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Estado de Minas PENSAR

Cristina Rivera Garza: 'Impunidade é cúmplice do terror de muitas mulheres'

Ao contar a história do assassinato de sua irmã em "O invencível verão de Liliana", autora põe a linguagem no centro da narrativa


20/01/2023 04:00 - atualizado 20/01/2023 00:04

Cristina Rivera Garza
Cristina Rivera Garza sobre a escrita de violência: "Os riscos são muitos: pornoviolência, banalização e também reduzir as mulheres ao papel de vítimas passivas, sem agência ou vontade própria" (foto: DIVULGAÇÃO)

 

"A falta de linguagem é avassaladora. A falta de linguagem nos algema, nos sufoca, nos estrangula, nos atinge, nos esfola, nos isola, nos condena.” O trecho do primeiro capítulo de “O invencível verão de Liliana” (Autêntica Contemporânea) se refere ao uso de termos específicos, como ‘feminicídio’, para designar adequadamente situações de opressão socialmente enraizadas. Para além disso, o fragmento apresenta ao leitor um ponto central sobre como a autora Cristina Rivera Garza irá conduzir a história de sua irmã ao longo do livro, com atenção meticulosa à linguagem a cada página e transformando esse cuidado no grande trunfo da forma como narrou a vida de sua irmã mais nova, interrompida há mais de três décadas por um crime de ódio.

 

Cristina nasceu no México, em 1946, e vive nos Estados Unidos desde 1989, onde hoje é professora na Universidade de Houston, no Texas. Autora premiada, em “O invencível verão de Liliana” ela se debruça sobre a história de sua irmã caçula. E trata-se, de fato, de um livro sobre a história de Liliana Garza, não sobre seu feminicídio. O crime, é claro, é o ponto central da narrativa e apresentado desde o início do livro, mas o foco em trabalhar de forma minuciosa e polifônica o personagem da irmã dá à obra uma potência que dificilmente seria alcançada se o objetivo da autora fosse dissecar detalhes do ato que interrompeu a vida da irmã.

 

A autora inicia o livro com sua jornada kafkiana pelo sistema de Justiça mexicano em busca do processo criminal acerca do feminicídio de Liliana. Os entraves burocráticos e a displicência dos funcionários do Estado, somados às três décadas que separam a busca pelos autos do momento do crime, apresentam inicialmente uma das dores de quem tem no sistema judiciário um obstáculo na luta por justiça, como Cristina descreve em entrevista ao Pensar do Estado de Minas.

 

É a partir dos capítulos seguintes que a linguagem ganha destaque central na narrativa, que faz variações cronológicas para voltar à infância e adolescência de Liliana. A autora apresenta centenas de correspondências e relatos de amigos e familiares da irmã, organizados de maneira que tornam a leitura fluida e, mais importante, constrói a partir de diferentes vozes a história da personagem e conta como ela se manifestava em seu meio em diferentes estágios da vida. 

 

Liliana documentou a própria vida com minúcia de detalhes em relatos e cartas, acervo em que Cristina mergulhou para a escrita do livro. Novamente, a linguagem ganha destaque na organização dos arquivos e também na forma. A caligrafia da irmã foi transformada em uma fonte tipográfica para reproduzir todos os trechos oriundos de seus escritos. Dessa forma, Cristina conta a história da irmã, sua infância e adolescência em Toluca até a mudança para a capital mexicana, onde ela ingressou na faculdade de arquitetura da Universidade Autônoma do México. A polifonia empregada na narrativa ajuda a destacar as mudanças de fase na vida da estudante, como novas relações foram construídas, outras deixadas para trás e, essencialmente, como a personalidade e o comportamento de Liliana foram afetados pela relação com Ángel González Ramos.

 

À medida que a história da vida de Liliana vai se aproximando de seu ponto final, abreviado pelas mãos do ex-namorado, o impacto destrutivo de Ángel na vida de sua vítima ganha espaço na narrativa. Com relatos próprios, de seus pais, da irmã, de amigos, trechos de jornais e citações acadêmicas, Cristina Rivera Garza deixa clara a importância de não exonerar o criminoso de culpa, bem como a estrutura de violência sistêmica que vitima mulheres no mundo todo.

