Wander Melo Miranda*
Sem ceder às facilidades de um exotismo que poderia ser duplamente equivocado, o escritor se nega a reduzir os termos da questão a um choque simplista entre culturas. Ao contrário, estrangeiros, imigrantes e manauenses compartilham o mesmo espanto diante de um território enigmático na sua força sempre estranha e familiar. A cidade de Manaus, contornada pela imensidão do Rio Negro e cortada pela fúria das tempestades, é a imagem emblemática desse espanto, tornado mítico na memória
A “lembrança de uma ruptura” é o horizonte da escrita de “Dois irmãos”. Por meio da história de uma família de imigrantes libaneses em Manaus, a ruptura apresenta-se sob a forma de um dissenso na origem, a que a retomada do mito dos irmãos inimigos dá uma inflexão bastante peculiar, sem que se abandone sua natureza universalizante. Ao reinventar esse tema, “Dois irmãos” revigora uma linha sutil da ficção brasileira, que une romances tão distintos quanto “Esaú e Jacó”, de Machado de Assis, e “A menina morta”, de Cornélio Penna. Nesses antecessores ilustres, a trama que enlaça o destino dos personagens pode ser lida como o enredo alegórico de impasses e contradições da nossa formação nacional — pela ironia arrasadora de Machado, ao tratar da rivalidade entre os gêmeos Pedro e Paulo e, através dela, das fúteis querelas entre monarquia e República; pelas fantasmagorias neogóticas de Cornélio, ao abordar a violência desmedida da família patriarcal e o horror da escravidão.
Milton Hatoum insere um outro fator na equação — a perspectiva do imigrante —, abrindo-lhe espaço através da configuração de uma Amazônia oriental, vista como fronteira extrema do imaginário brasileiro. Sem ceder às facilidades de um exotismo que poderia ser duplamente equivocado, o escritor se nega a reduzir os termos da questão a um choque simplista entre culturas. Ao contrário, estrangeiros, imigrantes e manauenses compartilham o mesmo espanto diante de um território enigmático na sua força sempre estranha e familiar.
Originalidade
A cidade de Manaus, contornada pela imensidão do Rio Negro e cortada pela fúria das tempestades, é a imagem emblemática desse espanto, tornado mítico na memória. O narrador vai buscar as diferenças que impulsionam as projeções de identidade, individual ou coletiva, nas “águas sem nenhum remanso” do passado, por meio de um ato de imersão laboriosa no tempo, até que “súbitas imagens” afluam ao presente e possam dar a medida desconsolada das ruínas do que se perdeu, mas persiste e perdura na linguagem. Desde “Relato de um certo Oriente”, seu romance de estreia, publicado em 1989, Hatoum se tem dedicado à tarefa minuciosa de recompor vozes silenciadas, gestos invisíveis, objetos em vias de desaparecimento ou perdidos para sempre. A originalidade do romancista reside em fazer com que pequenas coisas, retiradas do esquecimento, se coagulem em torno de certos eventos traumáticos — no caso do “Relato”, o atropelamento de Soraya Angela, o afogamento de Emir —, até que umas e outros revelem uma significação inesperada. Só assim o “horizonte aquático, brumoso e ensolarado”, que é o ponto de chegada da reminiscência, pode mostrar-se em toda sua extensão como uma insuficiência crônica, uma falta que é razão e possibilidade do movimento da escrita. Por isso, o olhar que Nael, o narrador de “Dois irmãos”, lança ao passado é, ainda que por vezes à sua revelia, um “olhar à deriva” de si mesmo.
Exclusão
A condição de filho bastardo da empregada da família com um dos gêmeos — Yaqub (Jacó, em árabe) e Omar — lhe propicia um espaço liminar de observação e testemunho da história familiar e social. Lugar vantajoso, sem dúvida, embora mediado pelo sofrimento e pela exclusão, ele lhe permite acompanhar com uma atenção flutuante os passos da paixão incestuosa de Zana pelo filho Omar, a rivalidade deste pelo irmão, o afastamento de Yaqub, engenheiro formado pela Politécnica de São Paulo e depois empresário favorecido pela ditadura militar pós-64, a morte de Halim, o pai, e a solidão de Rânia, a irmã.
Transformação
A fundação paradoxal de uma casa em ruínas ou uma “casa assassinada”, para lembrar aqui o título de Lúcio Cardoso, é a origem que cabe à escrita simular, mesmo sabendo-a desde logo perdida, como indicam os versos do poema “Liquidação”, de Carlos Drummond de Andrade, que servem de epígrafe ao livro. O acontecimento originário só é dito na sua falta, sob a forma de uma torrente de imagens e sons que fazem passar quase despercebida na sua revelação — tal a maestria do narrador — a travessia do factual ao mítico, a confluência de temporalidades distintas da história. É o modo que o romance encontrou para dar conta da complexidade do andamento do processo de modernização no país, do ritmo comum que o une a processos mais gerais e do ritmo próprio de uma entre as variantes locais, cuja versão “oriental” nos oferece. Para tanto, cabe à narrativa acompanhar a transformação paulatina das relações privadas e públicas, que se efetiva no curso das mudanças por que passam a loja da família e a casa.
Antes indistintas quando sob a administração de Halim, loja e casa são o signo de formas de vida e atividade humana que não foram ainda transformadas em mercadoria, em novidade prestes a virar sucata. Pertencem a um momento que resiste ao seccionamento mortífero do tempo capitalista, momento no qual os objetos ainda são, como as palavras, signos de intercâmbio e relato: as pessoas “entravam na loja, compravam, trocavam ou simplesmente proseavam, o que para Halim dava quase no mesmo”. Sob a direção de Rânia e reformada com dinheiro de Yaqub, a loja deixa de ser como que a outra parte da casa, então invadida pelos novos utensílios domésticos, inúteis, vindos de São Paulo: “O maior problema era o corte quase diário de energia, de modo que Zana decidiu manter ligada a geladeira a querosene”. O descompasso entre tempos distintos marca-se pela descontinuidade espacial que se impõe entre a casa e a loja, resultante que é de um processo mais amplo de exclusão e apagamento do heterogêneo e da diferença – “Noites de blecaute no Norte, enquanto a nova capital do país estava sendo inaugurada. A euforia, que vinha de um Brasil tão distante, chegava a Manaus como um sopro amornado”. A margem escura é, pois, o entrelugar formado pelo impulso modernizante e a persistência difícil de uma tradição desmantelada, o hiato que se apresenta como o território conflagrado de mutilações, cortes e rupturas que a memória transforma em linguagem. Desenha-se aí o espaço luminoso da ação ética e política do narrador contemporâneo, a que Milton Hatoum vem dando forma com rigor e força artística incomuns. Nas páginas finais de “Dois irmãos”, Zana recebe a visita da matriarca Emilie, personagem central de “Relato de um certo Oriente”. A presença inesperada da velha senhora no novo romance, mais do que interligar a trama de ambos os livros, reafirma a aposta do escritor na continuidade do trabalho paciente de indagação do que seja o “oriente” do Brasil. Em tempos globais, a aposta é, mais do que nunca, imprescindível e quem sai ganhando é o leitor.
*Wander Melo Miranda é professor aposentado de teoria da literatura e literatura comparada da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e professor emérito da Faculdade de Letras da UFMG. Incluído na nova edição de “Dois irmãos”, o texto de Melo Miranda foi publicado originalmente sob o título “Dois destinos” em 1o/7/2000, no caderno Ideias do Jornal do Brasil
“Dois irmãos” (nova edição)
• Milton Hatoum
• Companhia das Letras
• 280 páginas
• R$ 74,90