“Com a mesma veemência e a mesma força que reivindicamos nossos direitos, reivindiquemos também o dever dos nossos deveres. Talvez o mundo possa começar a tornar-se um pouco melhor.” O apelo foi feito pelo escritor português José Saramago (1922-2010), na noite de 10 de dezembro de 1998, ao participar do banquete oferecido pela monarquia sueca, três dias depois de ser agraciado com o Nobel de Literatura pela Academia Sueca, em Estocolmo. Ao lembrar a assinatura da Declaração Universal dos Direitos Humanos, exatamente 50 anos depois, o primeiro autor português agraciado com o maior prêmio literário do planeta fez um pronunciamento humanista, criticou e invocou governos, multinacionais e cidadãos do mundo para cumprirem sua responsabilidade social contra a fome e a miséria.
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“Nesses 50 anos, não parece que os governos tenham feito pelos direitos humanos tudo aquilo a que, moralmente, quando não por força da lei, estavam obrigados. As injustiças multiplicam-se no mundo, as desigualdades agravam-se, a ignorância cresce, a miséria alastra”, provocou Saramago. Em outro trecho, ele faz uma incômoda comparação: “A mesma esquizofrênica humanidade que é capaz de enviar instrumentos a um planeta para estudar a composição das suas rochas assiste indiferente à morte de milhões de pessoas pela fome. Chega-se mais facilmente a Marte neste tempo do que ao nosso próprio semelhante”.
A íntegra do discurso está reproduzida no livro “A intuição da ilha – Os dias de José Saramago em Lanzarote”, que acaba de ser lançado pela mulher do escritor, Pilar del Rio. No capítulo dedicado ao Nobel, ela conta que anos depois da entrega do prêmio, em Estocolmo, a Universidade Nacional Autônoma do México (Unam) assumiu o desafio feito por Saramago e convocou um congresso internacional para criar a Declaração Nacional de Deveres Humanos – reproduzida no final do seu livro. “José Saramago já não estava (morreu em 18 de junho de 2010), mas a fundação que leva seu nome assumiu esse projeto com a seriedade e o rigor com que o escritor leu seu discurso na capital sueca. Em abril de 2018, o documento nascido das diferentes deliberações tomadas no México e subscrito por um conjunto representativo de personalidades foi apresentado na ONU”, relata Pilar.
O secretário-geral da ONU, António Guterres, incentivou a iniciativa. “Necessitamos de uma cidadania ativa”, disse ele ao receber o documento. Desde então, a Declaração Universal dos Deveres Humanos vem sendo discutida. “É um instrumento que amplia os valores da civilidade e da igualdade, e também os deveres de respeito e cuidado para com as pessoas e a natureza, tão necessários, tão urgentes, tão definitivamente humanos”, avalia Pilar.
MÚLTIPLOS PERSONAGENS
Três dias antes do banquete, Saramago havia proferido outro discurso, o da premiação do Nobel na Academia Sueca. Diferentemente do segundo, foi um longo discurso, em 7 de dezembro de 1998, intitulado “De como o personagem foi mestre e o autor, seu aprendiz”. Ele começou assim: “O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever. Às quatro da madrugada, quando a promessa de um novo dia ainda vinha em terras de França, levantava-se da enxerga e saía para o campo, levando ao pasto a meia dúzia de porcas de cuja fertilidade se alimentavam ele e a mulher. Viviam desta escassez os meus avós maternos, da pequena criação de porcos que, depois do desmame, eram vendidos aos vizinhos da aldeia, Azinhaga de seu nome, na província do Ribatejo. Chamavam-se Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha esses avós, e eram analfabetos um e outro. No inverno, quando o frio da noite apertava ao ponto de a água dos cântaros gelar dentro da casa, iam buscar às pocilgas os bácoros mais débeis e levavam-nos para a sua cama”.
A partir da lembrança de seus avós na aldeia onde nasceu o bebê José Saramago, o escritor português, no longo discurso – que na tela do computador tem quase 400 linhas –, discorre sobre os inúmeros e inusitados personagens dos seus muitos livros. Pilar del Rio conta: “Viriam a seguir os personagens das diferentes obras de José Saramago, seres sem brilho social nem lugares em conselhos de administração, que procuram a mulher desconhecida, ou se levantam do chão, ou se empenham em organizar uma vida humana em plena época de epidemia de cegueira, ou navegam na direção de outros sendo jangadas que transportam terra e sonhos, esses seres de ficção que povoam a obra saramaguiana foram quem manifestou que a dimensão humana se potencia a partir da consciência e que assumir a ética da responsabilidade é um doce mandato”.
