Jornal Estado de Minas

PENSAR

Escritora uruguaia explora os afetos possíveis após catástrofe ambiental


“O começo nunca é o começo. O que confundimos com o começo é só o momento em que entendemos que as coisas mudaram.” As mudanças no mundo de “Gosma rosa” se iniciaram com milhares de peixes mortos na praia de uma cidade sul-americana não identificada, onde vive a protagonista. Não há explicações para a mortandade, apenas descrições de situações decorrentes da ação humana – e essa é uma das virtudes do romance da escritora uruguaia Fernanda Trías, premiado no país da escritora, apontado pelo “The New York Times” em espanhol como um dos 10 melhores livros de 2020 e um dos grandes lançamentos a chegar às livrarias brasileiras em 2022. 





Lançado no Brasil pela editora mineira Moinhos, com tradução de Ellen Maria Vasconcellos, “Gosma rosa” se passa em uma cidade portuária onde ocorreu um incidente ambiental de origem desconhecida. Algas roxas e tóxicas tomaram as águas do litoral e, de vez em quando, um vento venenoso anunciado por nuvens vermelhas atinge a cidade. Ao entrar em contato com esse vento, as pessoas adoecem; a maioria delas morre, outras ficam em isolamento, em hospitais vigiados pelo governo. 

Apesar de transcorrido numa época em que “a epidemia não dava sinais de melhora”, “Gosma rosa” tem mais relação com a consequência das alterações climáticas que o planeta atravessa do que com a pandemia de coronavírus. Até porque, o livro foi finalizado em 2019; antes, portanto, do registro do primeiro caso de Covid no mundo. “Uma grande catástrofe ambiental se tornaria, sem dúvida, uma emergência de saúde pública: esse contexto, as autoridades de saúde passam a desempenhar um papel mais intrusivo na vida das pessoas e isso traz outra série de conflitos. Foi o que vivenciamos posteriormente com a pandemia, mas quando escrevi o livro nunca tinha vivido uma situação como esta e tentei imaginar como seria”, revela a escritora em entrevista ao Pensar, do Estado de Minas.

Fernanda Trías, em outro grande acerto do livro, se mostra menos interessada em detalhar a realidade distópica e mais disposta a investir na complexidade das relações afetivas da narradora com a mãe, com o ex-marido (isolado em um hospital) e com uma criança, portadora de uma doença rara, que ela tem de cuidar. “Para mim, o mais importante era explorar os laços afetivos, toda a gama cinzenta de relações humanas complexas e, ao mesmo tempo, construir um pano de fundo distópico”, afirma. “O foco não estava tanto na catástrofe ou nas razões para a catástrofe, mas na história sobre a relação entre uma criança que sofre de síndrome de Prader-Willi (doença genética que provoca “uma fome avassaladora que impede qualquer outro pensamento”, na descrição do livro) e uma mulher que não era sua mãe biológica, mas sua cuidadora, e como esse vínculo com a criança ‘doente’ e ‘incompreensível’ vai a mudando até transformá-la”, detalha.





A vigilância rigorosa e constante de forças do estado sobre os cidadãos, mediada pela onipresença da televisão como fonte de notícias nada confiáveis, traz ecos de obras clássicas do século 20 como “1984”, de Orwell, e “Admirável mundo novo”, de Aldous Huxley. Quase sem opções de alimentação por causa da contaminação de peixes, aves e vegetais, os moradores da cidade recorrem a traficantes de comida ou à ‘gosma rosa’ que batiza o livro, um composto gelatinoso com cheiro de sangue coagulado e a função de “multiplicar a carne e nos alimentar, criando salames artificiais.”

A perturbadora aparição de névoa espessa e colorida que transforma o porto em pântano e envolve os habitantes da cidade “como faixas de gaze”, antecedida por um alarme igualmente amedrontador, traz maior tensão à narrativa lacônica, pontuada por idas e vindas no tempo e imagens fortes. O ambiente criado por Fernanda Trías, contudo, é apenas o pano de fundo para a escritora devassar a condição feminina diante de situações extremas. Para a narradora, será necessário promover um acerto de contas com formas diferentes de sentimentos, das formas possíveis de maternidade aos desacertos amorosos, para vislumbrar algum escape – e, curiosamente, o Brasil é o refúgio planejado – e “o triunfo da vida sobre a morte de ácido e escuridão”.