 

Na entrevista ao Pensar, a autora comenta a escolha de uma abordagem individual para tratar sobre o amplo problema da violência de gênero, revela como foi mergulhar na história da irmã, e discute formas de escrita e tratamento de feminicídios e agressões contra as mulheres. Leia, a seguir, a entrevista com Cristina Rivera Garza.

 

"Muitas produções audiovisuais continuam a considerar a violência contra a mulher como um evento isolado e extraordinário, e, por isso, dedicam grande parte ou toda a sua atenção à motivação e à mente do assassino (como se fosse muito difícil entender isso, quando o sistema os favorece, é muito fácil cometer crimes contra mulheres)."

 

O livro reúne uma grande quantidade de material escrito por Liliana, relatos de amigos e parentes, bem como documentos e registros sobre o assassinato. Você resgatou esse material durante o período de cerca de 30 anos desde o crime ou mergulhou em um período mais curto para escrever o livro? 

Todo o processo de escrita é acompanhado por um processo de pesquisa – e quero dizer pesquisa no sentido mais amplo da palavra. Nesse caso, a investigação envolveu o processo de luto, a recuperação de material institucional em arquivos do Estado, a produção de material a partir de entrevistas com familiares e amigos e o encontro com o que chamei de arquivo dos afetos, o acervo documental de si mesma que Liliana realizou durante sua estada na Terra. Cada uma dessas facetas exigia um tempo diferente, mas posso dizer que o trabalho mais difícil e intenso aconteceu depois de abrir as caixas com os pertences de minha irmã. Essa descoberta desencadeou todo o resto.

 

No livro, a senhora propõe uma reflexão sobre a linguagem, em especial sobre o termo ‘feminicídio’. Como avalia a importância de usar e ter uma linguagem adequada para tratar de questões sociais urgentes, como a violência contra a mulher? 

O que não nomeamos torna-se invisível, o que não quer dizer que não faça mal. Nas sociedades dominadas pela linguagem patriarcal, que continuamente esconde, justifica ou diminui a importância da violência contra as mulheres, esse próprio silêncio torna-se uma forma de violência. Identificar as coisas pelo nome, digo no livro e reitero, exige produzir novos nomes. O feminicídio é uma delas, a forma mais letal de violência de gênero, mas existem outras: assédio, discriminação, estupro. Esses novos nomes designam velhas práticas que, com o tempo, se tornaram “naturais”. A linguagem produzida pelos protestos nas ruas e pelos movimentos de mulheres, incluindo o feminismo, permitiu retirar o véu e mostrar as desigualdades de poder que dão origem a essas práticas. Essa mesma linguagem tornou possível contar essas histórias do ponto de vista das vítimas com dignidade e empatia.

 

O sexto capítulo do livro traz relatos de pessoas próximas em que se pode perceber que houve uma percepção da escalada de violência sofrida por Liliana por parte de seu ex-namorado. Como a senhora avalia a importância de perceber esses sinais e também entender o impacto destrutivo que acontece na vida da vítima antes do feminicídio? 

Rachel Snyder, autora de “No visible bruises” (“Sem hematomas visíveis”, em tradução livre), livro que cito muito no meu, afirma que todo feminicídio é precedido por atos de violência constante e crescente. Estudos contemporâneos e mecanismos como o medidor de violência, elaborado por especialistas do Instituto Politécnico Nacional do México, tornaram visível essa escalada de violência que, por se confundir com a linguagem do amor romântico, muitas vezes passa despercebida. Perceber a tempo, nomeá-lo bem, para não nos confundir, é justamente essa linguagem que questiona e subverte as verdades do patriarcado.

 

O livro também propõe uma discussão sobre como familiares e amigos das vítimas se culpam por não ter oferecido proteção ou antecipado o feminicídio e como esse sentimento exime de culpa o criminoso. Diante de um cenário de violência constante, como adotar e promover condutas preventivas sem mudar o foco da culpa?

