Por serem “arianos”, os gêmeos Wolfang e Bárbara foram, aos 8 anos, “selecionados” para um projeto financiado pelo Fundo Teutônico para a Infância, organização nazista, de cunho religioso protestante, em atuação na África do Sul. Vivendo num orfanato em Lahn, cidade alemã da Baixa Saxônia, os irmãos integraram o grupo de 83 crianças enviadas para a adoção que, em 8 de setembro de 1948, desembarcaram na portuária Cidade do Cabo. O país vivenciava, naquele momento, com a ascensão política do Partido Nacional, de extrema-direita, a institucionalização e o desabrochar do apartheid, primo-irmão do nazismo. Muito além do propósito da acolhida “cristã”, os órfãos alemães da Segunda Guerra Mundial chegaram à África do Sul para irrigar, com “sangue puro”, a reprodução humana naquela sociedade. Africâneres (ou bôeres) de origem europeia não inglesa cultivavam a obsessão da expansão demográfica ariana e o domínio político, econômico e social sobre as populações autóctones de povos Khoisan, Xhosa e Zulu, a quem chamavam bantus. Africâneres também viviam em permanente conflito com a herança da colonização anglófona, após a derrota nas duas Guerras Bôeres – entre 1880 e 1902 –, que reafirmaram o domínio inglês.
A história acima é recriada em “Os órfãos”, de Sandrine Bessora Nan Nguema, conhecida apenas como Bessora, de 53 anos, primeiro romance lançado no Brasil da escritora e editado pela mineira Relicário. Ficcional, tem personagens inspirados na vida dos gêmeos alemães Peter e Birgit Ammermann, que ilustram a capa do romance, em foto documentada na exata data do desembarque das crianças arianas na Cidade do Cabo. De apurada pesquisa e reconstrução do contexto histórico, a obra se respalda também em entrevistas com Peter Ammermann e outras pessoas ainda vivas que estavam lá, sem a possibilidade de escolha, na conturbada existência de um período, oscilando sob a espada do apartheid, que nascia em forma constitucional, e a ideologia de Hitler, àquela altura em desintegração numa Alemanha derrotada, sob política norte-americana para a desnazificação.
Todo o romance se constrói a partir de um diálogo mental entre Wolfang, perto de morrer, e a gêmea Bárbara. Aos 78, Wolfang está em coma. Moribundo, para ele, não há futuro. Fora baleado na cabeça, em seu aniversário, por Samora, filho de seu melhor amigo, Thanon, ambos carregando na testa, pela vida, a marca de uma estrela branca, que os associavam à fazenda em que passou a viver Wolfang na África do Sul. O tiro, que sela o destino do narrador, fora disparado na mesma data em que o país celebrava o centenário de nascimento de Nelson Mandela (1918-2013). Como num filme acelerado, a vida, em reprise, lhe turva a mente. Tempo e espaço se misturam para Wolfang, entre as cenas do passado e o presente num hospital, rodeado pelas duas filhas. É uma narrativa não linear do irmão à irmã, que vai aos poucos reconstituindo o percurso de ambos da Europa à África do Sul.
Mesmo no outono de sua existência, os gêmeos não conseguem se desvencilhar da dupla culpa de terem sido parte, ainda que involuntariamente, da ação e transitado entre as realidades distópicas do nazismo e do apartheid. Entretanto, apesar do fim dos dois regimes, outras distopias segregacionistas persistem duradouras no tecido social de várias nações do mundo, e, em seu conjunto, é sobre elas que também versa a obra de Bessora.
As memórias de Wolfang, escavadas e remendadas num minucioso quebra-cabeça, desvendam o racismo, presente em democracias ocidentais cultuadas, como a francesa, estendendo-se por diferentes países e em intensidades moduladas, como no caso do racismo estrutural brasileiro. “Escolhi a ficção porque me parece que a história só entra na memória coletiva quando as artes e os artistas se apoderam dela”, afirma Bessora em entrevista ao Estado de Minas. Com tripla cidadania – francesa, suíça e gabonense –, a autora se sentia preparada para escavar e identificar o DNA das ideologias segregacionistas com o rigor de sua formação na antropologia. Nascida na Bélgica, Bessora tem mãe suíça e pai diplomata do Gabão, o que a levou a viver entre os Estados Unidos, a Europa e a África.
As duas crianças aparecem no livro em permanente busca pela identidade, de um lugar no mundo, tanto ao migrar para a África do Sul e, mais tarde, no retorno ao país de origem, quando descobrem, já maduros, que a mãe estava ainda viva e os abandonara para ter outros filhos com o segundo marido. Já cinquentenário, Wolfang se dá conta, então, de que seu nome de batismo e da irmã foram modificados: o dele Hänsel; o dela, Gretchen. Só localiza o paradeiro da mãe depois de alcançar a tanoaria da família, legada ao pai e ao tio, a partir de informações de uma prima.
