Jornal Estado de Minas

PENSAR

Luís Augusto Fischer abre sua metralhadora giratória contra a Semana de 22

Paulo Paniago*
Especial para o EM


O grande monstro do modernismo brasileiro, ou melhor, do modernismo à paulista, ganha finalmente o primeiro paladino disposto a enfrentá-lo de lança e tudo numa guerra que promete barulho, ou silenciamento vigoroso, que é a forma preferida às vezes de escamotear problemas. É que o professor Luís Augusto Fischer decidiu abrir o berreiro contra a consagração do modernismo paulista no âmbito nacional e publicar “A ideologia modernista: a Semana de 22 e sua consagração” (Todavia), em que passa em revista o método sutil de construção de um discurso de que não apenas o único modernismo que vale a pena foi o paulista, decorrente da Semana de 1922, como tudo o que veio depois lhe é tributário e deve prestar contas sob o mesmo altar. 





O curioso é que Fischer havia lançado, em 2021, um estudo a respeito da crítica nacional, intitulado “Duas formações, uma história” (Arquipélago Editorial), em que passa em revista a história da crítica brasileira recente e coloca em confronto dois modelos fundamentais, o de “formação”, relativo (mas não restrito) à obra de Antonio Candido, e o de “ideias fora de lugar”, que diz respeito a Roberto Schwarz, para avaliar não só os percalços e problemas, mas como plataforma para lançar novas possibilidades, que ele sinaliza no posfácio do livro, embora desenvolva pouco. Em algum sentido, esses dois livros são parte de um mesmo conjunto, em que pese o primeiro parecer ser mais avançado, em certo sentido. Este aqui, no entanto, pode provar mais barulhos. 

A introdução de “A ideologia modernista” diz a que veio. Nela, Fischer afirma que o modernismo paulista “foi sendo erguido à condição de ponto zero de tudo de bom que o Brasil produziu em sua cultura, ao longo do século 20”, o que envolve desde a criação da Universidade de São Paulo, a USP, onde se produziu a crítica e a historiografia, paralelo ao fato de que o estado assumiu a ponta de lança do processo de dominação econômica e cultural. A questão é: acaso se imagina que os envolvidos deveriam ter agido de outro modo? Se havia condições para assumir o comando, ocuparam os espaços e geraram o discurso predominante. Mesmo que se esclareçam os “comos” e os “porquês”, o interessante é que a roda da história é implacável e se movimenta com indiferença. 

Em termos de concepção, o projeto é simples: analisar década a década como os textos críticos foram puxando brasas para a sardinha do modernismo. A tese de Fischer é que existe um “mariocentrismo” exacerbado, ou seja: um privilégio em torno da figura de Mário de Andrade. A certa altura está dito: “A visão de Mário é o que hoje compreendemos como modernismo”. Mas ele também se detém nos outros construtores da ideologia, para mostrar como intelectuais como Paulo Prado, Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior e Sérgio Buarque de Holanda embarcaram na canoa (ou a ela resistiram em termos relativos, caso de Freyre). 





Há também espaço para discutir os aliados que se tornam fardos. O mais destacado é Graça Aranha, situação única de sujeito que faz a renúncia à Academia Brasileira de Letras para engrossar o caldo modernista. É o caso de perceber como o tecido de Fischer é cuidadoso em estabelecer filiações devidas. As ideias de Graça Aranha expressas em “A estética da vida” encontram ressonância no estudo de Paulo Prado “Retrato do Brasil”. Os argumentos de Fischer são demolidores, mas todos muito sensatamente dispostos, em que pese a alta dosagem de deboche que às vezes o texto assume. Não é crítica, que fique logo entendido, esse tom de Fischer casa bem com a sisudez do assunto e torna-o muito mais palatável. A certa altura, ele diz, a respeito de “Retrato do Brasil”: “A ideia é apenas explicitar o estilo do ensaio, aos saltos, arbitrário, mas elegante na forma, e seu pensamento de fundo, largamente reacionário”. E tome-se malho. 

