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Estado de Minas LAÇOS E RUPTURAS DE FAMÍLIA

Elisama Santos disseca os dramas de uma família brasileira em 'Mesmo rio'

Escritora e psicanalista baiana narra a história de uma família e os dramas que a circundam, trazendo à baila uma série de reflexões da sociedade brasileira


13/01/2023 07:00 - atualizado 13/01/2023 07:55

Elisama Santos
A psicanalista baiana Elisama Santos tem em 'Mesmo rio' sua primeira obra ficcional (foto: Isaac Martins/Divulgação)
Foi durante uma ceia de Natal que Rita, a filha caçula de Maria Lúcia, rompeu laços com a mãe, o pai, Benedito (o Bené), e os dois irmãos, Lucas, o mais velho, e Marília, a do meio. Mas, como enfatizado logo na primeira página de “Mesmo rio” (Grupo Editorial Record; 2022), de Elisama Santos, é “injusto pensar que tudo aconteceu naquele Natal”. “O fim é um copo que se enche aos poucos, com palavras ditas e engolidas. É um copo cheio de olhares rancorosos, de contas em aberto, de expectativas não assumidas, de frustrações”, prossegue a narrativa.

Tanto é que existe uma linha do tempo antes de o leitor ser apresentado a “Rupturas”, sexto dos nove capítulos da obra e cujo epítome está ilustrado no trecho “aquele Natal mudaria a vida de todos, mas nenhum deles sabia disso”, na metade do livro. No caso de Rita, há toda uma construção da relação dela com a mãe, incluindo atritos e desgastes na forma como uma lida com a outra, e as consequências desse rompimento, a ponto de a filha mais nova passar dez anos sem ver a matriarca e só reencontrá-la depois de receber a notícia de que Maria Lúcia estava com uma doença terminal.

“Eu queria que as pessoas conhecessem cada membro da família antes daquele jantar, que elas soubessem quem era cada um ali antes de tomar partido e falar: ‘Esse está certo, esse está errado, essa é a mocinha, esse é o vilão’. Eu queria que a gente conseguisse enxergar que há um mocinho e um vilão em muitos de nós. Que há muita complexidade no nosso sentir”, ressalta Elisama.

Apresentadora de TV, psicanalista e autora de “Educação não violenta” (2019), “Por que gritamos” (2020) e “Conversas corajosas” (2021), a escritora baiana tem em “Mesmo rio” sua primeira obra ficcional, na qual os laços de uma família funcionam como mote da narrativa e abrem espaço para outros temas evocados, vide machismo, luta feminista e maternidade. Mas não é só isso. Por meio da bagagem profissional adquirida, Elisama faz um recorte da família brasileira, trazendo à baila uma gama de reflexões, por vezes oriundas de tensões que emergem dentro desse grupo social.

“A família é nossa primeira experiência de como o mundo funciona. Então, dentro das nossas famílias, começamos a entender o que é amor, como que a gente consegue o amor, o que é respeito, como consigo respeito, o que são relações, o que é relacionamento, como eu atuo no relacionamento, quem eu sou, como eu me entendo, como atuo no mundo. Aprendemos tudo isso na dinâmica familiar. (...) A vida se torna uma repetição desses aprendizados e reações que a gente adquiriu ainda na infância. (...) A gente repete muita coisa que aprendeu na nossa infância, até que consiga elaborar, entender e ganhar novas formas de lidar com os desafios”, diz.

'A maternidade deperta em nós coisas diferentes'

Um dos temas presentes na narrativa é a maternidade, sendo que cada uma das três mulheres centrais do livro, Rita, Marília e Maria Lúcia, possui um tipo de olhar para essa questão.  “A maternidade desperta em nós coisas diferentes. Acho interessante quando as pessoas falam: ‘Ah, quando você tiver filho, vai entender’. Será? Será que é tão fatal assim, tão determinista assim a gente dizer que uma coisa vai acontecer na vida da pessoa, e que todo mundo vai pensar igual? Então não dá pra eu dizer que a maternidade vai despertar em todas as mulheres do mundo a mesma coisa”, ressalta Elisama, mãe de Miguel e Helena.

“Em Rita e Marília (a maternidade) desperta coisas diferentes. Em Marília, cria-se um entendimento visceral com essa mãe. (...) Cada vez mais ela idolatra mais essa mãe, reforça mais a ideia de que essa mãe era perfeita. A Rita tem uma experiência diferente. A cada construção dela com esse filho, ela pensa: ‘Como minha mãe agiu assim? Eu não conseguiria fazer isso com meu filho. Como ela pôde falar aquelas coisas comigo? Eu não faria isso com meu filho’. Elas experimentam a situação que teoricamente seria a mesma maternidade de formas diversas, assim como é tudo na família. E qual que é nosso maior erro? É acreditar que uma única situação que desperta algo em nós vai despertar exatamente a mesma coisa no outro”, completa.