E depois do longo discurso sobre seus personagens, assim Saramago termina: “A voz que leu estas páginas quis ser o eco das vozes conjuntas das minhas personagens. Não tenho, a bem dizer, mais voz que a voz que elas tiverem. Perdoai-me se vos pareceu pouco isto que para mim é tudo”.
OS DEVERES HUMANOS
“Majestades, Alteza Real, senhoras e senhores. Cumpriram-se hoje exatamente cinquenta anos sobre a assinatura da Declaração Universal de Direitos Humanos. Não têm faltado, felizmente, comemorações à efémeride. Sabendo-se, porém, com que rapidez a atenção se fatiga quando as circunstâncias lhe impõem que se aplique ao exame de questões sérias, não é arriscado prever que o interesse público por este comece a diminuir a partir de amanhã. Claro que nada tenho contra atos comemorativos, eu próprio contribuí para eles, modestamente com algumas palavras. E uma vez que a data o pede e a ocasião não o desaconselha, permita-se me que pronuncie aqui umas quantas palavras mais.
Como declaração de princípios que é, a Declaração Universal de Direitos Humanos não cria obrigações legais aos Estados, salvo se respectivas Constituições estabelecem que os direitos fundamentais e as liberdades nelas reconhecidas serão interpretados de acordo com a Declaração. Todos sabemos, porém, que esse reconhecimento formal pode acabar por ser desvirtuado ou mesmo denegado na ação política, na gestão econômica e na realidade social. A Declaração Universal é geralmente considerada pelos poderes econômicos e pelos poderes políticos, mesmo quando presumem de democráticos, como um documento cuja importância não vai muito além do grau de boa consciência que lhes proporcione.
Nestes cinquenta anos não parece que os governos tenham feito pelos direitos humanos tudo aquilo a que, moralmente, quando não por força da lei, estavam obrigados. As injustiças multiplicam-se no mundo, as desigualdades agravam-se, a ignorância cresce, a miséria alastra. A mesma esquizofrênica humanidade que é capaz de enviar instrumentos a um planeta para estudar a composição das suas rochas assiste indiferente à morte de milhões de pessoas pela fome. Chega-se mais facilmente a Marte neste tempo do que ao nosso próprio semelhante.
Alguém não anda a cumprir o seu dever. Não andam a cumpri-lo os governos, seja porque não sabem, seja porque não podem, seja porque não querem. Ou porque não lho permitem os que efetivamente governam, as empresas multinacionais e pluricontinentais cujo poder, absolutamente não democráticos, reduziu a uma casca sem conteúdo o que ainda restava de ideal de democracia. Mas também não estão a cumprir o seu dever os cidadãos que somos. Foi-nos proposta uma Declaração Universal de Direitos Humanos, e com isso julgamos ter tudo, sem repararmos que nenhuns direitos poderão subsistir sem a simetria dos deveres que lhes correspondem, o primeiro dos quais será exigir que esses direitos sejam não só reconhecidos, mas também respeitados e satisfeitos. Não é de esperar que os governos façam nos próximos cinquenta anos o que não fizeram nestes que comemoramos. Tomemos, então, nós, cidadãos comuns, a palavra e a iniciativa. Com a mesma veemência e a mesma força que reivindicamos nossos direitos, reivindiquemos também o dever dos nossos deveres. Talvez o mundo possa começar a tornar-se um pouco melhor.
Não estão esquecidos os agradecimentos. Em Frankfurt, onde estava no dia 8 de outubro, as primeiras palavras que disse foram para agradecer à Academia Sueca a atribuição do Prêmio Nobel de Literatura. Agradeci igualmente aos meus editores, aos meus tradutores e aos meus leitores. A todos volto a agradecer. E agora quero também agradecer aos escritores portugueses e de língua portuguesa, aos do passado e de agora: é por eles que as nossas literaturas existem, eu sou apenas mais um que a eles se veio juntar. Disse naquele dia que não nasci para isto, mas isso foi-me dado.
Bem hajam, portanto.”
* Íntegra do discurso de José Saramago no banquete do Nobel, em Estocolmo, em de 10 de dezembro de 1998