Em 1990, quando minha irmã foi assassinada, um senso comum silencioso ditava que o ato havia sido um crime passional, terminologia que implicitamente culpa a vítima e exonera o autor do crime. Questionar essas figuras, tanto culturais quanto legais, é fundamental para apontar o verdadeiro culpado nesses casos: a violência estrutural, sistêmica e sistemática, que a todo momento violenta os corpos das mulheres. E os homens, produtos desse patriarcado, que, sabendo que podem se safar sem sofrer consequências, sabendo que têm a impunidade do sistema e a cumplicidade da indiferença pública com o sofrimento das mulheres, se convertem em feminicidas. Portanto, tanto a impunidade quanto a indiferença devem ser apontadas como cúmplices do estado de terror em que vivem muitas mulheres no planeta.

 

A busca pelo processo criminal de Liliana também mostra como os entraves burocráticos podem ser um obstáculo na luta por justiça em casos como o de sua irmã. Como foi resgatar esse processo após três décadas?

Como em outros locais da América Latina, um dos primeiros grandes obstáculos à obtenção de justiça é o próprio sistema judicial. A lentidão burocrática é capital, assim como a indiferença. Como tantas famílias que perderam entes queridos para a violência, a minha teve que pagar os custos da investigação, pagando detetives fora da acusação, porque ninguém de dentro se dedica a fazer isso prontamente ou com responsabilidade. Advogados devem ser contratados para realizar procedimentos que teriam de ser rápidos e claros. Logo se compreende que existe um grande muro, um muro de proporções inimagináveis, entre a papelada e a justiça.

 

O cenário de violência contra a mulher no Brasil não está distante da realidade mexicana apresentada no livro. Muitas vezes, esse contexto é apresentado a partir de estatísticas que mostram a gravidade do problema. No livro, a senhora conta uma história com viés pessoal, mas com cuidado especial em apresentar diferentes vozes, inclusive a de Liliana, e dar rosto e história a uma vítima de feminicídio. Como você vê a importância dessa abordagem para lidar com a violência que costuma ocorrer de forma mais generalista? 

A indústria de Hollywood, romances sensacionalistas e baladas românticas muitas vezes exploram os corpos de mulheres massacradas para obter lucro. Muitas dessas produções continuam a considerar a violência contra a mulher como um evento isolado e extraordinário, e, por isso, dedicam grande parte ou toda a sua atenção à motivação e à mente do assassino (como se fosse muito difícil entender isso, quando o sistema os favorece, é muito fácil cometer crimes contra mulheres). Poucas dessas produções entendem que estamos diante de uma violência estrutural que se desenrola diante de nossos olhos na correria do dia a dia. Por isso é importante não transformar essas mulheres massacradas em números ou reduzi-las aos momentos do crime. Ainda é essencial mergulhar na especificidade de cada vida, na felicidade e luminosidade de cada vida, para verificar tudo o que perdemos – e aqui este plural se refere à comunidade em geral – quando uma mulher nos é tirada de forma violenta. Talvez assim possamos avaliar seus espaços vazios ao nosso redor e proteger as mulheres aqui e agora ao mesmo tempo. E no futuro.

 

A senhora acredita que a forma polifônica empregada para contar a história de sua irmã com riqueza de detalhes pode se tornar um paradigma para a forma como se noticiam crimes e situações de opressão? A caracterização das pessoas além da atribuição como vítima pode ajudar a dar uma dimensão mais clara sobre a crueldade de crimes como o feminicídio? 

