Cláudia Maria de Vasconcellos*
Especial para o EM
O irlandês Samuel Beckett (1906 - 1989) aportou em solo nacional com o teatro. “Esperando Godot” foi montada pela primeira vez em 1955, em São Paulo, por Alfredo Mesquita, na Escola de Arte Dramática da USP. Nas décadas seguintes, montagens dessa peça sucederam-se regularmente e um interesse constante e crescente pelo autor fez com que aos poucos sua obra passasse a ser publicada. Não apenas de seu teatro – rotulado inicialmente como teatro do absurdo –, mas também de seus romances e contos, apareceram traduções. As décadas de 1980 e 1990 testemunharam o interesse por sua prosa, e, a partir do século 21, seus textos teatrais e em prosa têm aparecido em novas traduções, beneficiadas pela primeira geração de especialistas no autor de “Esperando Godot” e “Dias felizes”. No entanto, Beckett não escreveu apenas peças, romances e contos, mas praticou modalidades menos canônicas como teatro para rádio, pantomimas, roteiros televisivo e cinematográfico, produziu ensaios sobre literatura e artes, e – o que é geralmente ignorado pelo público –, um corpus vigoroso de poemas.
Pensar em um Beckett poeta pode parecer surpreendente a alguns. Deve-se lembrar, contudo, que o autor estreou profissionalmente com um poema – “Whoroscope” (“Horoscóputa”) – em 1930, e sabe-se que seu último texto, escrito quando adoentado em um asilo, foi também um poema. Aquilo que explica a pouca familiaridade do público leitor com esta faceta da obra é talvez o modo como o próprio autor a tratou. Diferentemente do drama e da prosa, seus versos não contaram com um minucioso trabalho de reunião e organização. Estes, depois de sua morte, apareceram como coisa dispersa, desafiando especialistas e editores a encontrarem nela uma unidade.
A recém-lançada “Poesia completa – Samuel Beckett”, organizada e traduzida pelos bravíssimos Marcos Siscar e Gabriela Vescovi, e publicada pela Relicário, traz para o público de língua portuguesa a reunião mais bem-sucedida e recente de seus versos. Trata-se de publicação baseada no volume “The collected poems of Samuel Beckett”, da Grove Press, lançado em 2012, sob os cuidados de dois scholars de peso nos estudos do autor irlandês: John Pilling e Sean Lawlor. A edição norte-americana, como explica Marcos Siscar na apresentação da “Poesia completa”, organizou os poemas em ordem cronológica, incluiu textos inéditos e corrigiu erros encontrados em outras publicações. A edição brasileira se beneficia desses feitos e poderia ser nomeada de edição trilíngue, pois ao lado dos poemas em inglês e em francês escritos por Beckett – e, em muitos casos, por ele mesmo vertidos ou transcriados em um ou outro idioma –, têm-se as versões em língua portuguesa (acompanhadas, diga-se de passagem, de notas esclarecedoras).
É preciso destacar, contudo, a importância desta publicação, e não apenas para os interessados em poesia contemporânea – pois Beckett, desde o princípio, anunciou um modo de entender esta arte que foi consolidado no século 21 –, mas também nos interessados na vasta e variada obra do autor – uma vez que seus poemas iluminam suas outras práticas literárias e vice-versa.
Se, em linhas gerais, pode-se dividir a poesia beckettiana em duas fases, uma anterior à Segunda Grande Guerra e outra a ela posterior, pode-se refinar a classificação. Como nota Marcus Siscar, os poemas pré-guerra misturam erudição com sarcasmo, criticam a vida burguesa e a religião, enaltecem a indolência, e usam tonalidade erótica. Ao final deste período, Beckett passa a escrever em francês, o que será decisivo e distintivo de sua obra pós-guerra, momento fértil que lança as bases para uma poética (em sentido largo) com dicção própria. Após a guerra, portanto, a obra dá uma guinada estilística, e, no que tange à poesia, assume-a como jogo sonoro-rítmico, fazendo amplo uso das repetições, como acontece emblematicamente em “Mirlitonnades” (Gaiteados), compostos na década de 1980.
É fascinante acompanhar o progresso da obra beckettiana com a leitura dos poemas. Se escolhermos, por exemplo, o primeiro do livro, “The vulture” (“O abutre”, 1935), que abre o conjunto “Echo’s bones and other precipitates” (“Ossos de Eco e outros precipitados”), encontramo-nos diante de uma paródia de Goethe, em que a romântica ode “Harzreise im winter” é transformada por tons perturbadores, e a criatividade artística passa a ser representada como um abutre consumindo, no crânio do poeta, o que seria pura carniça. Como comentou recentemente Marjorie Perloff, umas das maiores críticas da poesia contemporânea, Beckett redige seu “O abutre” na qualidade de um jovem profundamente erudito e profundamente infeliz, desafiando a cultura oficial (em “Infrathin, an experiment in micropoetics”, The University of Chicago Press, 2021). E, no entanto, esse poema, apesar do traço ácido e parodístico, respeita as normas da versificação e da composição em estrofes, e, nota Perloff, vale-se do modo simbolista de poetas de geração antecedente.
