Ana Elisa Ribeiro
Especial para o EM
Em 28 de outubro de 2022, fiz um convite à professora Magda Soares. Minha mensagem seguiu por e-mail, muito cerimoniosa, e ela me respondeu no dia 2 de novembro, sem cerimônia alguma, me chamando de amiga, de querida e pedindo, com muito bom humor, isto: “Refaça minha posição em sua lista de amigos e fãs, tá? rsrsrs”, com direito também a um emoji animado, aquela carinha amarela com os olhos de coração. Levei um pequeno susto, agradável, afinal, porque, além de tudo, ela aceitava meu convite: “Vou até gostar de registrar minhas memórias paradoxalmente entusiastas e ambíguas com as tecnologias digitais...”. Não deu tempo.
Na virada do ano, perdemos a professora Magda Soares. A mensagem direta que me trouxe a notícia de seu falecimento veio por WhatsApp, dada por uma grande amiga em comum. Infelizmente, não deu tempo de editar as memórias da professora Magda em relação às tecnologias digitais, aspecto dos letramentos que ela nos inspirou a conhecer.
A biografia de Magda Becker Soares está cheia de merecido reconhecimento. Honorável belo-horizontina nascida em 1932, formou-se em Letras, foi doutora já nos anos 1960, aposentou-se na Universidade Federal de Minas Gerais em 2000 e recebeu reconhecimento, nacional e internacional, por sua dedicação aos estudos de alfabetização. No entanto, os dados do seu currículo ou sua biografia explícita não dão conta da enormidade de seu trabalho na alfabetização, em especial de crianças, e nos estudos do letramento. Os livros e os textos de Magda Soares, que, afinal, não somam uma lista tão extensa, influenciaram e influenciam gerações de professores no Brasil, em especial os de língua materna, de uma perspectiva que nos ajuda a enxergar a leitura e a escrita em total conexão com a sociedade.
Mudança de rumos da formação docente
Magda Soares foi autora de livros didáticos, isto é, circulou amplamente nas escolas da educação básica. Além disso, publicou obras que mudaram os rumos da formação docente, em especial três: “Escola e sociedade”, pela editora Ática, no final dos anos 1980; “Letramento, um tema em três gêneros”, de 1998, pela editora Autêntica; e “Alfaletrar”, já em 2020, pela Contexto, que também republicou alguns de seus títulos. É improvável que uma pessoa que se tenha formado professora no Brasil, pelo menos nas três ou quatro décadas mais recentes, não tenha conhecido os textos e as ideias de Magda Soares.
Para além dos livros, a professora publicou artigos em revistas científicas, e um dos mais citados, também incontornável, dada a sua importância, é “Novas práticas de leitura e escrita: letramento na cibercultura”, de 2002, publicado em “Educação & Sociedade”, periódico do Centro de Estudos Educação e Sociedade (CEDES) da Unicamp. O texto é de acesso aberto e pode ser baixado livremente na web. Trata-se, ainda hoje, de um dos mais citados artigos quando o assunto é letramento e tecnologias digitais, porque foi nele que a professora Magda Soares se arriscou numa compreensão de como as ditas TDIC influenciariam a leitura e a escrita em nosso tempo, assim como buscou acomodar a noção de letramento, ainda muito afeta aos livros e aos materiais impressos, às experiências que já vínhamos tendo, desde os anos 1990 no Brasil, com computadores e conexões à rede mundial. Naquele artigo, Magda Soares ensaiava uma perspectiva que levava em conta esses novos recursos, mas ainda sem se aventurar nas águas profundas das TDIC, que revolveram nossa relação com ler, escrever e fazer circular textos. Nos tempos mais duros da pandemia, em 2020, proferiu uma conferência pelo YouTube da Associação Brasileira de Linguística em que, magistralmente, apresentou o trabalho que desenvolvia. Foi assistida por mais de 5 mil pessoas simultâneas e a gravação hoje tem alguns milhares de visualizações. Naquele dia, foi interessante assistir à live de uma mulher de quase 90 anos, absolutamente admirada por sua inteligência e por sua capacidade de examinar e analisar as questões de leitura e escrita que têm impacto em nossas vidas, agora.
As questões de linguagens, educação e tecnologias têm relação profunda com a escola; são complexas e muito desafiadoras. Meu convite à professora Magda, tão cerimonioso e respeitoso, era para que ela escrevesse uma breve biografia de sua experiência com as tecnologias, um projeto editorial que vimos desenvolvendo no Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG) para 2023. Perdemos um de nossos mais relevantes títulos, um de nossos mais interessantes depoimentos, de uma pesquisadora absolutamente fundamental para o pensamento sobre ler e escrever em nossa sociedade, uma professora com os pés fincados no Brasil e na escola real.
Magda Soares, afinal, me respondeu, minimamente: tinha uma relação que chamou de “paradoxalmente entusiasta e ambígua com as tecnologias digitais”, o que provavelmente se parece com o que qualquer de nós percebe e sente. No entanto, são raras as pessoas que dedicam suas vidas ao estudo dessas relações, influenciando e encantando várias gerações a buscarem respostas comprometidas e relevantes para as questões de nosso tempo. Magda Soares é absoluta referência nos temas da linguagem e da educação, ocupada da experiência empírica e do diálogo horizontal com investigadoras de gerações posteriores. Continuará incontornável e relevante pela obra que produziu, além de nos deixar eternamente curiosos e curiosas pelas respostas que não teve tempo de dar aos nossos questionamentos. Hoje, de onde estiver, talvez possa nos enviar emojis de coração e nos lembrar que fez o fundamental: nos ensinou a manter a curiosidade, a fazer boas perguntas e a nos comprometer socialmente com as respostas que alcançamos e formulamos.
Ana Elisa Ribeiro é escritora e professora titular do Departamento de Linguagem e Tecnologia do CEFET-MG.
Livros essenciais
“Alfabetização e letramento”
“Alfaletrar: toda criança pode aprender a ler e a escrever”
“Escola e sociedade”
“Letramento, um tema em três gêneros”
“Linguagem e escola: uma perspectiva social”