‘É importante que a gente tenha os negros com a caneta na mão’

Outro ponto crucial na narrativa de “Mesmo rio” está relacionado ao fato de os personagens centrais serem pretos.

“Leio e vejo os romances brasileiros, com descrições das bochechas rosadas, dos cabelos ruivos, dos olhos verdes. E não é que os autores que escreveram isso estão errados. Eles estão descrevendo a eles mesmos e as histórias e as pessoas que estão ao redor deles. Mas sou uma autora negra. E por isso é tão importante que a gente tenha os negros com a caneta na mão” ressalta Elisama.

E conclui: “Essa história, especificamente, é de uma família negra que vive muito bem, obrigada! Uma família negra que viaja e compra uma toalha de mesa no Marrocos. É uma família negra que tem brincos de ouro e joias para deixar para os filhos. E que uma das joias foi comprada em Paris. Então, é uma família negra que rompe a narrativa que construíram para nós, negros, de que nossas histórias são só de pobreza, dor e sofrimento. Nossas histórias são muito lindas, de diversas formas, apesar do racismo e dos sofrimentos sociais que tentam nos impor. Lembrar que somos maiores é essencial para que a gente siga construindo um mundo melhor, mais justo. (...) Foi essencial para mim escrever um livro, uma história, que fosse vivida por pessoas que pareciam comigo”.
Elisama Santos
- Grupo Editorial Record
- 240 páginas
- R$ 50

Entrevista com Elisama Santos

A atriz e apresentadora Taís Araújo disse certa vez: “A leitura dos livros de Elisama vale muito”. Já a médica, artista e colunista Júlia Rocha destacou: “As palavras de Elisama são como uma lente única, uma lupa para ver a realidade dos relacionamentos familiares de um jeito que é especial”. Por meio dessas palavras, gostaria de fazer duas perguntas em uma: de que forma você recebe esses comentários, vindos de duas mulheres que são referências em suas áreas, e, por saber dessas opiniões, dentre várias que recebe a respeito de sua carreira, o quão gratificante é para você saber que sua mensagem atingiu o coração das pessoas?
É interessante pensar que essas pessoas estão falando isso do meu trabalho, sabe? Julia Rocha é uma pessoa que eu admiro muito, e a Taís Araújo... Meu Deus! Existem momentos em que eu quase não acredito que meu trabalho tem tocado tantas pessoas especiais. Todas as pessoas são especiais. Então, quantos abraços eu recebo no lançamento de livro, em palestra... Nesse lugar presencial de receber o abraço e o toque das pessoas, me falando como as histórias e o que eu escrevo chegam nelas. Me causa um assombro, me causa um quentinho no coração, um amor muito grande. Acho que a arte sempre assombra a gente. Mexe com nossas emoções. Escrever é muito solitário. Escrevo eu e meu computador, então quando vem esse retorno, consigo ter uma noção, acho que ainda pequena, do que meu trabalho consegue mexer nas pessoas e no mundo.

Isso tudo serve de preâmbulo também para minha próxima pergunta. Desde quando você sentiu que era a hora de colocar em prática o poder de sua escrita?
Eu escrevo desde sempre. Nunca achei que minha escrita podia ter relevância. Amo escrever. Sou uma leitura desde muito nova. Me recordo com 11, 12 anos, de chegar na casa de uma amiga, de uma tia, e abrir a revista “Veja” para ver o nome daqueles autores dos livros mais vendidos. Para mim, aquilo dali era o Olimpo. Eu elaboro o mundo por meio da escrita. Sempre escrevi bastante em diário, em qualquer papel, no que eu achava para escrever. Só não achava que isso podia ter alguma relevância, alguma importância para o mundo. Quando tive minha segunda filha, comecei a fazer um curso de empreendedorismo, tinha uma torteria, e amigas me falavam: “Por que você não fala sobre a maternidade? Você tem um jeito tão diferente de olhar a maternidade”. E nesse curso eu precisava ter uma ideia nova por dia, durante 30 dias. E comecei a escrever. Em vez de fazer receita (risos), escrevi e saiu meu primeiro livro, que hoje não é mais vendido. E dali em diante, a escrita em forma de livro ganhou um espaço maior na minha vida, não só como leitora, mas também como escritora.

