“O saramago é uma planta. Nos tempos da minha infância e antes, as pessoas da minha aldeia, em épocas de crises, comiam saramagos. É uma planta herbácea espontânea, cujas folhas, naqueles tempos, serviam como alimento na cozinhas dos pobres”. Logo na primeira página do livro “Saramago – Os seus nomes: Um álbum biográfico”, organizados por Alejandro García Schnetzer e Ricardo Viel, que acaba de ser lançado no Brasil pela Companhia das Letras, o escritor português José Saramago (1922-2010) conta como foi sua infância numa “família de camponeses sem terra”, em Azinhaga, povoado na província de Ribatejo, a cerca de cem quilômetros de Lisboa. Nascido em 16 de dezembro, foi apenas aos 7 anos, quando teve que apresentar na escola um documento de identificação, que ele descobriu que se chamava José de Sousa Saramago, e não só José de Sousa. Isso porque o funcionário do registro civil, por iniciativa própria, acrescentou a alcunha pela qual a família do seu pai, também chamado José de Sousa, era conhecida na aldeia natal: saramago, por causa da planta.
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O menino pobre que foi com a família para Lisboa depois da Primeira Guerra Mundial, tristonho, “leitor solitário” e de “oculinhos”, acabou descobrindo o mundo das letras, levou adiante seu grande talento, mesmo tardio, e escreveu obras contundentes e/ou fantásticas – como “Ensaio sobre a cegueira”, “O evangelho segundo Jesus Cristo”, “Caim”, A caverna”, “A jangada de pedra” e “O ano da morte de Ricardo Reis”. E se tornou o primeiro autor da língua portuguesa a ganhar o Nobel de Literatura. Com seus personagens curiosos e reflexões profundas, deixou muitas sementes para as atuais e futuras gerações, como a luta incansável pelos direitos humanos e por justiça social, o ativismo cultural e ambiental e a maior delas, a Fundação Saramago. Ateu e comunista, jamais deixou de falar de Deus e religião, em tom sempre crítico, ao longo dos seus 87 anos e em seus livros exemplares, e também de apontar o que considerava erros históricos da esquerda. Saramago e seus personagens marcantes – às vezes surreais – voltaram a ganhar atenção mundial na passagem do centenário.
No belo e filosofico “Saramago – Os seus nomes: Um álbum biográfico”, o escritor, além de contar a história da origem de sua família, surge narrando, em primeira pessoa, suas andanças mundo afora, da América do Sul à China, e as muitas amizades, inclusive com brasileiros, principalmente os que ele mais admirava, Jorge Amado e João Cabral de Melo Neto. As histórias e a impressões dos lugares onde esteve são ilustradas com muitas fotos pessoais e históricas. Além de sua Azinhaga natal, outro ponto de partida de Saramago é a ilha vulcânica de Lanzarote, no arquipélago das Canárias, onde se autoexilou com a mulher, a jornalista espanhola Pilar del Rio – que conheceu em 1986 –, a partir dos anos 1990, depois de ter seu livro “O evangelho segundo Jesus Cristo” censurado pelo governo do primeiro-ministro português Cavaco Silva. Saramago já fora casada com a artista plástica Ilda Reis, com quem teve filha única, Violante. E viveu com Pilar em Lanzarote até a sua morte, em 18 de junho de 2010.
"Saramago contou que não queria morrer sem refletir sobre as primeiras páginas da Bíblia, sobre o crime que Caim perpetrou contra Abel sob o olhar onipotente de Deus. Estava outra vez levantando-se de sua debilidade para dizer que nem tudo está claro na relação dos seres humanos com o divino e que regressar à origem com olhar livre poderia ser seu último trabalho, a que não poderia renunciar"
Pilar del Rio, trecho do livro "A intuição da ilha - Os dias de José Saramago em Lanzarote"
PAREDES FEITAS COM LIVROS
E vem exatamente de Pilar del Rio outra obra essencial para admiradores de Saramago e mesmo para quem não está habituado às suas narrativas com estilo literário difícil e único na pontuação e nos longos períodos. Em “A intuição da ilha” – Os dias de José Saramago em Lanzarote”, que acaba de ser lançado no Brasil pela Companhia das Letras, Pilar reúne dezenas de crônicas sobre a vida do casal no arquipélago. A grande referência é “A Casa”, que ele mandou construir e onde montou sua biblioteca, recebeu amigos, jornalistas e personalidades de todo o mundo até o fim da vida e que hoje continua aberta à visitação com Pilar.
A jornalista conta como e por quais motivos ele escreveu seus principais livros, as dificuldades para construir determinados personagens e o prazer em concluir uma história, sempre incansável no enfrentamento da desigualdade e dos absurdos do mundo. “Viver era começar o dia, e assim viveu, construindo muitos outros dias, com a indestrutível vontade de chegar ao último sem ter posto, em nada, a palavra fim”, conta Pilar, que preside a Fundação Saramago, legado do autor, em plena atividade.
