O uso de pedras como instrumentos de autodefesa e resistência. É a partir da exploração dessas possibilidades concretas e metafóricas que a poeta, slammer e atriz Luiza Romão constrói o livro “Também guardamos pedras aqui” (Editora Nós), que conquistou a principal categoria do Prêmio Jabuti, de melhor livro de 2022. O volume também venceu na categoria poesia, que disputava com obras igualmente potentes: "Palavra preta" (Organismo), de Tatiana Nascimento; "Risque esta palavra" (Cia. das Letras), de Ana Martins Marques; "Extraquadro" (Impressões de Minas), de Ricardo Aleixo; e "Algo antigo", de Arnaldo Antunes.
Em “Também guardamos pedras aqui”, Luiza Romão retoma um clássico da literatura mundial: a “Ilíada”, de Homero. Ao contemplar a Guerra de Troia, ela traça um percurso por temas que tangenciam a representação da mulher, a literatura ocidental, e a própria poesia, os feminismos, o poder e a política.
Depois da leitura da “Ilíada”, ela ficou atravessada pela constatação de como a literatura ocidental foi erguida sobre a violência. “Troia acaba simbolizando tanto lugar de resistência como esses territórios e essas cenas todas de violência colonial que vão atravessar o século”, disse.
Com a trajetória construída nos slams e saraus, é na poesia que ela busca o recurso para resistir a uma ordem de múltiplas opressões. “Também nós guardamos pedras. A gente também tem pedra. De certa forma, a palavra, a poesia, pode ser essa pedra que a gente afia para se defender, para demolir esses momentos e tentar erigir novas histórias”, explicou.
“Para mim, as pedras são as ruínas. Essa materialidade. As pedras como esses monumentos históricos que estão lá até hoje. Esse monumento que, de certa forma, soterra muitas histórias, muitas pessoas, muitas vidas, muitas vozes. As pedras como esse testamento e esses arquivos coloniais dos vencedores”, disse.
Com força poética descomunal, Luiza traz para a escrita a dedicação à dramaturgia, à poesia e ao feminismo. Assuntos que ela trata, além de como foi o processo criativo, nesta entrevista exclusiva concedida ao Pensar.
O livro surge a partir da sua leitura da “Ilíada”. Gostaria que nos contasse como foi esse processo.
A primeira ideia do livro, a primeira intuição, foi quando terminei de ler a “Ilíada”, na virada do ano de 2016 para 2017. Lembro que fiquei muito atravessada por algumas questões, que apareciam de uma forma até oblíqua. Então, a questão de como a literatura ocidental, de certa forma, vai se fundamentar a partir desse relato, dessa narrativa. Esse é o poema que vai ser a pedra fundamental de uma tradição literária que chega no Brasil, na América Latina, via colonização, e que também é a pedra fundamental de toda uma forma de se pensar a política, de se pensar a democracia, de se pensar a estética, e noções de humanidade, desse homem com H maiúsculo. É o relato de um massacre, é um relato muito violento. Uma narrativa que eu lembro de ler e pensar: 'Gente, como é possível ter tantos verbos de morte'. Eu tinha vontade de ler o livro, só circulando a quantidade de verbos, de ações, de gestos de infligir dor ao outro e à outra. Eu não tinha noção de que era tão amplo esse vocabulário. Essa foi a primeira impressão do livro e, não à toa, o primeiro poema que eu escrevi do livro, que é um poema para Homero, parte desse acúmulo e desse numeramento.
Como esses verbos de morte aparecem no seu livro?
