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Saramago: personagem assumiu controle de 'Ensaio sobre a cegueira'

 

A fluidez da narrativa de “Ensaio sobre a cegueira”, o livro mais popular, traduzido e visionário do escritor português José Saramago, que demorou mais de três anos para ser escrito e acaba de ganhar edição de luxo no Brasil, com capa dura, só foi possível porque a protagonista, a “mulher do médico”, tomou o controle das mãos do autor e passou a conduzir a angustiante história da população de uma cidade imaginária que é tomada repentinamente por uma cegueira branca que leva todos a um mergulho nas trevas da estupidez, da ganância e da barbárie. 





 

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A licença literária de Saramago veio depois de muitas dificuldades. “Houve pausas que simplesmente sentia que o caminho que levava não era o indicado. Por fim, um personagem se impôs com grande naturalidade: 'Tem de me levar também a mim, ceguei agora mesmo', disse a mulher do médico, subindo na ambulância que levaria seu marido. Um personagem continua a ver por ter sido capaz de compaixão. Nesse momento, o livro adquiriu forma e ritmo”, conta a mulher do Saramago, Pilar del Rio, que ouviu dele mesmo esse desfecho, no livro “A intuição da ilha – Os dias de Saramago em Lanzarote”. A mulher do médico é a única que não fica cega, mas finge-se de cega para ser levada com o marido.

 

A gênese do romance veio de maneira inusitada. “A ideia de escrever 'Ensaio sobre a cegueira' apresentou-se a José Saramago num restaurante da Madragoa, em Lisboa, enquanto esperava um prato de bacalhau assado com batatas ao murro. 'E se todos ficássemos cegos?', perguntou-se o escritor. E em seguida respondeu a sim mesmo: 'Mas somos cegos, cegos que vendo não veem'. Nesse momento, em 6 de setembro de 1991, José Saramago soube que teria que escrever 'Ensaio sobre a cegueira'. Os personagens cegariam talvez pelo colapso do sistema, talvez pela degradação moral de quem, podendo ver, optaria por tapar os olhos (…) Será uma epidemia diante do assombro geral. Não há medicina para combatê-la, os governos encontram-se perdidos. (…) Aparecerá um animal com mais humanidade que muitos serem humanos que se deixam levar pelo instinto. Os grupos que se reúnem podem parecer hordas”, conta também Pilar del Rio.

 

O escritor não nomeia nenhum personagem, não há um nome próprio na obra. O pavor e a tragédia que se seguem são tão incômodos que o próprio Saramago teve dificuldades de continuar. Pilar conta que o sofrimento de Saramago foi tanto que ele não conseguiu reler o episódio em que um grupo de cegos toma as rédeas do caos e obriga as mulheres igualmente cegas a serem estupradas por eles em troca de comida. Quando terminou o livro, ele anotou em seus “Cadernos de Lanzarote”: “Lutei, lutei muito, só eu sei quanto, contra as dúvidas, as perplexidades, os equívocos que toda a hora se me iam atravessando na história e me paralisavam. Como se isso não fosse o bastante, desesperava-me o próprio horror do que ia narrando. Enfim, acabou, já não terei de sofrer mais.”





 

Três décadas depois de escrito, o romance de Saramago que foi adaptado para cinema (pelo brasileiro Fernando Meirelles), teatro, música, exposição de pintura e até balé, voltou a ganhar grande evidência durante a pandemia de COVID, principalmente, por causa do negacionismo. A epígrafe da obra já alerta: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”. Assim ele explicou, em 7 de outubro de 1996, em seus “Cadernos de Lanzarote”, a motivação que o levou a escrever a obra. “No meu romance 'Ensaio sobre a cegueira', tentei, recorrendo à alegoria, dizer ao leitor que a vida que vivemos não se rege pela racionalidade, que estamos usando a razão contra a razão, contra a própria vida. Tentei dizer que a razão não deve separar-se nunca do respeito humano, que a solidariedade não deve ser a exceção, mas a regra. Tentei dizer que a razão está a comportar-se como uma razão cega que não sabe aonde vai nem quer sabê-lo. Tentei dizer que ainda nos falta muito caminho para tentar chegar a ser autenticamente humanos e que não seja boa a direção em que vamos.”