Outro aspecto muito interessante do estudo é que mistura a análise crítica com um pouco de biografia, na medida certa para se perceber como os homens também são em certa medida frutos de circunstâncias. As relações de Gilberto Freyre com a política, seja como secretário do governador de Pernambuco, seja na oposição a Getúlio Vargas e em carreira própria como deputado constituinte em 1946, não ficam distantes dos modelos de ensaísmo que ele desenvolve, em que pese escorregões posteriores, como o apoio ao regime de 1964 e à ditadura de António Salazar. A ideia de regionalismo pretende ao mesmo tempo ser modernista e combinar o diapasão com o movimento que vem ocorrendo em São Paulo, mas ao mesmo tempo resguardar certas tradições – será que é possível? Ao falar de regionalismo, Fischer aproveita o embalo para incluir os sulistas Moysés Vellinho em confronto com Rubens de Barcellos, que discutem a obra de Alcides Maya e pouco depois entra em cena o precursor da turma, Simões Lopes Neto. Também os mineiros recebem um pouco de atenção. Pequena, por enquanto. Mais adiante voltarão com novas contribuições. 

O que faz o tempo 
senão avançar?

Passados 10 anos da Semana de Arte Moderna de 1922, as comemorações não correspondem. Oswald virou comunista, está às vésperas de publicar “Serafim Ponte Grande” (em 1933, em cujo prefácio faz uma autocrítica forte); Augusto Meyer escreve a Mário com intenção de escrever um guia de leitura para “Macunaíma”; Ronald de Carvalho produzira em 1919 uma “Pequena história da literatura brasileira” e talvez tenha chegado a hora de entender por que ele se torna o grande esquecido do movimento. A saída de Fischer é avançar um pouco pela década de 1930 e mencionar a vinda Claude Lévi-Strauss (em 1935), a construção do prédio do Ministério da Educação (em 1936), ou a ideia de Mário de Andrade, como diretor do Departamento de Cultura do município de São Paulo, de criar museus, também em 1936, mesmo ano da publicação de “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda. 





Na década seguinte, Mário produz o balanço do movimento, para comemorar os vinte anos, no famoso ensaio “O movimento modernista”, resultado de uma conferência pronunciada no Rio de Janeiro. Em boa parte dos casos, parece haver um movimento orgânico. Aliás, o adjetivo é de Fischer. Ele, a certa altura, vai usá-lo para subentender a ideia de que as coisas se deram de forma natural, quando não é o caso. O que está em jogo, diz, é o modernismo paulistocêntrico. Em que pese um Erico Verissimo escrever também uma “Breve história da literatura brasileira”, depois da experiência de temporadas nos Estados Unidos, e novamente o valor se confirma. Oswald é outro que faz balanço. O ensaio “O caminho percorrido”, depois incluído em “Ponta de lança”, e resultado de uma palestra proferida em Belo Horizonte. Nele, Oswald aponta as vertentes do modernismo, um à esquerda, outro à direita, além de arrogar a importância da Poesia Pau-Brasil e da Antropofagia. “De modesto ele não pode ser acusado”, ironiza Fischer, em que pese a simpatia que depois demonstrará pelo autor. 

Há espaço ainda para breve análise do ensaio de Clodomir Viana Moog “Heróis da decadência”, que talvez fuja um pouco do escopo, mas ajuda a entender a abrangência do quadro. No entanto o foco é mesmo o estudo “Uma interpretação da literatura brasileira”, de 1942, em que ele desenvolve o conceito de “arquipélago cultural” para tratar do caso nacional, com menção às ilhas (sete, na contagem do autor) que movimentam a literatura brasileira. A tese de Moog contraria a ideia de unidade defendida por Mário. Fischer pormenoriza os problemas e fragilidades da tese de Moog, embora pareça ter simpatia por ela. Na sequência, demole as teses de Caio Prado Júnior expostas em “Formação do Brasil contemporâneo”, livro de 1942. A fórmula de Caio sintetizada nas palavras de Fischer: “O Brasil teria sido essencialmente e desde sempre uma economia monocultora, latifundiária, escravagista e exportadora”. Ele dá dois sopros, convoca João Luís Fragoso (“Homens de grossa aventura”) e Manolo Florentino (“O arcaísmo como projeto”), de um lado, e Jorge Caldeira (“História do Brasil com empreendedores”), de outro, e põe tudo abaixo. Vai além: é fundamentado nas teses de Caio Prado que Candido e Schwarz vão formular as próprias ideias. E, portanto, insistir em certos equívocos analíticos inevitáveis. 

