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Estado de Minas PENSAR

Saramago: 'O mundo é um gigantesco hipermercado'

Relembre a entrevista exclusiva concedida pelo escritor português ao Estado de Minas em 16 de novembro de 1997


25/11/2022 04:00 - atualizado 25/11/2022 00:37

José Saramago
"Essa exploração desenfreada, cada vez os ricos mais ricos, cada vez os pobres mais pobres, cada vez maior a distância entre os que têm e os que não têm e talvez, pior ainda, cada vez maior a distância entre os que sabem e os que não sabem, isso tem que ter um fim, ou então a vida não tem qualquer sentido. Já não se fala em cidadãos, fala-se em consumidores, clientes. O mundo é um gigantesco hipermercado. O que realmente conta é o que cada um pode comprar. O que verdadeiramente tem importância hoje é o nosso número no cartão de crédito", José Saramago (foto: Fundação José Saramago/Arquivo)

 

José Saramago faz parte da vida da minha família há 40 anos. Em 1982, em viagem a Portugal, minha mãe recebeu uma encomenda: comprar para seu irmão, meu tio, um livro de que ele tinha ouvido falar. Era “Levantado do chão” (1980), adquirido em uma pequena livraria de Lisboa. Consagrado no além-mar, Saramago seria publicado no Brasil alguns anos mais tarde – e as edições brasileiras logo chegaram à minha casa. Comecei por “O evangelho segundo Jesus Cristo” (1991), o polêmico romance que o levou a deixar Portugal em resposta à censura sofrida. Além da narrativa, me encantou a escrita “difícil”, com períodos longuíssimos para ler uma, duas, três vezes, com suas múltiplas vírgulas e escassos pontos finais.

 
 

 

Em 1997, era trainee, com seis meses de Estado de Minas, quando foi anunciada sua vinda para lançar “Todos os nomes”. Seria uma palestra em São Paulo e outra em Belo Horizonte, nas chamadas Conferências do Centenário, encontros que celebravam a efeméride da cidade. Depois de pedidos insistentes, consegui a entrevista. Seria em São Paulo, na casa de Luiz Schwarcz, editor e fundador da Companhia das Letras, no domingo, 16 de novembro de 1997, quando Saramago completava 75 anos. Convidei uma amiga, estudante de belas artes e fotógrafa diletante, já que ela também estaria na cidade.

 

Embaixo do braço, além do gravador de fita cassete, ia o exemplar de “Evangelho”, que eu tinha dado de presente para minha mãe em seu aniversário de 1992 – para ganhar, dele, a devida dedicatória.

 

Na residência, a nossa dupla, mal entrada na casa dos 20, encontrou dois repórteres experientes à espera de Saramago, que havia chegado naquela manhã a São Paulo. A primeira entrevista seria a minha.

 

Ansiosas e maldormidas depois de um festival de rock, o encontramos na biblioteca. Logo descobri que a dúzia de perguntas que eu tinha não seriam todas respondidas – Saramago falava como escrevia. Períodos longos, reflexivos – meia hora não era suficiente. Terminada a conversa, mais tranquilas (e muito encantadas) fomos às fotos. Por sugestão de Lilia Schwarcz, em frente a um quadro de Amilcar de Castro. Luiz e ela haviam acabado de voltar de Lanzarote – Lilia nos contou histórias da ilha enquanto mostrava o álbum de fotografias.

 

Vinte e cinco anos mais tarde, não dá para negar, há questões da entrevista que ficaram datadas. Por exemplo, sobre o Prêmio Nobel, que ele perdeu naquele ano para Dario Fo. “Eu tive o prêmio, mas tu é que deverias ter tido”, Saramago me contou, reconstituindo o telefonema que recebeu do italiano no dia seguinte ao anúncio da premiação. A correção da Academia Sueca, vale lembrar, foi feita no ano seguinte.

 

Mas há também temas que permanecem no centro do debate, passado um quarto de século, como o papel da Igreja e da esquerda, temas caros a Saramago e a sua obra. E já naquela época ele alertou para o capitalismo e a desconstrução da cidadania: “Já não se fala em cidadãos, se fala em consumidores. O mundo é um gigantesco hipermercado. O que realmente conta é o que cada um pode comprar. O que verdadeiramente tem importância hoje é o nosso número no cartão de crédito”. A seguir, a entrevista concedida por Saramago há 25 anos.