Puxando um pouco mais pela memória, desde quando você se interessou com literatura, de uma forma mais ampla?
Desde sempre. Fui educada num lar evangélico, com regras muito rígidas. A gente podia ver pouca TV, não assistia novela, tinha várias restrições na educação. Meu pai tinha um controle bem grande em tudo que a gente tinha acesso, mas os livros eram uma porta livre ao mundo para mim. Meu pai não conseguia ler, ele não leria na velocidade que eu leio, ele tinha as ocupações dele, inclusive. E os livros eram meu lugar de liberdade. Eu podia ler o que eu quisesse. E, para pai e mãe, ver uma criança com o livro na mão é maravilhoso sempre. Então não tinha restrição para o que eu queria ler. Ler era o lugar de exercitar minha liberdade e minha criatividade. Não consigo ter memória de quando os livros não estavam presentes na minha vida, mesmo quando meu primeiro filho nasceu, e o tempo era escasso, puerpério, cuidando do bebê.

Em seus livros, as relações familiares são um dos temas abordados. Como psicanalista, qual foi o maior desafio e também o grande trunfo de levar para as páginas grande parte de sua bagagem profissional? E como vem sendo a repercussão junto a seu público desde o lançamento de “Educação não violenta” (2019)? Pergunto no sentido de se, a cada lançamento, a resposta do público muda muito, mesmo em um intervalo pequeno de lançamento dos livros?
A psicanálise chegou à minha vida depois do lançamento do meu primeiro livro, o “Tudo eu”. Eu já me interessava pelas relações familiares, comecei a estudar a família assim que meu primeiro filho nasceu. Quando meu filho estava com (alguns) meses, eu lia muito sobre família e educação, como se forma um ser humano, o que acontece na vida de um ser humano para ele ser quem ele é, quais são os vários ingredientes que se misturam para a gente chegar onde a gente chegou, e quanto mais eu pensava nisso, mais eu queria estudar. Aí veio a psicanálise. Eu já tinha feito cursos para lidar e trabalhar com famílias, mas eu queria mais. Atendia famílias, ouvindo sobre os problemas, relações, problemas disciplinares. Eu não tinha formação nem jurisdição para ser terapeuta de ninguém. E aí eu quis estudar mais, porque percebi que tinha coisas muito mais profundas do que ‘eu não sei lidar com o choro do meu filho’. A psicanálise entrou na minha vida nesse lugar de estudar para entender. E eu ouço muitas pessoas. Me enche de reflexões sobre o que a gente vive. Divido reflexões nos meus livros, na minha escrita. Não é sobre dar aula, não é sobre ensinar. São os achados que eu tenho diante da minha curiosidade. Tenho curiosidade sobre a relação familiar, sobre o que a gente vive, e eu escrevo para falar: “Olha, gente, o que eu descobri, olha o que eu estou percebendo”. Não é que o Freud dava certo? (risos) Não é que o Winnicott foi genial nisso daqui? Mas não é com a intenção de dar aula, não é com a intenção de mostrar... Não, eu só quero dividir descobertas muito intensas, muito especiais e que são libertadoras. Quanto mais a gente se conhece, mais a gente se liberta. E o retorno sobre os livros é muito semelhante, mas tem mudado (risos). Ele é muito semelhante no sentido de: “Nossa, eu pensei coisas que eu nunca tinha pensado. Caramba, você me levou para lugares que eu ainda não tinha visto da educação dos meus filhos, da minha relação com meus pais”. Mas à medida que meu trabalho vai mudando, os livros saíram da relação pai-filho: de “eu sou a mãe, e você é meu filho”, “eu sou pai, e você é meu filho” e “como é que eu lido com meu filho” foram para uma relação de adultos de uma forma geral. Então, se olha para minha relação com o marido, com a esposa, se pensa na minha mãe, na infância. O retorno tem mudado num sentido de: “Caramba, Elisama, agora eu vi coisas da minha história que eu não tinha visto ainda”. No lançamento do “Mesmo rio”, em um em evento no Rio de Janeiro, uma moça se aproximou de mim, chorando, e falou: “Elisama, tenho 45 anos. E pela primeira vez na vida eu entendi minha família”. Esse tipo de retorno é muito incrível, sabe, de ajudar as pessoas a olharem para a história delas.