O coro dos 
contentes

A década de 1950 será a da limpeza dos cariocas da equação modernista, para torná-la ainda mais paulistocêntrica. É um dos momentos (raros) do estudo em que se convoca a imprensa, no caso, o “Diário Carioca”, com a volta de Sérgio Buarque de Holanda, agora como crítico militante. É também o momento em que aparece “Roteiro de Macunaíma”, de Manuel Cavalcanti Proença, importante marco para estabelecimento da centralidade de Mário de Andrade no panteão. Há espaço ainda para estudos inesperados, como o de Richard M. Morse “De comunidade a metrópole: Biografia de São Paulo”, lançado em 1954, nas comemorações do quarto centenário da cidade. Brasilianista com visão própria, ele evita a ideia de ruptura com um modelo que relembra 25 anos anteriores, inclusive com participação de revistas que tomaram parte no processo. Mas de novo coloca Mário como “a própria personificação do modernismo”. No ano seguinte, é publicado o ensaio de Antonio Candido “Literatura e cultura de 1900 a 1945”, depois reunido no volume “Literatura e sociedade”. É o texto em que talvez Candido esteja a preparar o roteiro do que vai ser o seu “Formação da literatura brasileira”, lançado no fim dos anos 1950, com inclusive mudanças de enfoque cabíveis. Manuel Bandeira lança também as memórias literárias, “Itinerário de Pasárgada”, sem pretensões de disputar sentido ou abrangência do termo “modernismo”, como aponta Fischer, que fala ainda na “sua visão amena de modernismo, com traços conciliadores mais do que vanguardistas, infensa ao debate pela hegemonia”. No meio da década, Afrânio Coutinho publica “A literatura no Brasil”, o que talvez seria “o ponto de vista da universidade carioca”. Mas essa versão, mesmo que coloque em xeque a centralidade paulista, mas não aposte todas as fichas na importância carioca, será aos poucos varrida do mapa.



Uma voz efetivamente distinta parece ser a de João Cabral de Melo Neto, que publica “A Geração de 45” no “Diário Carioca” e depois o texto é recolhido na “Obra completa”. Aqui, um ponto de inflexão. Se é possível abrir o escopo para incorporar uma vertente que é diferente (embora, vá lá, decorra dele) do movimento modernista, por que a mesma coisa não se dá com os concretistas? Com a geração mimeógrafo? Onde ficam os demais caminhos que surgiram (ou se opuseram, ou avançaram) daquela turma de 22? Isso é um senão do estudo, em geral tão minucioso. João Cabral, enfim, “reduz o problema a uma dimensão real, concreta, a da criação literária”, distante portanto das brigas pelo poder que parece ser a motivação fundamental do restante do pessoal. 

A breve men-concretismo passa pela análise de José Guilherme Merquior, na abertura da década seguinte, e ocorre no estudo “As contradições da vanguarda” (recolhido em “As ideias e as formas”). O problema, segundo Fischer, é que o texto dá “de barato que modernismo já estava assimilado”, justamente o calcanhar de Aquiles contra o qual vem se posicionando o crítico. Na sequência, Mário da Silva Brito tem seu “História do modernismo brasileiro: I. Antecedentes da Semana de Arte Moderna” publicado, em 1958, e escrutinado agora, para reprovação. O problema é “enaltecer apenas um lado da história, o lado paulista”. Imperdoável. A festa dos 40 anos ganha Suplemento de “O Estado de S. Paulo”, mais do mesmo. Raul Bopp publica uma memória em 1966, “Movimentos modernistas no Brasil: 1922-1928”, com pretensão de anotar casos pelos país afora, ele também não disputando interpretar a tradição modernista. Wilson Martins publica o volume “O modernismo (1916-1945)”, um livro mais descritivo do que analítico, segundo Fischer, e embora tenha ampliado o escopo, tem problemas. Em seguida, uma discussão acalorada a respeito inclusive da terminologia pré-modernismo, cheia de contradições e problemas. Culpa de Alfredo Bosi, que publica em 1966 “O pré-modernismo”, que enfeixa as obras de uns quantos, mas se esquece dos óbvios, Euclides da Cunha, Lima Barreto, até porque são autores que não se enquadrariam na categoria analítica criada. 

