Jornal Estado de Minas

PENSAR

Daniel Galera: 'Fizemos a transição para o tempo das crises planetárias'


Em julho do ano passado, em entrevista ao Pensar, perguntamos justamente sobre os 10 anos de “Barba ensopada de sangue”: o que significou esse romance na sua trajetória e se pretendia escrever novamente um livro com mais de 400 páginas. Na resposta, você afirmou ter orgulho do livro, mas não ter interesse em produzir um livro tão longo. À luz dessa celebração de 10 anos, considerou rever esta posição e tentar de novo escrever um livro de 400 páginas? Ou segue sem disposição para narrativas tão longas?
Sei que meu próximo livro será um romance, mas sinceramente não consigo dizer qual é minha disposição em termos de forma e extensão. Reler "Barba ensopada de sangue" este ano pode ter reavivado meu desejo de produzir uma narrativa muito longa. Mas a ideia acaba ditando a sua extensão. Vou ter que escrever pra descobrir.





Considera que algumas questões levantadas em “Barba ensopada de sangue” apareceram também em seus romances subsequentes?
Seria mais fácil discutir a partir de questões específicas. Mas, de modo geral, penso que "Meia-noite e vinte" e "O deus das avencas" são romances bem diferentes de seu antecessor, tanto no estilo quanto nos temas. Neles, lidei mais diretamente com questões sociais e políticas do presente. "Barba ensopada de sangue" mimetiza a realidade em alguma medida, mas depende muito mais de assuntos e de uma sensibilidade que poderíamos chamar de atemporal: é sobre a solidão, a morte, a natureza, a propagação fractal de mitos e histórias. Ele gira em torno de certas premissas metafísicas, como o determinismo. Nos livros seguintes, considerações desse tipo deixaram de ser centrais. Vejo mais diferenças do que semelhanças.

A primeira vez que tivemos contato com “Barba ensopada de sangue” foi na revista “Granta”, na edição que reuniu o que chamou de "os melhores jovens escritores brasileiros" e publicou o primeiro capítulo do livro, sob o título "Apneia". Do que se recorda da recepção e da expectativa que a divulgação do trecho trouxe para o lançamento do livro? 
A recepção foi muito positiva, me surpreendeu e certamente gerou alguma dose de interesse prévio no romance que viria a ser publicado. Por muito tempo, tudo que eu tive de "Barba ensopada de sangue" era esse capítulo de abertura e pilhas de anotações. Talvez eu o tenha escrito para demonstrar a mim mesmo que seria capaz de fazer o resto do livro.

O que a repercussão de “Barba ensopada de sangue” trouxe de positivo e negativo para sua vida e para a sua atividade literária?
Acho que o positivo é um tanto óbvio: alguns prêmios, algum dinheiro, edições estrangeiras. De negativo não trouxe nada. Exceto, talvez, a decepção de quem o considera meu melhor trabalho e espera encontrar mais do mesmo nos meus livros subsequentes.





Em 2012, ano de lançamento do livro, havia ainda um otimismo do mundo em relação ao Brasil, como se nós estivéssemos finalmente encontrado um caminho rumo ao desenvolvimento.  A própria repercussão global de “Barba ensopada de sangue” reflete um pouco isso: o Brasil era "hot", estava na moda. Dez anos depois, qual lugar que o Brasil ocupa no imaginário mundial? E qual o espaço que a literatura contemporânea ocupa na produção cultural brasileira?
Nas presidências petistas, houve investimento sólido e inteligente em cultura. Desde a criação de bibliotecas e a distribuição regional de recursos até a promoção da cultura brasileira no exterior. Na literatura, isso se expressou em bolsas de tradução e no apoio a delegações de autores que viajaram a feiras onde o país foi homenageado, como em Frankfurt e Paris. Meu romance se beneficiou desse vento favorável, assim como ocorreu com outros autores na época. O governo Bolsonaro se esforçou para desmontar essas conquistas e, não contente, transformou o país numa piada de mau gosto. Em outros países, creio que a cultura brasileira é um dado que simplesmente se apagou, pois empalidece diante de questões como a devastação ecológica e as ameaças à democracia e aos direitos humanos. É de se esperar que a vitória de Lula reverta isso. Com sorte, a promoção da nossa cultura guardará uma espécie de "memória muscular" da era pré-Bolsonaro e novos e diferentes autores terão seu trabalho levado a leitores de outros países.