Aliás, você lançou quatro livros em quatro anos, já que, depois de “Educação não violenta”, temos “Por que gritamos” (2020), “Conversas corajosas” (2021) e “Mesmo rio” (2022). O que cada obra te trouxe enquanto escritora?
Tem hora que eu olho e penso: “Meu Deus, como estou sem parar”. Mas é que o livro vem. Nenhum dos livros foi premeditado (risos). Eles vêm, eles chegam. A ideia de: “Nossa, eu preciso escrever sobre esse tema, preciso escrever sobre essa história”. E cada livro me traz uma relação diferente com o público, porque ele (público) foi ampliando. A “Educação não violenta” falava de educação de uma forma mais fechadinha na relação pai-filho e mãe-filho. Em “Por que gritamos”, chamamos a pessoa a olhar para ela mesma. Em “Conversas corajosas”, eu falei: “Cara, vamos olhar para todas as suas relações. Vamos ver o que você não está dizendo na sua vida. Vamos nos ouvir”. E o “Mesmo rio” vem com essa história de família. Então, cada um deles foi me ensinando um pouco sobre minha liberdade de escrever. Acho que talvez esse seja o ponto principal dos livros para mim: minha liberdade de escrever. Tenho descoberto a cada livro que chega, cada livro que se apresenta para mim, que eu posso escrever mais, sobre mais temas e mais assuntos. E que a arte não me abandona. Lançar livros todos os anos não foi porque quis lançar livros todos os anos, foi porque senti que eu tinha um livro para lançar a cada ano.

Sobre “Mesmo rio”, quando e como surgiu a ideia de fazer sua primeira obra ficcional? 
“Mesmo rio” surgiu da forma que os outros livros surgiram para mim. Ele surgiu! (risos) Literalmente. Quando eu fiz o “Conversas corajosas”, assinei um contrato de um novo livro, que seria um livro sobre irmãos. Acho que passei uma semana com uma história na cabeça, com o comecinho do livro pronto na minha cabeça. Eu acordava, não com a ideia escrita, não com frases, mas com a cena da Rita no carro, olhando para o portão, aquele dia quente, verão, fim de dezembro, começo de janeiro, em que ela chorava, e havia uma angústia ali. Eu sentia a angústia dela no meu corpo. É assim que o livro tinha que vir. E é uma ficção. Escrevi para minha editora, a Lívia, queridíssima amiga. Falei com ela que o “livro sobre irmãos” queria ser uma ficção. Falei que estava com uma história para escrever: “E aí, a editora topa?”. E ela topou: “Claro, manda para mim o que você tem de ideia”. Escrevi então a primeira parte do capítulo, que era a parte sobre a Rita, e mandei. A Lívia disse que estava muito legal, e o livro foi fluindo.

Um comentário interessante veio do psicólogo e escritor Alexandre Coimbra Amaral, a respeito de “Mesmo rio”, em uma de suas colunas: “É uma história que envolve, como tudo o que Elisama escreve, diz e faz: porque é próximo de nós, porque é íntimo, porque é visceral e, sobretudo, porque merece ser considerado e integrado em nossa humanidade. O talento de Elisama se esgueira, agora, para as linhas inventadas, mas não acredite tanto neste adjetivo ‘ficcional’, porque você, ao lê-lo, descobrirá que, em alguma parte de sua biografia, terá sido banhado pelos afluentes deste mesmo rio”. O que achou desse comentário?
Ai, gente, o Alexandre... (risos) O Alexandre tem um poder na escrita dele de mexer com o coração da gente que poucas pessoas têm. Então, o comentário dele me encheu de amor, porque “Mesmo rio” é uma história muito simples. Eu tinha medo dessa história tão simples. Não é uma história de grandes reviravoltas, não é uma história mágica, não tem nada de muito incrível nessa história. É a história de uma família, em que um dos filhos rompe (com a família), em que cada filho viu aquilo (o rompimento de um dos filhos), e na maior parte do livro a gente está falando de coisas que acontecem todos os dias, de forma muito sutil e muito simples... Eu olhava a história e tinha medo de essa história não fazer sentido para as pessoas, porque elas iam falar: “Por que vou ler um livro em que está me contando uma coisa que eu já vi tantas vezes?”. E esse comentário do Alexandre me lembra que ver novamente o que a gente viu tantas vezes com outro olhar nos ajuda a entender o que a gente viu tantas vezes e por que a gente repete tantas vezes o que a gente já viu. Então, é um comentário que me faz lembrar que tem muito poder de identificação, de análise, de elaboração no simples.