Balanço de meio
século e além

Para o cinquentenário da Semana, na década de 1970, todos os excessos comemorativos. Gilberto Mendonça Teles lança “Vanguarda europeia e modernismo brasileiro”, que recebe a misericórdia do analista, afinal não eleva o modernismo paulista “à condição de ponto inultrapassável da criação e do pensamento”. Augusto de Campos finalmente aparece, com o “Balanço da bossa”, de 1968, mas como analista do modernismo anterior, não exatamente como produtor do concretismo, embora uma breve articulação entre este e a Tropicália seja objeto de análise. Na sequência, Ferreira Gullar surge com “Vanguarda e subdesenvolvimento”, de 1969, que procura, entre outras coisas, enxergar benefícios na politização oswaldiana. Outra inflexão importante: a análise de como a unificação do vestibular deu força à centralização do modernismo na vertente paulista. Um livro de Bosi comparece, “História concisa da literatura brasileira”, que até tem mérito de tentar articular variantes fora do eixo Rio de Janeiro e São Paulo e mesmo um esforço de distinguir entre moderno e modernista, mas sem “oferecer ganho relevante para a reflexão”. Uma entrevista de Afrânio Coutinho para o “Correio da Manhã”, em janeiro de 1972, merece vistoria. Afrânio não passa pelo crivo. E como se fala de jornal, volta nova análise do Suplemento do “Estadão”. Mesmo o deboche promovido pelo “Pasquim”, um escape delicioso, termina por confirmar que a imprensa de modo geral não entende bem do que fala, quando o assunto é de gente grande. É também a década em que se inicia a republicação das obras dos Andrades, Mário e Oswald. Volta Wilson Martins, agora como “escassa exceção dessa consagração”, ao publicar seu “O modernismo (1916-1945)”, mas entra aqui agora num brevíssimo parágrafo, apenas para afirmar o “malogro” do “Macunaíma”, entendido num sentido positivo (tal como “Gargântua” ou como “Ulysses” foram malogros). Vale lembrar que Telê Ancona Lopez lança em 1974 o “Macunaíma: a margem e o texto”, que logo se transforma numa importante referência para os estudos. No fim da década, a contribuição é de Gilda de Mello e Souza (cujo marido é Antonio Candido, vale lembrar), que lança um estudo a respeito de “Macunaíma”, “O tupi e o alaúde”. A tese é que Mário é a última metamorfose do mito que começa no romance arturiano e desemboca no “Dom Quixote”. “Estava fechado o circuito de entronização de ‘Macunaíma’ e de seu autor no centro de interpretação do Brasil postulada desde a famosa Semana paulista de 22 e agora consagrada na USP, a mais autorizada voz cultural”, anota Fischer. Os estudos que aparecem, mesmo não feitos por paulistas, surgem para afirmar o que se sabe: o modernismo brasileiro é mesmo o da Semana. Então Ligia Chiappini Moraes Leite, com “Modernismo no Rio Grande do Sul”, ou a coletânea “O modernismo”, organizada por Affonso Ávila, vão acender o incenso no altar disponível. Este último assume mesmo tom celebratório, sem crise. 




Quantos Brasis 
cabem no Brasil

Se José Guilherme Merquior tem o mérito de apresentar os pensadores da Escola de Frankfurt aos brasileiros, quando publica “Crítica (1964-1989)”, em 1982, ele resvala para a premissa da “mística da transgressão”, mesmo com a contradição de se situar à esquerda, moderada ou radical (pense em Mário e Oswald), enquanto o financiamento vem da aristocracia cafeeira. Na sequência, entra Nicolau Sevcenko com “Literatura como missão”, que tem o mérito de mostrar os talentos anteriores à eclosão da Semana, e José Miguel Wisnik, com “O coro dos contrários”, analisado com o devido cuidado por se tratar, em grande medida, de um estudo a respeito da música, mas que também respinga ideologia, como não pode deixar de ser. A birra de Fischer faz sentido: por que os modernistas não enfrentaram os grandes nomes anteriores e ficaram se batendo contra peixes pequenos? É uma questão que perpassa todo o estudo e volta e meia sobe novamente à cena. Enquanto isso, Sergio Miceli publica, em 1979, “Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-45)”, mais tarde republicado, com acréscimos e novo título: “Intelectuais à brasileira”, no qual discorre a respeito da “vitória política do modernismo”, ou seja, aqui e ali, de quando em quando, Fischer encontra alguns pensamentos similares ao próprio. E Antonio Arnoni Prado combate o fantasma de vanguarda direitista com “1922 — Itinerário de uma falsa vanguarda”. A questão, novamente, é atribuir culpa a adversários mais ou menos irrelevantes. 