 

 

O senhor escreveu “Todos os nomes” a partir de uma pesquisa que fez com um irmão que morreu ainda criança. Como foi o processo?

É uma história complicada que tem relação com o “Livro das tentações”, projeto que anuncio há sete anos. É uma espécie de autobiografia. Quando digo uma espécie, digo assim porque é uma autobiografia que vai até os 14 anos. Eu sabia que tinha tido um irmão mais velho que eu dois anos, que tinha falecido de difteria num hospital de Lisboa. Quando comecei a trabalhar mais no livro, deparei-me com a existência de um irmão que já estava à minha espera há dois anos. Eu tinha de falar dele e como não tinha todos os dados, entrei em contato com a Conservatória do Registro Civil onde ele estava registrado. Pedi uma cópia da certidão de nascimento e quando eu recebo, verifico que não havia indicação de que ele tinha falecido. Diante daquele documento, o meu irmão continuava vivo. Foi necessário investigar os arquivos de seis cemitérios de Lisboa. E é essa a história, que não tem nada rigoriosamente a ver com o que tem ver a ser o livro. Embora não tenha nada a ver, sem essa história o livro não teria existido.

 

Além do personagem se chamar José.

Mas não tem nada a ver comigo, não é uma espécie de alterego meu e tem talvez uma explicação. A personagem é insignificante, é umfuncionário modesto. Um homem de 50 anos, solitário, solteiro, com uma vida quase pobre. Então, é aquilo que se pode chamar com alguma propriedade de uma personagem insignificante. Quis dar-lhe um nome insignficante para estar à altura e corresponder à personagem. Acontece que o nome mais insignificante que encontrou foi o meu próprio nome.

 

Por que o senhor tem adiado o “Livro das tentações”?

Por duas ou três vezes me dispus a começar esse livro. Mas acontece que de cada vez se mete adiante uma outra ideia para fazer um romance e o livro vai ficando à espera de que chegue uma oportunidade. Quando acabei “Todos os nomes”, disse agora vai ser. Mas surgiu uma outra ideia que de certo modo eu diria, embora o “Ensaio sobre a cegueira” não tenha nada a ver com “Todos os nomes”, e o livro que tenho na cabeça também não tem nada a ver, mas de uma certa forma os três livros constituiriam algo com um caráter unitário. Pode ser considerado algo como que pertencendo a um mesmo espírito, a um mesmo ponto de vista, a uma obsessão do mundo neste momento da minha própria vida. Portanto, é natural que o “Livro das tentações” seja mais uma vez adiado.

 

Como foi a saída de Lisboa para Lanzarote?

A história da mudança é complicada, mas ao mesmo tempo simples. Ela resultou de uma situação bastante difícil. Em 1992, “O evangelho segundo Jesus Cristo” tinha sido escolhido por organizações culturais para representar Portugal no prêmio literário criado pela União Europeia. O governo, num gesto infeliz, resolve não autorizar alegando que o livro ofendia as crenças católicas do povo português. Foi um ato de censura claríssimo. Não é preciso dizer que me desgostou muitíssimo, me indignou. Minha mulher tem uma irmã que vive em Lanzarote. Ela veio com a ideia de que podíamos comprar uma casa lá para descansar e sair um pouco daquela situação. Eu disse: “É um disparate, ora, não vou viver em Lanzarote, não tem sentido nenhum”. Isso eu disse num dia, mas no dia seguinte já estava dizendo que a ideia talvez não fosse má. O que é uma reação lógica masculina. A mulher começa por sugerir, o homem diz imediatamente que não e 24 horas depois já fala que a ideia não é tão má (risos).

 

Qual a sua relação com a Igreja Católica depois do lançamento de “O evangelho segundo Jesus Cristo”?