“A fundação intervém na vida cultural de Portugal. Colabora com outras fundações internacionais, participa de feiras de livros na Europa e na América, coopera com universidade, propõe, recebe, intercambia e, quando é necessário, toma partido defendendo coletivos a quem negam o respeito e a igualdade que as leis internacionais proclamam”, explica Pilar. “A intervenção cultural, o ativismo ambiental e a reclamação dos direitos humanos como o dever cívico são as bases” da fundação, lembra. “A paz é possível, se nos mobilizarmos por ela. Nas consciências e nas ruas”, escreveu Saramago quando a criou.
Além da rotina ao lado de Saramago, Pilar del Rio reproduz em “A intuição da ilha” muitos trechos dos “Cadernos de Lanzarote”, diário com seis volumes que ele escreveu nos primeiros anos na ilha, contando sua vida e seu trabalho, dos domésticos a ideias que viraram livros. Pilar explica: “A obra de José Saramago pode encontrar-se na casa dos leitores, em bibliotecas ou em livrarias de todo o mundo. Cada leitor constrói o autor e mantém com ele, ou com ela, sua própria relação. Este livro não pretende influir na relação entre quem lê e o autor, simplesmente conta detalhes da passagem do escritor pela ilha que escolheu para viver até o seu último suspiro, se é que os autores alguma vez deixam de respirar: há pessoas que dizem sentir nas bibliotecas organizadas com amor um certo murmúrio que bem poderia ser o pulsar dos escritores. Este livro serve para recordar momentos singulares vividos em Lanzarote, claro que sim, mas sobretudo tem como missão continuar a respiração que se sente na biblioteca d'A Casa”.
Entre os muitos jornalistas que foram a Lanzarote entrevistar o autor português, Pilar del Rio cita o mineiro Humberto Werneck, também “escritor muito conhecido e que Saramago respeitava”. Ele foi até lá enviado pela revista Playboy. Entre as muitas perguntas, Werneck indagou: “O que pretendia quando começou a escrever? Fama? Dinheiro?” Saramago respondeu: “Eu não queria nada. Queria apenas escrever. E quanto a isso de ser rico, eu nem agora penso em ser rico”. Então, Werneck perguntou: “O senhor não está rico?”. Saramago respondeu: “Não. Ao olhar para estas paredes, digo: 'Estão feitas com livros'. Não tenho bens de outra natureza.”
Em sua biblioteca, Saramago escreveu seus últimos livros. O penúltimo, “A viagem do elefante”, teve o seu primeiro lançamento feito no Brasil. E foi exatamente em sua derradeira viagem ao país, no trajeto entre Rio de Janeiro e São Paulo, que Saramago teve inspiração e anunciou sua última e polêmica obra, “Caim”, ao lado do cineasta Fernando Meirelles e dos editores Luiz e Lilia Schwarzc. “Ele contou que não queria morrer sem refletir sobre as primeiras páginas da Bíblia, sobre o crime que Caim perpetrou contra Abel sob o olhar onipotente de Deus”, lembra Pilar. “Estava outra vez levantando-se de sua debilidade para dizer que nem tudo está claro na relação dos seres humanos com o divino e que regressar à origem com olhar livre poderia ser seu último trabalho, a que não poderia renunciar”.
Saramago disse: “Deus pegou a mão de Caim, Deus parece gostar de sangue”, citando uma frase que já havia escrito em “O evangelho segundo Jesus Cristo”. Pilar conta: “Este livro seria a conclusão daquele (“O evangelho segundo Jesus Cristo”) que terminava com uma frase, ou um pedido, posto na boca de Jesus Cristo: 'Homens, perdoai-lhe, porque ele não sabe o que faz'”. O escritor reforçou que se ocuparia do ser supremo “que nem Jesus Cristo conseguiu entender, muito menos um autor ateu, respeitoso dos sentimentos religiosos das pessoas, radicalmente contra os dogmas que são exigidos aos crentes, e que, tantas vezes, ao longo da história, conduzem ao fanatismo e à tentativa de extermínio dos outros”.
Assim que voltou para Lanzarote, Saramago começou a escrever “Caim”, considerado o primeiro criminoso da humanidade, mas visto por ele como vítima. “Deus submeteu os filhos Adão e Eva a um jogo e o resultado é que Caim mata Abel. Mas Deus não o condena à morte, assumindo que o autor intelectual do crime não foi sua criatura”. Na ficção de Saramago, Caim passeia por episódios bíblicos, vive momentos terríveis e truculentos, como se quisesse mostrar que não há escapatória para o ser humano com a eterna culpa.
Pilar analisa: “Caim é um romance, também uma possibilidade de humanismo, o ser humano no centro de todas as coisas. Podendo ser entendido como um projeto de libertação e da igualdade, é, desde logo, uma ficção com muitas narrativas dentro. José Saramago sabia que lhe restavam poucos meses de vida e quis partilhar essas reflexões num último ato de respeito para com a condição humana”. Meses depois, Saramago morreu. Suas cinzas foram levadas para Portugal e postas sob uma oliveira – de novo uma planta – com o seguinte epitáfio: “Não subiu às estrelas, se à terra pertencia”. Saramago e oliveira se mesclaram como um grande legado de humanismo.
“A intuição da ilha – Os dias de José Saramago em Lanzarote”
- De Pilar del Rio
- 288 páginas
- Companhia das Letras
- R$ 99,90 (impresso)
- R$ 44,90 (digital)