Da forma como o livro está impresso, tem uma mancha gráfica. Então, acabei pensando também na censura desses verbos. Por um lado, por mais que a gente tente nomeá-la, há algo dessa barbárie, eu acredito, que a palavra não dá conta. Por outro, também para pensar como essa violência é gigantesca, muitas vezes, ela é apagada ao longo da história, seja pela queima de arquivos, seja pelos sigilos impostos, seja pela própria morte de quem poderia contar e narrar essa história. Coloco a questão do desaparecimento dos corpos e também como que, na América Latina, a gente tem uma relação muito complexa com a memória, seja a memória das ditaduras recentes, seja os arquivos coloniais… temos esses apagamentos, tanto de arquivos como de espaços. Temos que pensar o que está em jogo ali na Guerra de Troia. Se fala que é por Helena, essa mulher universal, essa mulher bela mais bela, essa mulher que nunca existiu na Terra, que vai fundamentar a ideia de beleza, que é muito surreal. Tem essa desculpa, mas, na verdade, o que está em jogo ali é um acordo comercial. Estamos falando da Turquia. Troia, na verdade, não é na Grécia, é do outro lado do Mediterrâneo, a gente está falando de uma zona comercial, de um entreposto que possibilitaria o comércio entre Áfricas e Europa. Então, na verdade, é uma guerra comercial.
Você fala que Helena nunca pisou em Troia. Talvez nunca tenha pisado na Terra. É um ideal feminino que foi construído?
Exato. A gente está falando de uma mitologia. Então, é louco pensar: tem o que é o fato histórico da guerra de Troia, tem o que chega e tem diversas leituras. Fui estudar um tanto dessa parte mais historiográfica para escrever o livro, inclusive fui para a Grécia. Fiquei lá 20 dias visitando o sítio arqueológico e visitando ruínas, pesquisando nos museus de arqueologia. Enfim, tentando ler essa história, lógico que do ponto de vista dos vencedores, os gregos… eu mesma nunca pisei em Troia. E alguns teóricos vão falar que, de fato, Helena nunca pisou em Troia. Isso é uma das leituras possíveis, ela estaria refugiada em outro lugar. No poema “Cassandra”, trabalho isso, de que a Helena nunca é vista. Ela chega coberta por um pano e, enfim, Páris, mesmo comentando com Cassandra, fala: “Irmã, você nunca percebeu que ela não existe. A gente está lutando por outra coisa”. Ela não existe. Ela nunca pisou aqui. Penso que a própria Helena, enquanto ideal de mulher, nunca existiu. Ela emula exatamente essa mulher universal, essa mulher que muitos dos feminismos decoloniais, uma feminilidade que não corresponde à maioria dos corpos, à maioria das sexualidades. Eu trabalho bastante com esse jogo. Ela nunca pisou em Troia e quiçá nunca pisou no mundo.
Você propõe uma reflexão sobre as representações do feminino…
Pensando nessa representação da categoria de mulher, tanto a construída pelo sexismo, pelo patriarcado, mas também uma categoria de mulher que, dentro das discussões feministas, tem que se tomar cuidado para não repor. É um pouco esse gesto que eu penso nesse poema, dessa categoria de mulher universal, que algumas vertentes de um feminismo liberal, muito eurocêntrico, calcado na biologia, muitas vezes acaba emulando uma categoria que acaba se tornando muito opressora, pensando a sociabilidade de uma forma.
Eu gostaria que você falasse do seu processo criativo.
Em geral, eu demoro muito para sentar e escrever. Sou um pouco de ficar pensando e falando muitos poemas ou anotando versos. A princípio, eu tenho uma forma um pouco dispersiva de pensar o processo criativo que me alimenta, e depois quando eu pego para escrever, em geral, o tempo de escrita mesmo é curto, muito concentrado. Tem esse primeiro momento de abrir muitas janelas. E, às vezes, até fico meio perdida. Tive essa primeira intuição sobre esse primeiro despertar para o projeto em 2016. Vou me debruçar de fato no “Pedras…” em 2019, no segundo semestre, em que Marcelino Freire me acolhe no curso de escrita que ele ministra, que é incrível. Para mim, é muito importante. Sou muito uma poeta-aluna. Eu amo estar em curso. Todos os meus livros, de uma forma, passam por uma oficina. No final de 2019, eu terminei a primeira versão. Inclusive, ela é quase um zine. Eu recortei as folhas e recortei os poemas, fui colando grampeando a mão para eu começar a pensar essa atmosfera que eu queria, e a questão das leituras teóricas… Meu trabalho é impossível não passar por essas leituras teóricas que, às vezes, têm mais a ver ou menos a ver com o projeto.