Falando da história de “Mesmo rio”, há um incidente, a ruptura dos laços de Rita, caçula de uma família, com seu pai, seus dois irmãos e, sobretudo, sua mãe. E é exatamente em uma festa, uma ceia de Natal, que essa ruptura oficialmente acontece. Ali, inclusive, há vários elementos que trazem ainda mais emoção à narrativa, como a gravidez de Rita, problemas vivenciados por cada um deles e os atritos antes e durante o almoço. Queria que você abordasse um pouco a respeito dessa cena e o quanto ela reverbera ao longo do livro. Até porque o livro não começa com ela, mas ao longo da obra o leitor sabe que é nela que descamba essa ruptura.
O jantar é um mote para as mudanças que aconteceram para todo mundo. Por que o livro não começa com a ceia de Natal? Porque eu queria que as pessoas conhecessem cada membro da família antes daquele jantar, que elas soubessem quem era cada um ali antes de tomar partido e falar: “Esse está certo, esse está errado, essa é a mocinha, esse é o vilão”. Eu não queria empurrar as pessoas para vilões e mocinhos. Eu queria que a gente conseguisse enxergar que há um mocinho e um vilão em muitos de nós. Que há muita complexidade no nosso sentir. Que há amor nas rupturas. E por isso a ruptura acontece mais para frente. E a ruptura é um gesto de muita coragem da Rita, em amor a ela, em amor à própria família que ela está iniciando. É um ato de coragem, de lealdade dela com o que ela descobria sobre ela mesma, do que ela achava que ela merecia. E de como aquilo reverbera em cada pessoa, porque aquela ruptura, de certa forma, transforma cada um que assistiu a ela (a cena da ruptura no Natal). Ela é o ápice de uma história que já vinha sendo construída desde que eles eram bebês. Na realidade, que vem sendo construída desde antes de os filhos nascerem. Essa ruptura vai sendo construída e se desenrola de forma diferente para cada um. Acho que a gente fala pouco a respeito de encerrar relações abusivas dentro das nossas famílias. A gente acha mais normal aguentar qualquer tipo de violência da família porque é família. É importante entender que a gente também tem o direito de colocar uma linha bem firme, bem desenhada, falar “daqui ninguém ultrapassa, não importa o título que você tem na minha vida”. Foi o que a Rita fez. E isso tem uma importância bem grande na história e que mexe com muita gente. Essa cena tem me trazido um retorno muito bonito de leitores e leitoras.

Com toda sua bagagem a respeito de relações familiares, como foi traçar um perfil para cada personagem, cada um deles com seus traços tão complexos?
A criação dos personagens, para mim, foi como o livro, não foi premeditada. Então, eu tinha a sensação que estava “assistindo”. Para quem não escreve, talvez seja estranho ouvir falar isso, mas minha sensação não é de que eu criei aqueles personagens, mas sim de que eu estava aberta para receber aqueles personagens, ouvir quem eles são, para entender quem eles são. Então, não me sinto criadora da Marília, da Rita, do Lucas, da Maria Lúcia, do Benedito, não acho que os criei; eu ouvi o que eles tinham para me dizer sobre cada um. Cada camada que veio foi resultado de uma escuta atenta para entender quem eles eram. Por exemplo, eu tinha outra ideia para o Lucas, mas não conseguia escrever. Lembro de estar conversando sobre isso com uns amigos, e um deles me contou uma história, que não sei se é verdade, do (escritor) Jorge Amado. Disse que a Zélia (escritora e mulher de Jorge Amado) estava escrevendo na máquina de escrever, puxava o papel, enrolava e o jogava fora. Escrevia, puxava o papel, enrolava e jogava fora. E o Jorge está vendo de longe, depois se aproxima e fala: “Mulher, o que é que está acontecendo aí?”. E aí a Zélia diz: “Amor, estou tentando escrever aqui, e esses personagens estão se encontrando, querem se casar”. O Jorge então teria olhado para ela e dito: “Mulher, tu não te metes na vida dos teus personagens” (risos). E é isso, sabe? Não me meti na vida deles, não. Não criei a complexidade deles. Eu senti e ouvi a complexidade deles. O que eu sei é fruto de tudo que eu já estudei e observei sobre família. Porém, a criação das camadas (dos personagens) foi fruto de uma escuta atenta do que tinha que vir para o mundo.

