André de Leones*
Especial para o EM
A certa altura de “O passageiro” (Alfaguara), alguém diz: “Hoje encontrei um homem chamado Robert Western cujo pai tentou destruir o universo e cuja suposta irmã provou ser uma ET que morreu pelas próprias mãos. E quando refleti sobre sua história, me dei conta de que tudo que considerei verdadeiro com respeito à alma humana talvez não valha nada”. Haveria formas melhores de apresentar o protagonista, e essa descrição um tanto rude – que termina com um “Atenciosamente, Sigmund” – talvez esconda mais do que revele. Exceto como piadas, não há simplificações possíveis no novo romance de Cormac McCarthy , autor de romances cultuados como “Meridiano de sangue” e “Onde os fracos não têm vez” (adaptado para o cinema pelos irmãos Coen). “O passageiro” é o primeiro romance que ele lança desde “A estrada” (2006).
Western, de fato, é filho de um físico que participou do programa norte-americano de desenvolvimento da bomba atômica, e sua irmã, Alicia, gênio matemático, esquizofrênica, cometeu suicídio. O amor que sentia e ainda sente por ela não é apenas fraternal. Western também estudava física, mas abandonou o doutorado e foi para a Europa pilotar carros de corrida, quase morreu em um acidente e agora (a história começa em fins de 1980) ganha a vida como mergulhador profissional.
A relação incestuosa entre os irmãos perpassa todo o livro, cujo ordenamento acentua a fantasmagoria que cerca Western. Cada capítulo inicia com passagens em itálico nas quais Alicia lida com suas memórias e alucinações. Quando suspende a medicação, ela se vê papeando com diversas criaturas, das quais a mais presente é um certo Kid Talidomida: “Todos se reuniam ao pé da sua cama. Quando ela acendia a luminária, piscavam por causa da luz”. Há passagens desoladoras, em que a incognoscibilidade do mundo, em si já difícil de suportar, é parodiada na terra devastada da doença. Ali, viaja-se na “velocidade da escuridão”, da qual, segundo o Kid, “ninguém quer falar”. Nesse ponto, é importante frisar que “O passageiro” é acompanhado por outro romance, “Stella Maris”, protagonizado por Alicia, e que a Alfaguara lançará no primeiro semestre de 2023.
O mistério existencial de Western, a solidão abrasiva que parece defini-lo, esbarra em um mistério de outra ordem: contratado sabe-se lá por quem, ele explora um avião submerso, do qual desapareceram a caixa-preta, a maleta do piloto e um dos passageiros. Há muita coisa inexplicável com relação a esse trabalho. A inquietação do personagem faz com que saia por aí fazendo perguntas e, claro, ele passa a ser acossado por agentes e agências governamentais. Aconselhado pelo advogado, Kline, um dos melhores personagens do livro, chega à conclusão de que precisa desaparecer não só dentro de si mesmo (coisa já em curso), mas no próprio mundo.
McCarthy é inteligente demais para baratear esse outro mistério, preferindo inscrevê-lo na ordem do mistério maior, metafísico-existencial, tornando-o um índice dos desaparecimentos (literais e figurativos) do protagonista. Algo similar ocorre com o pai de Western, e talvez haja uma espécie de espelhamento das existências dos dois homens. Em um desenrolar que nos remete ao Unabomber (sem, claro, a sanha terrorista), o pai também abandonou a academia e se refugiou em uma cabana no meio do mato. O destino de Western guarda algumas semelhanças com o do velho.
Casas são invadidas, papéis, cartas e objetos familiares desaparecem, e é difícil precisar o que em tudo isso tem mais a ver com o pai, seu trabalho e sua loucura, ou com os filhos. No fim, dado o abandono de Western em si mesmo, isso talvez não faça diferença. “Ao serem recordados”, diz um personagem (a essa altura, outro fantasma), “os sonhos e a vida adquirem uma estranha igualdade que os funde. E acabei suspeitando que o chão sobre o qual caminhamos depende menos de nossas escolhas do que imaginamos. E, enquanto isso, um passado que mal conhecemos é transmitido para nossas vidas como um investimento duvidoso. A história desses tempos será difícil de relatar, Squire. Mas, se há um traço comum em nossa compreensão, é que somos defeituosos. No fundo, é isso que sabemos”.
Debussy, Vietnã e Einstein
Embora geograficamente mapeáveis, as andanças de Western parecem se dar cada vez mais no plano fantasmagórico em que ele se encontra. Nesse sentido, mesmo os longos diálogos que mantém com conhecidos e parentes, as lembranças familiares de Debussy ou da avó materna, as experiências no Vietnã de Oiler, as teorias de Kline sobre o assassinato de John Kennedy, as conversas sobre física com Asher (“Não foram só os dados quânticos que perturbaram Einstein. Foi toda a noção subjacente. A indeterminação da própria realidade.”), mesmo esses longos diálogos regados a café ou álcool adquirem um teor evocativo, como se ocorressem entre sobreviventes de uma civilização há muito destruída.
É sabido que McCarthy passa bastante tempo no Santa Fe Institute papeando com teóricos e filósofos das mais diversas cepas. Essa carga especulativa comparece em “O passageiro”, e uma das melhores coisas relativas a ela é o fato de o autor não dar a mínima para a sua “função narrativa”. Há várias passagens do romance que estão ali não para fazer a história avançar, mas para tornar palpável — ou ao menos nomeável — as inquietações dos personagens. Em se tratando de um material no qual o autor trabalha desde os anos 1980, é possível ver o quanto o adensamento filosófico é diretamente proporcional à precariedade da linguagem para dar conta de certos conceitos, ideias e sensações.
Sendo um romancista, e um dos melhores, McCarthy sabe quando é o momento de recuar junto com seu protagonista. Quando a conceituação esbarra na indeterminação da realidade enquanto tal, resta a realidade da vida, das memórias, dos sofrimentos e da beleza particulares. Em última instância, a experiência dessas coisas é intraduzível, mas não (paradoxalmente) incomunicável. Eis o que “O passageiro” ilumina em seu mergulho.
“O passageiro”
• Cormac McCarthy
• Tradução de Jorio Dauster
• Alfaguara
• R$ 84,90
• E-book: R$ 39,90
• 392 páginas
Trecho De “O passageiro”, de Cormac McCarthy
Sendo assim, até que ponto o mundo é ruim?
Até que ponto? A verdade do mundo constitui uma visão tão aterradora que torna insignificantes as profecias do mais pessimista vidente que jamais pisou neste planeta. Desde que se aceite isso, então a ideia de que tudo um dia vai virar pó e se perderá no vácuo deixa de ser uma profecia para se transformar numa promessa. Agora me permita lhe fazer a seguinte pergunta: Quando nós e todas as nossas obras tivermos desaparecido para sempre, junto com a lembrança delas e todas as máquinas em que tais recordações possam ter sido codificadas e guardadas, quando a terra não for nem mais uma brasa ardente, então para quem isso será uma tragédia? Onde encontraríamos tal ser? E quem o encontraria?.
*André de Leones é autor do romance “Eufrates” (José Olympio), entre outros