Você fez essa pesquisa para o “Também guardamos pedras aqui”?
Fui ler as historiadoras para fazer esse mapeamento do contexto em que eu estava trabalhando, tem essas leituras todas de teóricas teóricos decoloniais, feministas, certa teoria política, os estudos culturais… isso tudo independentemente do projeto, sou alguém que lê muito. E conforme o livro vai pedindo certa coisa ou vai pedir uma um pouco mais complexidade e profundidade, determinadas discussões, eu vou atrás. Inclusive, há um debate que eu tento propor, com essa tradição escolar no Brasil, que é muito eurocêntrica e muito calcada na Grécia antiga. Eu li quase tudo do Eurípedes, do Sófocles, do Ésquilo, e a gente não lê a literatura latino-americana, por exemplo, ou enfim, de outras partes do mundo. É uma formação escolar muito vinculada às mitologias gregas. De alguma forma, estou remexendo nessas pedras, como esse imaginário grego, tão distante, forma tanto o nosso currículo escolar até hoje estando no Brasil.
A performance sempre passou pelo seu trabalho com uma força muito grande. Você falou que os poemas nascem desse lugar de atriz. Eles nascem falados, digamos assim?
No caso do Pedras, eu assumo muitas vozes. Tem poemas que a personagem está falando, a Hécuba. Tem poemas que são a voz de uma certa personagem , que eu posso dar a chave de quem acho que é para mim, mas é uma personagem comentando dos personagens. Não vou dar a chave, vai depois das pessoas imaginarem quem, mas sempre tem essa figura comentando e, de alguma forma, dialogando com os personagens. Tem vezes que essa figura está na Grécia antiga, às vezes, ela está no século 21. E tem poemas que têm outra estrutura total. Então isso para mim até a criação da performance quando a gente vai gravar também o vídeo poema - uma parceria minha com o Eugênio Lima. Não era tão evidente para mim quem era essa figura. E aí na hora que a gente começar a declamar os poemas, eu fico entendo quem era essa figura, a Luiza épica - poderia se pensar que é a minha voz de poeta. Ao mesmo tempo, atravessado por essa voz da personagem. Então, eu precisava, em algum momento, entender quem é que estava falando os versos, se eles caberiam na minha boca, se é que eles cabem. Poderia pensar como vozes no sentido literário, mas pensar quais são essas vozes que estão ecoando nos poemas. Eugênio Lima, querido, me deu a chave para o último poema. Poema que fecha o livro e que a influência do slam - tanto da Cassandra como da Andrômaca - a influência do slam está mais presente.
Você estrutura os poemas com os personagens, e faz uma referência: em "Agamenon", você o relaciona a homens poderosos do século 21, o ex-presidente norte-americano Donald Trump, por exemplo.
Agamenon é um déspota. É muito louco. Eu ia lendo "Ilíada" e ficava pensando assim: 'quem é aquele homem nos dias de hoje?'. Ele não faz nada. Eu o detesto. Ele mata a filha. Quem é que mata a filha? Quem mata uma uma jovem de 15 anos? Agora, eu não vou lembrar direito o quiprocó da mitologia, mas a Artemis está furiosa com os gregos e fala: 'Olha, ou você sacrifica sua filha de 15 anos para mim, ou vocês não vão conseguir partir para a guerra’. Ele vai e mata a filha. É essa masculinidade que está se erigindo nesse momento. E, depois durante a guerra, ele não faz nada. Ele é super autoritário. A história começa com uma treta entre ele e Aquiles. Você tem duas mulheres que que ele saqueiam. Uma mulher que está numa posição de escrava sexual, de despojo de guerra, e pertence a Aquiles, e Agamenon pega ela de Aquiles. Tem cena que está tudo posto, questão das mulheres, essa condição de extrema violência da guerra, e desse homem secretamente grande déspota. Aquiles fica puto com Agamenon e sai da guerra durante certo tempo. Ele fica afastado da guerra até Heitor matar, sem querer, Pátroclo, que é um amante e amigo de Aquiles. Agamenon, para mim, é essa figura. Além de ele ser absolutamente autoritário, ele é um homem que mata a filha de 15 anos para ganhar uma guerra. É um violador. Depois ele vai e leva Cassandra para Mecenas.