Ao mesmo tempo, percebe-se ao longo do livro, não apenas as relações familiares, como também várias situações que envolvem a sociedade, inclusive preconceitos. O machismo está ali presente. E isso impacta nas três mulheres centrais da narrativa, Rita, a irmã Marília e a mãe. O dia em que a mãe conhece o homem que viria a ser seu marido é um desses casos, apesar de trazer ali o início de um laço amoroso. Nos fale a respeito dessas questões, por favor. E o quanto o feminismo e sua importância estão inseridos no livro.
O livro traz a história de pessoas, desde pequenininhos. A gente vai contar a história de gente pequenininha que vai crescendo, um pouco de adolescência, um pouco da vida, lembrar situações... Vivemos em uma sociedade machista, racista, violenta de diversas formas. O que trago no livro é um escancarar dessas relações. É o quanto o machismo, o quanto as violências sociais, a violência contra a criança, o quanto essas situações atravessam nossa vida. E elas, de certa forma, nos moldam ou nos deformam. Eu desafio qualquer pessoa a escrever a história de uma mulher nos dias de hoje e que não encontre as chagas que o machismo causou na história dela. Para mim, é impossível construir a narrativa da vida de uma mulher sem contar as chagas que o machismo trouxe na vida dela. É impossível criar a história de um homem, contar a história sem contar o quanto ele foi preparado desde criança para ser violento com ele mesmo, com mulheres e com os pares. Principalmente com mulheres, é claro. Então, olhar as violências sociais e escrever no livro foi ser fiel à vida e ao que acontece na sociedade. Para mim, não era só importante; era essencial, indissociável. Não conseguiria escrever um livro sobre família sem trazer essas questões do contexto social ao nosso redor e de como a socialização de homens e mulheres interfere na construção dos relacionamentos amorosos.

A construção das personagens masculinas também traz intensidade. O “calar”, tanto do pai quanto do filho mais velho, Lucas, é sintomático. Ao mesmo tempo, você trata dessa situação entrelaçada a dramas vividos pelos dois. O pai, por exemplo, teve uma infância difícil, com o pai dele tendo uma postura violenta. E aí, voltando a evocar a questão das camadas dos personagens, gostaria que dissecasse a construção desses personagens homens e também os papeis deles dentro da família.
Escuto mulheres, principalmente, porque são elas que mais procuram terapia, são elas quem mais procuram todo tipo de auxílio para lidar melhor com as relações. Escuto mulheres há muitos anos. Nessas escutas, as queixas sobre os homens são muito semelhantes, têm uma linha condutora. Quando a gente trata das relações familiares e amorosas, temos ali um ponto em comum desse homem, que, em regra, pode se furtar de ser ativo dentro de casa, se furtar de ser ativo dentro das relações. Ele pode não estar. É dado a ele o direito de não estar inteiro na relação. O homem foi acostumado – e falo isso com certa frequência – a receber “o ponto de presença”. Sabe quando você é aluno, e a professora fala que quem estiver ali já ganha um ponto por presença? O homem está acostumado ao ponto de presença. Ele está acostumado a estar ali, e o fato de ele permanecer ali, de assumir o filho que ele mesmo fez, de querer estar num casamento, de dar as mãos para uma mulher, de falar que vai casar, por si só já basta. É a parte dele na relação da construção. A parte dele é estar presente. Não precisa ser ativo, não precisa pensar em como ele vai estar presente, não precisa cuidar, porque o cuidado foi socialmente delegado às mulheres. A construção desses homens que se calam diante das situações mais importantes das relações é uma construção, uma constatação do que acontece em sociedade. Então não foi uma criação. Eles (homens) são assim, porque foram criados em uma sociedade que é assim, que dá direito aos homens de serem passivos, de fazerem as coisas no seu próprio: “É porque ele ainda não amadureceu, ele ainda é um garotão, menina, irresponsável”. Tenha paciência! As meninas e as mulheres crescem ouvindo para ter paciência com os homens, porque eles não têm maturidade e não são obrigados a serem responsáveis nas relações. E eu não quis, na descrição da história, em momento algum, colocar isso como uma falha de caráter. Ouvindo esses personagens, nenhum deles tinha uma falha grave de caráter. O Lucas é um cara muito gente boa. A maioria deles é gente boa demais. Não é sobre ser legal ou não ser legal. É sobre as consequências da criação social na vida deles. Então, perceber as violências e como eles são forjados para estarem ausentes das relações e ausentes deles mesmos foi uma consequência das minhas observações a respeito de como nossa sociedade infelizmente ainda funciona.