O próximo ponto de interesse é a década de 1990, e Sevcenko volta a atacar, dessa vez como autor de “Orfeu extático na metrópole”, um estudo a respeito das tensões em São Paulo durante os anos 1920. Movimentos migratórios, crescimento veloz, circulação de dinheiro, tudo passa pelo crivo de Sevcenko. A tese, que Fischer voltará a discutir ao fim do livro, é que houve uma coesão interna única e quem sabe irrepetível, tanto do ponto de vista econômico quanto cultural, “uma impressionante convergência de interesses e possibilidades tendo como ponto nodal uma cidade apenas”. É esse o mistério a desvendar: como foi possível? Ponto curioso na jornada: o texto a ser analisado a seguir é o de Franklin de Oliveira, “A Semana de Arte Moderna na contramão da história e outros ensaios”, publicado em 1993. Como é que os modernistas queriam passar o Brasil a limpo se mal conheciam a capital, “fora a mansão dos Prado e a redação do ‘Correio Paulistano’?”, pergunta Franklin. A avaliação leva em conta que os generais do golpe militar de 1964 se apropriaram da Semana para convertê-la à agenda do golpe. E, de passagem, Fischer recorda que “de fato foi naquela altura cinquentenária que as teses modernistas paulistas alcançaram a força quase de lei”.

Outro encontro interessante é o livro da historiadora Mônica Pimenta Velloso, “Modernismo no Rio de Janeiro”, em que o contraste entre Rio e São Paulo, desfavorável ao primeiro, nas páginas do “Correio Paulistano”, ganha contraponto com o estudo da revista carioca “D. Quixote”. Em São Paulo, unidade; no Rio, descentralização em atividade. Com isso, São Paulo ficou com a exclusividade e força de reconhecimento. Outro brasilianista aparece, esse residente, o psicanalista Contardo Calligaris, autor de “Hello Brasil”. Não é o único. Mais adiante, na análise da década de 2010, comparece Benjamin Moser com “Autoimperialismo”. Ambos preferem Oswald, em vez de Mário, o que parece agradar bastante a Fischer. 



No início dos anos 2000, Roberto Schwarz volta a comparecer, agora como autor de “Duas meninas”, que faz reflexão a respeito de Mário de Andrade. Na verdade, Fischer relembra, no primeiro livro de Schwarz, “A sereia e o desconfiado”, havia um estudo com o protagonista do modernismo paulista, “O psicologismo na poética de Mário de Andrade”. Outra historiadora, Ângela de Castro Gomes, também comparece, com “Essa gente do Rio...”, título pescado de uma carta de Mário para Manuel Bandeira. A historiadora estuda duas revistas cariocas, “Festa” e “Lanterna Verde”. 

Na década seguinte, Marcos Antonio de Moraes lança uma biografia de Mário por meio das cartas que escreveu com gosto, o livro “Orgulho de jamais aconselhar”, coisa que, aliás, Mário de Andrade se exacerbou em fazer. Fischer chega a mencionar “sua impressionante vocação para a pedagogia das cartas”. Não se esquece de mencionar o pendor de Marcos Augusto Gonçalves, autor de “1922: A Semana que não terminou”, também pelas ideias oswaldianas, numa linha que questiona a “suposta prevalência de uma perspectiva excludente, linear e triunfalista na narrativa histórica sobre o modernismo”, e que o jornalista situa como algo que ocorre desde os anos 1980. Mas nem tudo é assim promissor. Na biografia que Jason Tércio faz de Mário, “Em busca da alma brasileira”, a hagiografia volta a dar as caras, qualificada por Fischer como “pura e lamentável”. Um contraponto interessante acontece com Jorge Caldeira e seu “História da riqueza do Brasil”, e com Ruy Castro e o não menos desafiador “Metrópole à beira-mar”, que passa em revista a modernidade carioca, depois acrescido de novo volume, “As vozes da metrópole”, que complementa o volume anterior. 