Dez anos depois, estamos em um lugar bem diferente. Como você mesmo escreve nas palavras finais da edição comemorativa: "Na época em que foi escrito e na qual se passa a narrativa, o iPhone era uma novidade, não tínhamos passado pelos protestos de 2013, pelo impeachment, pela eleição da extrema-direita. A inocência política do romance (...) é algo que me chama a atenção hoje". Acredita que cruzamos alguma linha rumo a um pessimismo? Teme que isso deixe o livro datado, de algum modo?
Se cruzamos alguma linha de lá para cá, creio que foi a última linha do local para o global. "Barba ensopada de sangue" foi escrito quando ainda era possível abordar os impasses do dia a dia como problemas locais e individuais, ou no máximo concernentes a certos grupos bem delimitados de pessoas. Em 15 anos, fizemos a transição definitiva para o tempo das crises planetárias. As crises do clima e do capitalismo global forçam a humanidade toda a reconhecer que pertencemos a um só mundo interconectado, um mundo que está em veloz processo de destruição devido à ação humana. A aldeia como mundo autossuficiente deixa de fazer sentido, e ao mesmo tempo é pra essa aldeia que um vasto contingente da sociedade deseja retornar para enfrentar as crises do presente: o pertencimento a uma terra, a disputa com o diferente e o estrangeiro, os modelos patriarcais e religiosos de família et cetera. A Garopaba do romance é retratada como uma aldeia isolada, assim como a jornada do protagonista é essencialmente individual. Não acho que isso deixe o livro datado, mas somente porque é possível lê-lo criticamente da perspectiva do presente. É um livro transicional, sem dúvida, escrito e publicado num momento crucial de inflexão. Assuntos que nele eram mais circunstanciais na época do lançamento, como ecologia, masculinidade tóxica e polarização política, se tornam prismas dominantes para o leitor atual. Relendo o livro, acho que ele traz elementos de reflexão que se atualizam. Minhas conversas recentes com leitores e análises críticas feitas em torno desse relançamento reforçam isso.

No prefácio da edição comemorativa, Carol Bensimon fala que “Barba ensopada de sangue” funciona como uma espécie de prenúncio da catástrofe ambiental que hoje, 10 anos depois, ainda estamos começando a entender, mas já estamos sofrendo as consequências. Quando escrevia o livro, já vislumbrava o caminho rumo à catástrofe ambiental que estamos tomando?
A discussão ambiental ocorre pelo menos desde os anos 1970, mas até cerca de uma década atrás esse assunto ainda parecia um capricho de ambientalistas, ou um perigo distante que demoraria para nos alcançar, ou que alcançaria somente outras pessoas, em outros lugares. Vivendo em Garopaba no fim da década de 2000, percebi ao meu redor, de maneira muito mais direta e urgente, a velocidade e a gravidade da destruição ambiental. Ela estava nos morros tomados de mansões construídas ilegalmente, no esgoto que já tornava as águas poluídas demais para o banho (embora esses dados sejam desde sempre maquiados), no avanço da cidade sobre a orla, na erosão, na perda de biodiversidade, na pura e simples feiura da ocupação humana descontrolada. Se isso não me entristecesse tanto, talvez eu tivesse me estabelecido na cidade e ficado.





Recentemente, a prosopagnosia, condição do protagonista, ganhou as manchetes após o ator Brad Pitt revelar que sofre do problema. Muita gente relacionou a notícia ao protagonista de “Barba ensopada de sangue”? Essa notícia chamou a sua atenção?
No Twitter, algumas pessoas fizeram essa relação, eu mesmo postei alguma brincadeira. A prosopagnosia em sua forma atenuada não é um problema tão raro, acomete quase 5% das pessoas. É até hoje um diagnóstico difícil, mas que pode estar relacionado a transtornos de comportamento sérios. É bom quando uma celebridade consegue trazer um pouco mais de luz a um problema de saúde meio obscuro, do tipo que soa como invenção para muita gente.
 
A adaptação de “Barba ensopada de sangue” para o cinema teve suas filmagens concluídas recentemente, com direção de Aly Muritiba, e Gabriel Leone no papel principal. Chegou a se envolver, de alguma forma, com a produção ou o roteiro? Visitou o set?
Li algumas versões recentes do roteiro, dei sugestões, mantive um diálogo muito legal com o Aly e a Jessica, que também assina a adaptação. Conversei com o Gabriel Leone por vídeo. Gostaria de ter visitado o set, mas não foi possível devido a questões pessoais. Estou muito entusiasmado com o que compartilharam comigo das filmagens. Algumas imagens me emocionaram. Acho que há uma afinidade estética e narrativa entre o filme e o romance. Estou louco para ver mais.

Como apresentaria hoje, 10 anos após o lançamento, “Barba ensopada de sangue” para um leitor que ainda não teve contato com sua obra? 
É um romance sobre um homem sozinho encontrando seu lugar numa pequena cidade litorânea, buscando reconhecer a si mesmo, a seus laços afetivos e sanguíneos, ao mesmo tempo em que encontra alento na companhia de uma cachorra e no contato corporal com o mundo físico, com as ondas, os ventos, os outros corpos. É sobre reconhecer que tudo tem uma causa fora do nosso controle, mas que muitas vezes essa causa não pode ser senão um mistério, e que conciliar esses dois conhecimentos é nossa melhor esperança de minimizar o sofrimento.

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  • “Barba ensopada de sangue (Edição especial de 10 anos)”
  • Daniel Galera
  • Companhia das Letras
  • 456 páginas
  • R$ 99,90