Beleza na desolação

Nascida em Montevidéu, em 1976, Fernanda Trías publicou também as novelas “Cuaderno para un solo ojo”, “La azatea”, “La ciudad invencible” e o livro de contos “No soñará flores”. “Mugre rosa” (título original), seu romance de maior repercussão, já foi traduzido para o italiano, dinamarquês e sueco. No primeiro semestre de 2023, sairão edições em alemão, francês e inglês. E ainda haverá traduções para o árabe, turco, grego e amárico (idioma da Etiópia). Na América Latina, as resenhas têm sido muito positivas. “Trías tem um talento especial para resgatar a beleza poética em meio à desolação”, apontou crítica no jornal boliviano “Página Siete”. “A prosa de Fernanda Trías é carregada de ondas fortes e enérgicas que nos atingem e, ao mesmo tempo, curam a nossa alma”, afirmou a resenha do periódico colombiano “El Espectador”, de Bogotá, onde a escritora vive atualmente.





Além de críticas entusiasmadas, “Gosma rosa” recebeu reconhecimentos importantes, como os prêmios Bartolomé Hidalgo, no Uruguai, e Sor Juana Inés de La Cruz na Feira do Livro de Guadalajara, no México. Recentemente, ela participou da Bienal do Livro do Ceará e constatou que o Brasil imaginado por suas personagens é parecido com o que conheceu em Fortaleza. “Não esperava que fosse perfeito, e sei quais são os problemas comuns aos países latino-americanos, mas encontrei vitalidade, uma força que se expressa mesmo em circunstâncias difíceis”, conta a fã de “A paixão segundo GH”, de Clarice Lispector. Entre os autores favoritos de seu país, Trías cita Feliberto Hernández, Juan Carlos Onetti, Cristina Peri Rossi e Marosa di Giorgio. Conviveu com Mario Levrero, autor do cultuado “O romance luminoso”, que ela define como “o mestre de tantos aspirantes a escritor, leitor generoso e fenômeno literário”. Também inclui William Faulkner, Flannery O’Connor e Carson McCullers entre os escritores prediletos. A seguir, uma entrevista por e-mail com Fernanda Trías, uma das vozes mais potentes da literatura latino-americana contemporânea. 


        
Como surge “Gosma rosa”?
Tudo o que escrevo surge de uma conjunção de elementos que me desafiam e que se traduzem em obsessões, sonhos ou pesadelos insistentes. São preocupações pessoais e coletivas, porque tudo o que se refere ao mundo também me afeta. Neste caso, eu vinha pensando há muitos anos sobre as mudanças climáticas, o antropoceno e como uma crise ambiental poderia afetar nossas vidas, e a isso se somou a questão da maternidade, que se tornou mais presente para mim desde que completei 40 anos e reafirmei minha decisão de não ter filhos. No entanto, ao meu redor, observei muitos tipos de famílias: laços de sangue disfuncionais, famílias por escolha, maternidades comunitárias, maternidades adotivas e assim por diante. ‘Como você se torna mãe?’ foi a pergunta inicial. Existem muitas maneiras de ser mãe, por isso não foi possível pensar sobre o assunto de apenas uma maneira. Para explorá-lo, tive que pensar como um caleidoscópio e, a partir da imagem do caleidoscópio, cheguei à ideia de espelhos. Mas ainda mais do que o tema da maternidade, eu estava interessada no ato de cuidar. Cuide do outro, cuide de si mesmo, cuide do planeta. Faz parte da mesma coisa. Se como sociedade pudéssemos nos relacionar a partir de uma ética do cuidado, talvez o mundo não fosse como é. Finalmente, havia o tema da criança doente, que é inspirado por uma síndrome real, a síndrome de Prader-Willi. Pessoas com essa síndrome têm muitas repercussões físicas, psicológicas e comportamentais, mas o mais impressionante é que elas sentem fome constante, porque seu cérebro não recebe o sinal de saciedade. A partir de todos os elementos, a história começou a ser configurada.

Em que mundo vivem os personagens do livro?
A história se passa em uma cidade portuária onde ocorreu um incidente ambiental de origem desconhecida. Algas roxas e tóxicas tomaram as águas da costa e, de vez em quando, um vento venenoso anunciado por nuvens vermelhas atinge a cidade. Ao entrar em contato com esse vento, as pessoas adoecem e a maioria delas morre. O que eu queria era trabalhar nessa fronteira entre o distópico e o real. Eu queria que parecesse com a realidade como a conhecemos, mas não muito detalhada ou atualizada, para gerar o rarefeito que a leitura produz. Não me interessava construir um mundo completamente futurista, e sim um mundo muito parecido com o atual, mas com os problemas de saúde que atrapalham a vida dos protagonistas e acentuavam os conflitos interpessoais. Como descobrimos na pandemia de Covid, os conflitos interpessoais se aceleram em uma situação de confinamento, incerteza e medo.





