação e a justa denúncia dos inúmeros erros e crimes cometidos em nome do socialismo nos intimidem: a nossa escolha não tem porque ser feita entre socialismos que foram pervertidos e capitalismos perversos de origem, mas entre a humanidade que o socialismo pode ser e a inumanidade que o capitalismo sempre foi. Aquele ‘capitalismo de rosto humano’, de que tanto se falou nas tais décadas atrás, não passava de uma máscara hipócrita. Por sua vez, o 'capitalismo de Estado', funesta prática dos países ditos do ‘socialismo real’, foi uma caricatura trágica do ideal socialista. Mas esse ideal, apesar de tão espezinhado e escarnecido, não morreu, perdura, continua a resistir: talvez por ser, simplesmente, embora como tal não venha mencionado nos dicionários, um sinônimo de esperança”.