É difícil escrever sobre violência. Os riscos são muitos: pornoviolência, banalização, e também reduzir as mulheres ao papel de vítimas passivas, sem agência ou vontade própria. Uma das grandes lições que os papéis de Liliana nos oferecem é que nunca, nem mesmo nos momentos mais difíceis, ela deixou de se ver como autora de sua própria vida. Havia muitas coisas que a falta de uma linguagem precisa não lhe permitia ver, e suas anotações também apontam para essas lacunas e opacidades. Mas foram tantos outros que ele passou a vislumbrar, e já tomava decisões sobre isso: deixar para trás um relacionamento tóxico, apaixonar-se de outra forma, apostar na sua liberdade. Vê-la assim, com todas as suas luzes e sombras, nos seus altos e baixos, permite-nos aproximar de toda uma vida. Este sentimento de proximidade é essencial para alcançar o tipo de contato do qual pode emergir, nos seus momentos mais felizes, uma empatia que leva à solidariedade e ao acolhimento. E isso é, entre outras coisas, um grande poder da escrita. 

 

Trechos do livro

 

“O feminicídio não foi criminalizado no México até 14 de junho de 2012, quando o Código Penal Federal o incorporou como crime: "Artigo 325: O crime de feminicídio é cometido por quem priva uma mulher de sua vida por razões de gênero". Grande parte dos feminicídios cometidos antes dessa data foram chamados de crimes passionais. Foram chamados de andar em passos errados. Foram chamados de por que ela se veste assim? Foram chamados de uma mulher sempre tem que se dar ao respeito. Foram chamados de algo que ela deve ter feito para terminar assim. Foram chamados de seus pais a negligenciaram. Foram chamados de a garota que tomou uma decisão errada. Foram chamados, inclusive, de ela mereceu. A falta de linguagem é avassaladora. A falta de linguagem nos algema, nos sufoca, nos estrangula, nos atinge, nos esfola, nos isola, nos condena.”

 

***

 

“As respostas são poucas e os fatos, incontestáveis: há trinta anos, sinto falta de Liliana todos os dias e, dentro de cada dia, todas as horas de cada dia. E dentro de cada hora, cada minuto. Cada segundo. O luto para aqueles que perderam entes queridos, mulheres queridas, devido a atos de terrorismo de parceiro, é uma coisa tortuosa. Como Snyder bem analisou em ‘Sem hematomas visíveis’, os sobreviventes costumam culpar a si mesmos, a sua negligência ou cegueira, com uma dureza sem precedentes. Eles não protegeram os que mais amavam; não perceberam o que deveria estar claro diante de seus olhos; não detiveram o predador. A dor que não se afasta, nem um milímetro, da culpa ou da vergonha, fica estagnada antes de chegar ao luto propriamente, permanecendo num limbo informe onde as palavras perdem o sentido e a conexão com os outros e com o mundo se esvai pouco a pouco. As famílias fogem para dentro, escondendo-se até de si mesmas. Com que direito podem exigir justiça do Estado, quando não foram capazes, elas próprias, de proteger os seus, a sua, do perigo?”

 

***

 

“O sistema encarregado de culpar a vítima, aliás, começa a funcionar quando as coisas ainda estão frescas e não se detém de forma alguma com o passar dos anos. É um maquinário metódico e triturador. Está lá, funcionando perfeitamente, entre os que sussurram: se não a tivessem deixado ir para a Cidade do México, se ela não tivesse começado a namorar tão jovem, se tivesse sabido escolher melhor, se tivesse esperado o casamento para ter relações, se tivesse tomado uma decisão melhor, se não tivesse se equivocado. E também está aí, mais tarde, independentemente da quantidade de anos, entre aqueles que apontam que os pais passam tempo fora de casa, a mãe trabalhava, o pai não lhe dava dinheiro suficiente, os namorados a assediavam, as mulheres a amavam. Está nos olhares sombrios e nos sorrisos falsos. Na comiseração. Naqueles que se sentem seguros e elaboram aquela linha moral que divide o nós de vocês. Está na exigência imperativa, inevitá- vel e avassaladora de que a vítima seja culpada e de que você se culpe com ela. Está na que a exigência imperativa, inevitável e avassaladora de exonerar o assassino a todo custo.” 

 

 

“O invencível verão de Liliana”

 

  • Cristina Rivera Garza
  • Tradução de Silvia 
  • Massimini Felix
  • Autêntica Contemporânea
  • R$ 304 páginas
  • R$ 67,50. E-book: R$ 47,90 

 


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