Substituição da sintaxe
Mas paisagem estilística e tom mudarão, transformados talvez por uma inquietação estética, confessada por Beckett em 1937, em carta ao amigo alemão Axel Kaum. Nesta famosa carta, fala ao amigo da necessidade de se libertar da língua inglesa, que, como um véu, tramado por estilo e gramática, impede-o de chegar às coisas (ou ao Nada). Beckett clama por uma nova era em que a linguagem será “mais eficientemente empregada, quando mal-empregada”. Se aqui se anuncia a adoção do francês como novo meio linguístico, esclarece-se também que o processo perfurador recusará, no campo da poesia, o gênero lírico, com suas odes e elegias – enfim, com toda a tradição formal –, e recusará também uma certa sintaxe, que será substituída por outra mais desafiadora.
Os aspectos soantes, rítmicos, repetitivos, mal ditos e mal empregados, compreendidos na divisa “tentar de novo, falhar de novo, falhar melhor”, afirmam-se então com uma nova via. Em “Comment dire” (“Como dizer”), último poema do livro, lê-se: “folie -/ folie que de -/ que de -/ comment dire -/ folie que de ce -/ depuis -/...”. Longe da seara lírica, Beckett se interessará em reconfigurar a linguagem poética. É esse caminho que se divisa nesta “Poesia completa”. Melhor dizendo, a “Poesia completa” ilumina, em sentido muito amplo, a linguagem poética de Beckett, praticada nos textos curtos e sem classificação genérica, textos compostos a partir dos anos 1950 e interessados, como no poema acima citado, na loucura (folie) de dizer e na loucura de investigar como dizer (comment dire).
Esta “Poesia completa” é leitura obrigatória para os admiradores de Beckett, bem como para todos os interessados e/ou intrigados pela poesia contemporânea.
“Poesia completa”
• Samuel Beckett
• Relicário-Edição bilíngue
• 288 páginas
• R$ 82,90
“O abutre”
arrastando sua fome pelo céu
de meu crânio concha de céu e terra
precipitando-se sobre os propensos
que logo tomam suas vidas e andam
traído por tecido que talvez não sirva
até que fome terra e céu virem carniça
“Ossos de Eco”
asilo em meu passo ao longo deste dia
seus surdos festins se a carne decai
largando ventos sem medo ou permissão
vai o corredor da morte entre tino e desatino
tomados por caprichos pelo que são
“Ascensão”
através da fina divisória
no dia em que a filha
a seu modo pródiga
voltou para a família
eu ouço a voz
que comenta comovida
a copa do mundo de futebol
sempre jovem demais
ao mesmo tempo da janela aberta
vindo pelos ares
o som abafado
de fiéis em vagas
seu sangue jorrou abundante
em lençóis ervilhas-de-cheiro em seu amante
com dedos abjetos ele lhe cerrou as pálpebras
sobre os grandes olhos verdes espantados
agora sobrevoa leve
minha lápide de ar
Novas edições dos primeiros romances
Além da “Poesia completa”, editada pela Relicário, as livrarias do Brasil recebem mais dois lançamentos de Samuel Beckett (1906-1989), Prêmio Nobel de Literatura em 1969. O romance de estreia, “Murphy”, escrito entre 1935 e 1936, ganha edição da Companhia das Letras, com tradução de Fábio de Souza Andrade, que também assina um dos posfácios. “Salvo engano, Murphy é o primeiro desaparecido beckettiano”, aponta Nuno Ramos, autor do outro prefácio: “É ao desaparecido que cabe o interesse, a espessura e a graça, e nisso Murphy rascunha Godot.” O outro lançamento é “Watt”, o segundo romance do irlandês, escrito durante a Segunda Grande Guerra e publicado apenas em 1953. A tradução do livro que o autor, nascido em Dublin, considerava “um exercício” é de Fábio de Souza Andrade, com posfácios de Luciano Gatti e Ruby Cohn. Os dois foram concebidos antes dos grandes clássicos de Beckett: “Esperando Godot” (1949), “Molloy” e “Malone morre” (ambos de 1951) e as peças “Fim de partida” (1957) e “Dias felizes” (1961).
*Cláudia Maria de Vasconcellos é professora doutora do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), e autora de “Samuel Beckett e seus duplos: Espelhos, abismos e outras vertigens literárias” (Iluminuras, 2017)