Rita, após a ruptura com a mãe, vive uma nova etapa, ao lado de seu companheiro e seu filho. Mas os dramas de sua infância, adolescência e parte da fase adulta a assombram ao longo dos dez anos seguintes, antes de voltar a ver a mãe, em que Maria Lúcia está em estado de câncer terminal. E, ao longo do livro, nos deparamos com muitos conflitos internos de Rita. Queria que nos falasse um pouco por meio de sua linguagem psicanalista a respeito de Rita, não só como personagem como também como reflexo de “várias Ritas” dentro uma sociedade brasileira que possui tantos conflitos familiares.
A família é nossa primeira experiência de como o mundo funciona. Então, dentro das nossas famílias, começamos a entender o que é amor, como que a gente consegue o amor, o que é respeito, como consigo respeito, o que são relações, o que é relacionamento, como eu atuo no relacionamento, quem eu sou, como eu me entendo, como atuo no mundo. Aprendemos tudo isso na dinâmica familiar. Se não temos espaços ao longo da vida para analisar, elaborar e observar essas ferramentas que aprendemos ainda enquanto crianças, de como o mundo funciona, vamos repetir, repetir e repetir (as situações da vida). A vida se torna uma repetição desses aprendizados e reações que a gente adquiriu ainda na infância. As crises que Rita tem nas relações, como na relação com o Iuri (companheiro de Rita), que é uma relação saudável, são reflexos do que ela aprendeu sobre o que é normal. Então, nossa família nos ensina o que é o normal. E a gente vai aprendendo a lidar e, muitas vezes, encaixar o outro nesse padrão de normalidade. É claro que estou falando aqui bem a grosso modo. O Freud passou muito tempo escrevendo sobre isso para eu chegar aqui (na entrevista) e tentar resumir um conceito que é tão complexo. Mas é basicamente isso. A gente repete muita coisa que aprendeu na nossa infância, até que a gente consiga elaborar, entender e ganhar novas formas de lidar e construir novas formas de lidar com esses desafios. A história da Rita é essa história de construir uma confiança no mundo que nunca foi confiável para ela, construir uma confiança nessa relação que nunca foi confiável para ela. Então, tem um determinado momento em que a Rita olha essa relação, que é saudável, e fala: “Tem algo de errado, eu vou estragar isso daqui, vou fazer uma merda aqui, estou arrastando o Iuri para essa porcaria de vida que eu tenho, meus próprios dramas”. A gente repete até construir com dor, dificuldade e muita reflexão sobre o que a gente passou e novas formas de lidar com esses estímulos que o mundo dá para a gente.

Um ponto crucial da obra também é o fato de os personagens da família principal serem pretos. E gostaria que você falasse mais a respeito disso. Até porque o mote da obra são as questões familiares e não questões relacionadas ao racismo em si. Embora, como já dito, existe questões relacionadas ao preconceito inseridas.
Eu leio há muito tempo, amo ler. E sinto falta de personagens parecidos comigo. Sinto falta de ver famílias parecidas com a minha nas histórias. Leio e vejo os romances brasileiros, com descrições das bochechas rosadas, dos cabelos ruivos, dos olhos verdes. E não é que os autores que escreveram isso estão errados. Eles estão descrevendo a eles mesmos e as histórias e as pessoas que estão ao redor deles. Mas sou uma autora negra. E por isso é tão importante que a gente tenha os negros com a caneta na mão, com os negros construindo as histórias, não só interpretando histórias que brancos criaram e que são histórias em que as pessoas acham que a gente vive daquele jeito. Essa é uma história que pode e que acontece em muitas famílias, de diversas cores, mas é uma história que eu posso ver e falar: “Olha, ela parece comigo, a pele cor de caramelo, as tranças no cabelo”. Uma família negra vive inúmeras coisas, porque a gente não vive só o racismo. O Emicida tem uma frase que eu amo: “Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes, elas são coadjuvantes, figurantes, que nem devia tá aqui” (trecho da música “AmarElo”). Eu não quero falar só de racismo, porque a gente ama, casa, se separa, compra casa. E essa história, especificamente, é de uma família negra que vive muito bem, obrigada! Uma família negra que viaja e compra uma toalha de mesa no Marrocos. É uma família negra que tem brincos de ouro e joias para deixar para os filhos. E que uma das joias foi comprada em Paris. Então, é uma família negra que rompe a narrativa que construíram para nós, negros, de que nossas histórias são só de pobreza, dor e sofrimento. Nossas histórias são muito lindas, de diversas formas, apesar do racismo e dos sofrimentos sociais que tentam nos impor. Lembrar que somos maiores é essencial para que a gente siga construindo um mundo melhor, mais justo. Até porque essa parte do sofrimento social é um trecho da história da negritude no mundo. Antes de sermos escravizados, nós éramos reis, éramos filhos de pessoas, gerentes de coisas, profetas, éramos importantes nas nossas culturas, em como nós vivemos. Foi essencial para mim escrever um livro, uma história, que fosse vivida por pessoas que pareciam comigo.