No último capítulo, Fischer se pergunta o quanto, afinal, vale o modernismo paulista, sem fazer apologias que santificam nem fazer a negação pura e simples da validade. Apresenta seis argumentos de força para explicar a coesão do estado, que ajudam a compreender e dimensionar o fenômeno, aliado à ocupação por parte dos intelectuais dos órgãos de gestão no campo cultural — Mário no Departamento de Cultura, Augusto Meyer na chefia do Instituto Nacional do Livro, Rodrigo Melo Franco de Andrade no Serviço de Proteção ao Patrimônio Artístico Nacional, por exemplo —, tudo isso alinhavado com surgimento de novos temas e inquietações forma o caldo complexo, que além disso reaviva as ideias de sertão e plantation (o que volta a fazer a articulação deste livro de Fischer com o seu anterior, “Duas formações, uma história”), e que deixa de fora a dimensão do mundo da floresta, que configuraria uma terceira vertente importante. 



O esforço entre a minúcia do acompanhamento sistemático da produção bibliográfica ao longo de cem anos e a promoção de ideias que sintetizem o conjunto mostra um fôlego de maratonista e que tudo isso se articule num conjunto de argumentos consistentes é o grande mérito deste (e do outro anterior) livro de Luís Augusto Fischer, que se qualifica como um dos mais impactantes pensadores das questões literárias contemporâneas. Resta saber com que resistência (ou com que estratégias de silenciamento) os adversários vão reagir. 

* Paulo Paniago é professor de jornalismo da Universidade de Brasília 

“A ideologia modernista: a semana de 22 e sua consagração”
.Luís Augusto Fischer
.Todavia
.448 páginas
.R$ 99,90 
.e-book: 59,90

O escritor Mário de Andrade, considerado o principal motor da Semana de Arte Moderna de 1922 e um dos responsáveis pela visão paulistocêntrica do modernismo brasileiro: alvo das críticas de Luís Augusto Fischer (foto: ARQuivo EM)

Trechos

“O que porém realmente precisa ser esmiuçado analiticamente é a primeira frase. São duas afirmativas enganchadas na redação. A primeira delas é uma petição de princípio: não há literatura paulista, gaúcha ou pernambucana. Não há? Nunca há nem houve? Por quê? Qual o critério? Vejamos um paralelo: um cientista social da economia ou da história não poderia falar na economia pernambucana, no PIB de São Paulo ou nas guerras gaúchas? Não se trata de imaginar uma essência estadual para nada disso, economia, PIB ou guerras; mas sim de reconhecer que o âmbito estadual pode perfeitamente ser uma baliza, um limite, um âmbito cabível para estudar esse ou aquele problema. Então, por que não se pode falar em uma literatura pernambucana, paulista ou gaúcha? Por que só pode haver uma literatura se ela for nacional? (E o que é ‘ser nacional’?)

Acresce que os três estados mencionados são por si significativos. Candido poderia, pergunto, ter substituído algum desses três por outros? Se sim, quais? Talvez maranhense, cearense, paraense – se trata também de províncias com alguma vida literária localmente articulada, com autores, obras e público, eventualmente criando uma tradição local, para citar aqui o mesmo Candido. Mas não poderia citar outros, como baiana, mineira ou carioca, acho: estas três nunca se compreenderam nem foram compreendidas como ‘provinciais’, porque são, dizendo sumariamente, as três matrizes da literatura ‘brasileira’ dos séculos 17, 18 e 19, respectivamente.



Ao contrário, São Paulo, Rio Grande do Sul e Pernambuco (mais que o Maranhão, o Ceará e o Pará) representam tendência centrífuga: em diferentes momentos da história brasileira foram províncias significativas, de tradição mais republicana do que monárquica, mas nunca centrais, nunca hegemônicas. Quer dizer: São Paulo nunca tinha sido, mas agora, em 1954, sentado sobre o patrimônio dos trinta anos da Semana e com a força da grana cafeeira e industrial, está se apresentando para ser um novo centro hegemônico, e o será.”

Sobre o autor

Nascido em Novo Hamburgo (RS), o crítico literário e ensaísta Luís Augusto Fischer é professor titular de literatura brasileira na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com pós-doutorado na Sorbonne (Paris VI). Entre os livros que escreveu, estão “Duas formações, uma história: das ‘ideias fora do lugar’ ao perspectivismo ameríndio”, “Machado e Borges” e “Inteligência com dor: Nelson Rodrigues ensaísta”, entre outros.