O Trump…
E a história vai condenar Clitemnestra, a mulher que vai vingar a filha. A história do Agamenon está no "Oresteia", a única trilogia trágica que chega inclusive até hoje. O primeiro poema é a morte de Agamenon, ele voltando para Mecenas, Clitemnestra vai assassiná-lo – estive nessa cidade que está no Peloponeso, uma cidade, inclusive, que, de um lado, tem um mar e, do outro lado, tem as montanhas na cidade alta. Clitemnestra é a primeira personagem feminista da história. O marido dela vai embora, o cara mata a filha dela, ela vai ficar com o amante, vai governar a cidade estado e mata ele quando ele volta. Ele volta com a Cassandra, que é uma escrava sexual. É tomada de Troia e ele volta com ela exibindo a Cassandra para todo mundo.
Clitemnestra é uma feminista, então?
E a última parte da trilogia da "Oresteia" é o julgamento da Clitemnestra. Temos duas forças: a noção de Justiça antiga, que evoca uma certa sociedade matriarcal, pré-guerra de Troia, as Fúrias que tentam defender Clitemnestra. Do outro lado, Orestes, o filho de Clitemnestra, que vai matar a mãe para vingar o pai, junto com Electra e que eles são aconselhados por Atenas. É essa peça de teatro que de certa forma vai fundamentar esse essa ideia do direito moderno. Atenas e Orestes vencem, e ele é perdoado por matar a mãe. Ele vai continuar um pouco atormentado, mas, de certa forma, você tem em câmbio dessa noção de Justiça a partir inclusive da figura de Atenas,é uma figura feminina, que no poema para Atenas, eu falo ‘você nos vendeu a todas e nem pediu recibo’.
Como recebeu a notícia da premiação do Jabuti?
Para mim, foi uma surpresa muito grande. De fato, não imaginava que seria premiada nem na categoria de poesia, quiçá na categoria de melhor livro do ano. Muito porque sou muito fã das outras e dos outros poetas que estavam concorrendo na categoria de poesias, todos eles são pensadores maravilhosos que eu admiro muito. É interessante pensar no Prêmio Jabuti, como você falou, reconhecendo essas poesias que passam pela performance, não só eu. O Ricardo Aleixo é um poeta que pesquisa muito a palavra performada – o verso, o corpo, o gesto. Tatiana Nascimento tem trabalhos com a palavra poética. O Arnaldo Antunes tem todo um trabalho com música, uma palavra também perfumada e Ana Martins Marques tem livros que passam por uma ideia performativa. É interessante que tem uma poesia que, de certa forma, investiga essas fronteiras da palavra poética mais literária tradicional com outras artes, com a performance, a música, o teatro. Estou muito contente de, enfim, compor esse cenário de poesia, muito mais amplo do que eu, e que é muito vasto em termos estéticos e artísticos também. No meu caso, não existiria Luiza poeta se não fossem os slams, se não fossem saraus, se não fossem todos esses movimentos de poesia falada que tenho muito muito prazer, felicidade de compor. Então, é uma vitória do rolê da poesia falada.
Também guardamos pedras aqui
• Luiza Romão
• Editora Nós
• 64 páginas
• R$ 54
• E-book: R$ 37,80