Rita e Marília tiveram um menino, cada, como primeiro filho, assim como a mãe. Cada uma delas tem uma visão diferente da mãe na questão de criação dos filhos. Enquanto Rita critica a mãe, dizendo que vai amar muito seu filho, algo que a mãe não teria feito, Marília busca entender melhor o lado da matriarca de ter se sacrificado em prol de seus filhos. Gostaria de uma análise sua, por favor, novamente para essas questões.
A maternidade desperta em nós coisas diferentes. Acho interessante quando as pessoas falam: “Ah, quando você tiver filho, vai entender”. Será? Será que é tão fatal assim, tão determinista assim a gente dizer que uma coisa vai acontecer na vida da pessoa, e que todo mundo vai pensar igual? Então não dá pra eu dizer que a maternidade vai despertar em todas as mulheres do mundo a mesma coisa. Em Rita e Marília desperta coisas diferentes. Em Marília, cria-se um entendimento visceral com essa mãe, de olhar e dizer: “Meu Deus, como ela deu conta de três, e eu tenho um só. Como que ela conseguiu viver isso? Meu pai não fazia nada”. Cada vez mais ela idolatra mais essa mãe, se afunda mais no papel que ela já tinha dentro dessa família. Ela reforça mais a ideia de que essa mãe era perfeita. A Rita tem uma experiência diferente. A cada construção dela com esse filho, ela pensa: “Como minha mãe agiu assim? Eu não conseguiria fazer isso com meu filho. Como ela pôde falar aquelas coisas comigo? Eu não faria isso com meu filho”. Elas experimentam a situação que teoricamente seria a mesma maternidade de formas diversas, assim como é tudo na família. E qual que é nosso maior erro? É acreditar que uma única situação que desperta algo em nós vai despertar exatamente a mesma coisa no outro. Nós somos universos complexos e únicos. A gente precisa lembrar disso para conseguir ir além da nossa forma de ver o mundo. O Leonardo Boff fala que o ponto de vista é a vista de um ponto. Então a vista desse ponto que eu estou é uma. Qual é a vista do ponto que o outro está? É diferente. E se acredito que meu jeito de experimentar os acontecimentos na vida é universal, deixo de me conectar com o outro, de ter curiosidade sobre a vida do outro, deixo de lembrar que o outro é um mistério. E que sempre vai ser um mistério para mim.

Que mensagem você deixaria a quem ainda não leu “Mesmo rio”? De que forma você o apresentaria a alguém?
Um convite para olhar essa família com uma lupa, porque acho que é isso que eu faço em “Mesmo rio”. Eu pego uma família normal, uma família comum – e você certamente conhece alguém que se assemelha aos personagens –, empresto uma lupa e falo: “Poxa, observa aqui um pouquinho (risos), dá uma olhadinha de perto, vamos ver o que a gente não tem observado no dia a dia”. E vamos observar, porque observar e dar nome ajuda a construir um mundo diferente para a gente e os nossos. Se você não conseguir olhar com a lupa ali e se enxergar ou enxergar pessoas próximas a você, pelo menos vai ter uma história legal para ler (risos). Uma história bacana para ler e se divertir, é entretenimento também.

Por fim, gostaria que nos falasse de seus próximos trabalhos. O que está na pauta da Elisama escritora, apresentadora e psicanalista para 2023?
O ano de 2023 ainda é um mistério para mim. Estou com ideias muito novas, mas guardando todas elas para o momento certo de colocar no mundo. Estou cuidando da casa e das minhas plantas, estou pintando a casa, abrindo espaço para que 2023 chegue com uma casa bem bonita para ele, interna e externamente. Vai ter livro novo? Certamente! Mas estou esperando-o chegar. E não tenho certeza sobre o que ainda.

Trechos do Livro


“‘Quando a gente vira mãe, deixa de existir, tem que viver para os filhos!’, ela escutou da própria mãe, assim que Lucas nasceu. Mas ela não deixou e não queria deixar de existir. Tinha raiva da ideia de ser apagada por quem quer que fosse. Tinha nome, história e uma existência complexa que precedeu a chegada dos filhos.”

“Injusto pensar que tudo aconteceu naquele Natal. O fim é um copo que se enche aos poucos, com palavras ditas e engolidas. É um copo cheio de olhares rancorosos, de contas em aberto, de expectativas não assumidas, de frustrações. Relações bem cuidadas se transformam, tomam novos rumos.”

“Lucas era guiado pelas urgências em quase tudo que se relacionava com a sua vida pessoal. Talvez o intenso medo de desagradar o fizesse adiar decisões importantes, talvez isso fosse parte da tendência masculina de refletir pouco sobre si e sobre o outro. De toda forma, precisava das demandas externas para se pôr em movimento.”

“Não importava se tentava apagar essa mãe da própria mente: essa era a mãe que tinha. A dor que achou ter superado voltou com tanta força que lhe tirou o ar. Por um tempo, sentiu o luto de quem perde toda a família em um acidente trágico. Mas a mãe estava ali, ressurgida dos mortos, assombrando a vida que ela estava construindo.” 


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