 

“Ensaio sobre a cegueira” é uma obra-prima perturbadora que leva a racionalidade ao limite do absurdo de ver sem enxergar. A nova edição contém textos adicionais do escritor e crítico literário Julián Fuks (“O mundo está todo aqui dentro”), da crítica literária e professora da Faculdade de Letras de Lisboa Maria Alzira Seixo (“Crônica sobre um livro anunciado”), do escritor Marco Lucchesi (“José Saramago passeia pelo mundo das trevas”) e da escritora e crítica literária Leyla Perrone-Moisés (“As artemages de Saramago”). E ainda o complemento “O autor e sua gênese”, excertos dos três primeiros volumes dos “Cadernos de Lanzarote”, desde o início da escrita de “Ensaio sobre a cegueira” até a conclusão da obra.

 

TRECHO DE “ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA”

 

“Enquanto lentamente avançava pela estreita coxia, a mulher do médico observava os movimentos daquele que não tardaria a matar, como o gozo o fazia inclinar a cabeça para trás, como já parecia estar a oferecer-lhe o pescoço. Devagar, a mulher do médico aproximou-se, rodeou a cama e foi colocar-se por trás dele. A cega continuava no seu trabalho. A mão levantou lentamente a tesoura, as lâminas um pouco separadas para penetrarem como dois punhais. Neste momento, o último, o cego pareceu dar por sua presença, mas só o orgasmo retirara-o do mundo das sensações, comuns, privara-o de reflexos. Não chegaria a gozar, pensou a mulher do médico, e fez descer violentamente o braço. A tesoura enterrou-se com toda a força na garganta do cego. (…) A cega gritava, não percebia o que tinha acontecido, mas gritava, este sangue viera donde, provavelmente, sem saber como, havia feito o que chegara a pensar, arrancar-lhe o pênis a dentada.”





 

 

“Ensaio sobre a cegueira”

 

 

 

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“Ensaio sobre a cegueira”

Uma misteriosa e repentina epidemia de cegueira branca leva a população de uma cidade imaginária ao desespero e à barbárie. A protagonista é a mulher do médico – também cego – que conduz um grupo de cegos num manicômio se fingindo de cega para não ser separada do marido pelo governo segregador. Saramago leva o leitor a uma reflexão sobre a condição humana, compaixão e solidariedade num mundo caótico, onde a disputa por comida é o maior desafio.

 

 “O evangelho segundo Jesus Cristo”

“Homens, perdoai-lhe, porque ele não sabe o que fez”. O clamor bíblico invertido (“Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem) de Jesus crucificado, com o qual José Saramago cria sua ficção irônica e paródica do Novo Testamento e questiona dogmas bíblicos, rendeu grande polêmica em Portugal. O livro levou o escritor de Lisboa ao autoexílio em Lanzarote, nas espanholas Ilhas Canárias, depois da censura imposta pelo governo de Cavaco Silva, que apontou ofensa aos católicos. Deus vingativo, anunciação feita pelo Diabo, a vida sexual de Maria e José, Jesus medroso, amante de Madalena e resistente ao “Pai”... tudo isso deu muito o que falar.

 

 “Caim”

Depois de “O evangelho segundo Jesus Cristo”, José Saramago retoma o tema bíblico, agora no Velho Testamento, para fazer sua leitura, com humor, da história de Caim, que matou Abel, seu irmão, e se tornou o primeiro criminoso da humanidade. O autor português volta a criar polêmica ao questionar dogmas e apresentar um confronto ético e moral entre Caim e Deus.





 

 “A jangada de pedra”

José Saramago leva um leitor a uma viagem fantástica ao desgarrar a península ibérica da Europa e deixá-la à deriva no oceano Atlântico como “jangada de pedra”. Uma bela metáfora ou parábola sobre o isolamento de um povo, uma viagem apocalíptica e personagens atemporais igualmente inusitados.

 

 “O homem duplicado”

Inquietante romance fantástico que narra a história do professor Tertuliano Máximo Afonso, que encontra casualmente um homem com o seu rosto, seu corpo e sua voz, ou seja, é um homem duplicado. Como sempre, diante desse embate existencial, José Saramago possibilita profundas reflexões sobre a perda de identidade e a condição humana num mundo globalizado.