Não há explicações detalhadas para o que causou as mudanças no ambiente que reduziram as escolhas alimentares e confinaram os seres humanos. Mas eu acho que é uma questão de catástrofe ambiental que é mais decisiva para seus personagens do que a saúde pública, certo?
Uma grande catástrofe ambiental se tornaria, sem dúvida, uma emergência de saúde pública. Nesse contexto, as autoridades de saúde passam a desempenhar um papel mais intrusivo na vida das pessoas e isso traz outra série de conflitos. Foi o que vivenciamos posteriormente com a pandemia, mas quando escrevi o livro nunca tinha vivido uma situação como esta e tentei imaginar como seria. Imaginei que os governos tenderiam a uma atitude mais autoritária, de supressão das liberdades individuais, e que isso traria toda uma polêmica sobre o limite entre o bem-estar pessoal e coletivo. No romance, eu me pergunto: uma pessoa tem o direito de dispor de sua própria vida e decidir não ser salva?. E quais seriam as implicações dessa decisão para todos os envolvidos?

Como você reagiu quando percebeu que algumas das situações descritas no livro ocorreram na pandemia em 2020?
Demorei um pouco para perceber isso. Eu estava pensando sobre a mudança climática e como uma crise ambiental poderia afetar nossas vidas por muitos anos, então eu não a associei rapidamente a uma pandemia causada por um vírus. Pelo contrário, foram os leitores de confiança a quem mostrei o manuscrito pouco antes de ser publicado que apontaram as semelhanças: máscaras, hospitais lotados, controle estatal, desinformação, confinamento, assim por diante. Quando finalmente percebi, fiquei com medo de que “Gosma rosa” se tornasse um “livro de pandemia”. Eu não queria que a conversa fosse desviada das questões ambientais. E não queria que aquele mundo rarefeito que eu queria propor ao leitor de repente se tornasse realista. Mas, no final, o percurso dos livros surpreende sempre os autores e acabou por ser muito interessante a forma como muitos leitores se ligaram à experiência do narrador a partir da sua própria experiência com o confinamento, claustrofobia, medo e incerteza da Covid e que permitiu uma leitura que, antes da pandemia, teria sido impossível.

Parece-me que as relações que se estabelecem entre a protagonista de sua história com a mãe, com o ex-marido e, principalmente, com o garoto de quem ela cuida são mais importantes para você do que a descrição de um ambiente distópico. Concorda com essa visão? 
Concordo totalmente. Para mim, o mais importante era explorar os laços afetivos, toda a gama cinzenta de relações humanas complexas e, ao mesmo tempo, construir um pano de fundo distópico. O foco não estava tanto na catástrofe ou nas razões para a catástrofe, mas na história sobre a relação entre uma criança que sofre de síndrome de Prader-Willi e uma mulher que não era sua mãe biológica, mas sua cuidadora, e como esse vínculo com a criança “doente” e “incompreensível” a vai mudando até transformá-la. Também, claro, a relação da personagem com a mãe e com o ex-marido são importantes porque o romance é sobre relacionamentos afetivos e sobre “apegos ferozes”.

O seu livro me lembrou os versos de “Anthem”, música de Leonard Cohen: “Há uma rachadura em tudo / É assim que a luz entra”. Você concorda que, mesmo em um ambiente tão cinzento e desolado, é possível ver alguma luz, alguma esperança?   
Sim, eu pelo menos vejo essa luz. E fico feliz que você também veja. Também estou muito feliz com essa pergunta porque sou fã de Leonard Cohen desde muito jovem e essa música sempre esteve presente na minha vida. Se o mundo fosse completamente horrível, então sua destruição não importaria. Mas o mundo, mesmo em um momento sombrio como o presente, também está cheio de rachaduras através das quais a luz se infiltra. O ser humano é capaz de crueldade, mas também de empatia, é capaz de ambição excessiva, mas também de criar arte. Quero pensar que podemos encontrar caminhos para reparar o tecido social que está totalmente danificado, e esse é o pequeno raio de esperança, a partir da solidariedade e da organização comunitária, da construção de uma ideia mais ampla da família.