Não tenho qualquer tipo de relação com a igreja. Não sou crente, nunca fui, não tive qualquer educação religiosa e por causa dela escrevi o livro. Não tem nada a ver com isto. Sempre tive uma relação muito pacífica com a ideia de uma vida futura, que não acredito, evidentemente. Simplesmente não creio na existência de Deus, é mais um mito entre tantos outros. Portanto, se é certo que não creio em Deus, também é certo que, no plano da mentalidade, sou um cristão. Quando certos católicos mais intransigentes me dizem “você é ateu, não tinha o direito de escrever sobre Jesus e muito menos da maneira como o fez”, eu respondo que tenho o direito de escrever sobre aquilo que fez de mim a pessoa que sou. Mas por que escrever uma história sobre Jesus se elas já são tantas? Eu acrescento aquilo que acabei dizer a uma coisa a mais. Não teria escrito “O evangelho segundo Jesus Cristo” se não tivesse acontecido o que nós chamamos de matança das crianças em Belém. Essa ideia é tremendamente chocante. José recebe em sonhos uma mensagem de Deus, trazida por um anjo, que ele diz que ele leve o menino e a mãe para fora de Belém, porque o rei Herodes vai mandar matar as crianças. E ele faz isso, vai com o burrinho por aí afora. Este tema, ao mesmo tempo lírico, poético, dramático e que deu lugar a tanta obra, houve aí qualquer coisa que não consigo entender. Como é que José não fez o que, suponho eu, qualquer um de nós faria se estivesse nas boas graças de Deus ao ponto de receber uma mensagem direta, que seria bater à porta dos vizinhos e dizer que ponham os vossos meninos a salvo porque Herodes vai mandar matar as crianças? José regressa do Egito e nunca vai perguntar o que aconteceu em Belém, não há mais o leve sinal de remorso. Se não fosse este episódio, eu não teria escrito o livro. Ele é uma reflexão sobre a culpa e a responsabilidade.

 

Na sua avaliação, que papel desempenham as ideias e as ações da esquerda atualmente?

O papel importante, diria mesmo indispensável, seria o de não permitir que o mundo se apresente à consciência das pessoas, como se já não houvesse outra solução, outros caminhos, outras alternativas. Pode-se dizer que o capitalismo também tem suas crises e que agora estamos vivendo uma. O pensamento de esquerda, marxista ou não marxista, está neste momento em sua travessia no deserto. Mas não será eterno. As forças de esquerda irão reorganizar-se. Somos uma espécie de sobreviventes que tem a grande responsabilidade de manter viva uma ideia, essa esperança, até que as próprias condições sociais determinem que outros caminhos a esquerda pode tomar. Essa exploração desenfreada, cada vez os ricos mais ricos, cada vez os pobres mais pobres, cada vez maior a distância entre os que têm e os que não têm e talvez, pior ainda, cada vez maior a distância entre os que sabem e os que não sabem, isso tem que ter um fim, ou então a vida não tem qualquer sentido. Nós temos que viver hoje debaixo de uma máquina que pretende transformar algo que você custa a conquistar, que é o sentido da cidadania. Já não se fala em cidadãos, fala-se em consumidores, clientes. O mundo é um gigantesco hipermercado. O que realmente conta é o que cada um pode comprar. O que verdadeiramente tem importância hoje é o nosso número no cartão de crédito. O nome, voltando ao tema do meu romance, não significa muito.

 

O que o senhor tem a dizer a respeito do Prêmio Nobel? 

Minha posição em relação ao prêmio Nobel é clara desde sempre. Não considero que pelo prestígio de um autor ou de uma literatura seja indispensável o prêmio. Considero, e isso é o óbvio, que a Academia Sueca atribui os prêmios a quem quer. O dinheiro é deles, não é nosso. Nós não podemos levar a vida nessa espécie de psicodrama em que se transforma um Prêmio Nobel. Ele só se transforma em um psicodrama porque é de quase US$ 1 milhão. Se fossem US$ 10 mil, ninguém precisaria. Neste ano, é sabido que até os últimos dias os dois nomes de que se falava eram o de Dario Fo e o meu. A Academia inclinou-se por Dario Fo. Está no seu direito e eu não discuto isso. No dia seguinte ao prêmio, o Dario Fo me telefonou logo cedo para dizer: “Eu tive o prêmio, mas tu é que o deverias ter tido”. E mais: na Feira de Frankfurt, dois dias depois, ele me procurou para me abraçar. Foi um dos momentos mais bonitos que vivi nas relações com colegas de ofício, que normalmente não são boas. 


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