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Estado de Minas PENSAR

Obra-prima de Autran Dourado, 'Ópera dos mortos' ganha nova edição

Livro tem reedição caprichada 10 anos depois da morte do escritor, nascido em Patos de Minas


23/12/2022 04:00 - atualizado 23/12/2022 00:44

Autran Dourado
História de Autran Dourado ambientada em Minas é um "espetáculo operístico barroco" (foto: Quinho)



Os relógios da sala estão parados, o tempo parece sepultado, as vidas ficaram enclausuradas entre as paredes do casarão. Mas nas veias ainda corre o sangue da soberba – e há sentimentos latejando, basta talvez despertá-los –, quase clamando por uma ressurreição dos corpos esquecidos nas entranhas do interior de Minas.
 

Denso como o ar que Rosalina respira ou permeado de silêncios como o universo de Quiquina, o livro “Ópera dos mortos”, do mineiro Autran Dourado (1926-2012), vai fundo nos guardados das famílias, segredos da alma e abismos de um coração ressentido. Mágoas, perdas, lembranças, aversão ao mundo além-muros, orgulho e o breu da solidão andam pelos corredores, qual espectros. 
  
“Meu pai dizia que ‘Ópera dos mortos’ era para ser lido como uma tragédia, e não como um romance, pois remete a ‘Antígona’ (tragédia grega de Sófocles). Uns veem o livro como uma metáfora da loucura, outros da morte”, diz o filho mais novo de Autran Dourado, o também escritor Lúcio Autran.
 
Selecionado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) para integrar a coleção de obras representativas da literatura universal, o livro do mineiro de Patos de Minas, na Região do Alto Paranaíba, ganhou nova edição pela HarperCollins. Esse é o segundo livro do autor relançado pela editora – o primeiro foi “Os sinos da agonia” – e completa 55 anos de publicação em 2022, ano que marca uma década da morte de Autran Dourado. Na sequência, virão “O risco do bordado” e “A barca dos homens”.

Espetáculo barroco

Na avaliação do escritor e crítico literário Silviano Santiago, mineiro de Formiga radicado no Rio de Janeiro (RJ), “Ópera dos mortos” é uma das três obras-primas de Autran Dourado, ao lado de “A barca dos homens” e “O risco do bordado”. Para ele, “Ópera...” é um livro fascinante, seguindo uma linha oposta a um certo engrandecimento de Minas Gerais, “que herdamos do século 18”. Portanto, fala da decadência de uma família, “a exemplo do que fez outro escritor mineiro, Lúcio Cardoso (1912-1968), em ‘Crônica da casa assassinada’”.
 
Considerando a história ambientada em Minas um “espetáculo operístico barroco”, Santiago vê a família Honório Cota como a última grande expressão do patriarcado mineiro. Nas páginas, está retratado um “tempo morto, parado, paralisado pela perda do apogeu do poder” e uma “severidade mineira”.  Ao destacar a erudição e a sofisticação da escrita de Autran Dourado, Silviano Santiago afirma que o livro tem uma composição semelhante à obra do irlandês James Joyce (1882-1941) por ser mítica e não histórica. Dessa forma, é uma narrativa mais ampla, universal, sobre a decadência da cultura ocidental.

 

O palco é o sobrado


A palavra ópera vem do italiano (“opera”) e, conforme o dicionário “Aurélio”, significa “drama inteiramente cantado, com acompanhamento de orquestra, ou intercalado com diálogos falados, ou com recitativos acompanhados por um instrumento de teclado”. Mas pode ser também “teatro onde se representam esses dramas”. Nessa segunda explicação, o palco é o sobrado de uma pequena cidade do interior de Minas, com sua praça, igreja e casario, onde vive Rosalina e sua fiel e muda empregada Quiquina.
 
O casarão foi erguido pelo avô de Rosalina, o coronel Lucas Procópio Honório Cota, e ganhou continuidade nas mãos do pai dela, João Capistrano Honório Cota. A rotina da solitária herdeira, que se dedica à criação e venda de flores de papel e tecido, vira de ponta-cabeça com a chegada de José Feliciano, o Juca Passarinho. Para quem se mantinha sempre distante, com ar de superioridade, de cabeça erguida na sua clausura, tal presença causa mudanças.
 
A edição recém-lançada tem prefácio assinado pelo escritor baiano Itamar Vieira Junior, o premiado autor de “Torto arado”. Assim escreveu Itamar: “O sobrado é um ambiente singular, orgulho da pequena cidade do interior. É o mundo da família Honório Cota sofrendo a ação implacável do tempo – que, por ironia, se encontra paralisado no relógio parado da casa – e da história. A trama atravessa as paredes da casa, que, por sua vez, é atravessada por personagens fantasmagóricos e, na mesma medida, inesquecíveis. A casa é habitada por Rosalina e a empregada Quiquina no presente. A elas se une um misterioso forasteiro, José Feliciano. Mas o romance carrega consigo os fantasmas de Rosalina e de uma cidade. A casa-grande que ostenta a glória do passado se deteriora, e nela o legado de seus fundadores: o avô, Lucas Procópio, e o pai, coronel Honório, antigos moradores do imóvel.”


Asas e ouvidos 


As cidades coloniais mineiras são povoadas por sobrados – os casarões de dois andares –, embora muitos tenham desaparecido ou deteriorado pelo descuido ou ação do tempo. No caso de “Ópera dos mortos”, o imóvel é também personagem. A cada página, é de se ficar pensando na curiosidade da população sobre o que se passava além da porta da rua. Aquele sabedoria popular que diz “as paredes têm ouvidos” ganha, aqui, outra direção: a imaginação tem asas para voar alto, tecer suas histórias, e, quando possível, entrar e ficar bem à vontade. Como se estivesse em sua própria casa. Nada fica no lugar.

Trechos


“Rosalina descia as escadas, toda a sua figura bem maior do que era, a cabeça erguida, digna, soberba, que nem uma rai- nha – os olhos postos num fundo muito além da parede, os passos medidos, nenhuma vacilação; trazia alguma coisa bri- lhante na mão. Rosalina era uma figura recortada de história, desses casos de damas e nobres que contam pra gente, toda inexistente, etérea, luar. Tudo podia acontecer, esperava-se a noiva descer as escadarias do palácio, o vestido arrastando na passadeira de veludo, os pajens, os nobres, o cortejo: aguardava-se a rainha que vinha vindo. Nada a gente deixava de ver, mesmo não vendo. Podiam-se ouvir a respiração, os mínimos ruídos, tudo matéria fantasmal.”

“Quanto tempo faz que Quiquina saiu? Quando nada, mais de uma hora. Será que aconteceu alguma coisa com Quiquina? Não, não aconteceu nada. Deve ter ficado parada boba assuntando conversa dos outros, na via-sacra. Ainda bem que ela não vinha contar depois. Os gestos de Quiquina quando aflita, os olhos esbugalhados, os grunhidos. Você vai, entrega as flores. Volta logo, temos ainda muitas dúzias para fazer, disse devagar, claro, explicando direitinho. Tem horas que Quiquina é dura de entender.” 
xcvv

  • “Ópera dos mortos”
  • Autran Dourado
  • HarperCollins
  • 240 páginas
  • R$ 54,90 e R$ 39,90 (e-book)


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