Como você vê o destaque nos últimos anos das mulheres na ficção latino-americana? 
Estamos passando por um período de maior visibilidade do trabalho das escritoras, impulsionado pelo movimento feminista pós-2015. Mais escritoras estão sendo publicadas e traduzidas do que antes e há vozes poderosas (mas sempre houve vozes poderosas). Parte disso é mercado e parte disso é real, uma sinergia inexplicável, como em todas as “gerações” literárias. Mas, neste caso, há algo de positivo, porque eles estão tentando reparar uma invisibilização histórica. 

Você acha que a literatura, por meio de distopias ou da ficção científica, tem a capacidade de antecipar o futuro?
Sim, porque acredito que o inconsciente coletivo tem acesso a uma quantidade de informação que, conscientemente, não podemos acessar. Eu também acredito que o tempo funciona de maneiras misteriosas, que ainda não podemos compreender. Acreditar que o futuro vem depois do passado é uma convenção. Talvez tudo esteja acontecendo ao mesmo tempo. É também disso que trata este romance.

Por que o Brasil aparece várias vezes como o lugar pretendido para o futuro de seus personagens?
Sendo uruguaia, o Brasil representa muitas coisas para nós.  A gente se sente como um irmão mais novo, menos bonito e atraente. De alguma forma, nos sentimos invisíveis para o Brasil, que não olha para baixo, mas para dentro. O Brasil representa “o muito, o insondável e o enigmático”. E também representa uma intensidade e diversidade que nós, como povo e com as nossas idiossincrasias, não temos. Não me refiro ao clichê de “alegria”, quero dizer criatividade transbordante, que é outra forma de vitalidade. Para o protagonista, o Brasil se torna aquele lugar utópico para se sonhar.





Você esteve no Brasil recentemente. Parecia o lugar onde seus personagens sonham com “Gosma rosa”? Quais foram suas impressões sobre o país?
A verdade é que sim (risos).  Não esperava que fosse perfeito, e sei quais são os problemas comuns aos países latino-americanos, mas encontrei essa vitalidade, uma força que se expressa mesmo em circunstâncias difíceis. Um orgulho, também, a cabeça erguida. Dá a impressão de ser um povo que pode cair, mas também se reerguer. A Bienal do Livro de Fortaleza me impressionou muito pelo compromisso político radical: um compromisso com a diversidade e com a abertura do espaço para vozes que historicamente foram relegadas às margens.

Há passagens no livro com imagens muito fortes e um tanto incomuns.  Como você veria uma possível adaptação audiovisual? Há algo de concreto a esse respeito? Gostaria de participar de uma adaptação?
Eu definitivamente adoraria. Seria uma experiência inigualável poder ver em imagens o mundo que eu imaginava. E acho interessante a adaptação literária para o audiovisual, pois são duas linguagens com desafios diferentes. No momento, estamos trabalhando em um possível roteiro, mas o mundo dos filmes é tão lento e tão complexo que há uma distância muito grande entre o roteiro e a possibilidade real de ele se tornar um filme. Então, vou continuar sonhando.


Depoimento

“Percebi que aquele livro se punha de maneira extraordinária para mim”

“Fernanda Trías já era um nome que eu conhecia por seu livro, pela maneira de dizer as coisas sem forçar a beleza nas palavras. Quando li “Mugre rosa” (“Gosma rosa”), estávamos no início da pandemia e percebi que aquele livro, ao se antecipar a algo horrendo para humanidade, se punha de maneira extraordinária para mim. A perda do senso da perso- nagem principal, a desilusão com tudo, a falta de amor e certa solidão presente nela e em seus relacionamentos familiares e pessoais, além do ambiente em que tudo acontecia, foi o que me fisgou. É difícil, às vezes, utilizar adjetivos para destacar certas obras, mas a beleza na escrita da Fernanda, em meio ao que comento, me fez decidir finalmente por pu- blicá-la e a Moinhos está muito feliz com isso.”





Nathan Matos, editor da Moinhos, responsável pela edição brasileira de “Gosma rosa”

(foto: Moinhos Editora/divulgação)

“Gosma rosa”
• Fernanda Trías
• Tradução de Ellen Maria Vasconcellos
• Moinhos Editora
• 225 páginas
• R$ 68. 
• E-book: R$ 47,99.