Desnazificação
Em tenso diálogo com a mãe biológica, Wolfang ouve dela que o primeiro marido, morto na Crimeia – portanto, o pai dele –, não fora um “bom alemão”, porque nunca acreditara no Reich e não queria a guerra. Indignado pelo abandono materno, Wolfang lhe indaga: “Por que não nos afogou como cachorrinhos?”. Lacônica e fria, ela retruca: “Não afogamos crianças arianas”. Para parcelas daquela sociedade, a ideologia nazista seguia inabalável, apesar de todo o processo de desnazificação, que nas escolas apresentava o genocídio promovido por Hitler e do rebatismo forçado de inúmeros “Adolfs” em “Rudolphs”, entre outros nomes.
Sob a égide da Guerra Fria, em 1961, ano em que foi erguido o Muro de Berlim, a perspectiva da “superioridade ariana” seria substituída pela narrativa de “superioridade” dos alemães ocidentais em relação aos orientais. Em diálogo entre Wolfang e Heidi, antiga namorada de infância, ouve dela a manifestação de desprezo pelos alemães orientais: “Não quero chocar ninguém, mas é preciso ser realista. Se não nos protegermos, como vocês fazem na África do Sul, desapareceremos. Sem um muro, nós seríamos invadidos”. Heidi explica o seu argumento: as pessoas do Leste são, segundo ela, “preguiçosas, despidas de senso de humor”. Wolfgang não contesta Heidi. Por isso é repreendido pela esposa, Frances, ela própria mestiça e vítima do apartheid. Wolfang reflete: “Ela fica sem ar não somente porque o apartheid a alcança onde ela jamais acreditou encontrá-lo, mas porque, apesar do desprezo demonstrado por Heidi, eu continuo a escutá-la, enlevado. Eu mesmo estou chocado. Mas há pessoas que você ama incondicionalmente. As que são do seu sangue. As que são da sua infância. Não rompemos com o nosso sangue. E nossa infância, não a deixamos, jamais. Porque, no meio daquilo que te desloca, do que te substitui, ela é tudo o que faz com que você se mantenha no mesmo lugar”.
Falso moralismo
Wolfang e Bárbara nasceram em 18 de julho de 1940, em Bremen, na Alemanha, pouco menos de um ano antes de Adolf Hitler romper com o pacto germano-soviético e dar início à operação Barbarossa, de invasão à União Soviética, que mobilizou, em princípio, 3,6 milhões de soldados alemães, abrindo um dos flancos que levaria à derrota do nazista, no teatro de operação mais violento da Segunda Guerra Mundial. Largados pelo futuro marido da mãe, Ludwig Mahler, num orfanato da cidade de Lahn, dali partiram, após a “seleção”, para a Cidade do Cabo, onde foram adotados por africâneres calvinistas, de ascendência francesa. “O cais está cheio de gente, pais, estivadores, curiosos. Nossa chegada é um acontecimento. Motivo de falatório”, relembra Wolfang em seu diálogo mental à irmã, Bárbara. Ele prossegue recordando-se de como foram apresentados à mãe adotiva, Michèle, e ao pai, Lothar: “Eles são alemães. Sim, senhora, todos órfãos. Protestantes (...) Nenhuma gota de sangue judeu, de sangue polonês, russo ou inglês (...) Estão cansados, mas não bonitos! Passaram por testes muito difíceis”.
As crianças estão maravilhadas com a paisagem da fazenda onde passariam a viver, quando ali entram pela primeira vez. Observam os empregados pretos, entre os quais crianças, sem compreender por que todos trazem uma estrela branca marcada na testa. Graça, que cuida da casa e foi babá de Michèle, filha de Jacob, carrega o mesmo sinal, mas tem verdadeira devoção pelo senhorio, e parece considerar natural que o seu filho, Thando, uma criança de aproximadamente 10 anos, apanhe dos patrões como punição pelo trabalho não feito e receba, como pagamento, garrafas de vinho, que o tornam alcoólatra na infância. Naquela fazenda, o pagamento é a moradia, o direito a lavar a própria roupa e as garrafas de vinho, em “agradecimento” pela força de trabalho agrícola não remunerada em espécie. Se Lothar, pai adotivo dos gêmeos, se encanta por Bárbara, – de quem abusaria sexualmente mais tarde –, Jacob, o patriarca, pai de Michèle, só tem olhos para o neto. Como Michèle ainda não tivera filhos, ele anuncia Wolfang como herdeiro e representante da sétima geração da fazenda familiar, batizada com o nome de seu fundador, Théophile Terre’Blanche, pastor do Poitou, 1688.
Jacob Terre’Blanche cultiva os 22 hectares com uvas muscat, sauvignon e cabernet, para a produção de vinho e aguardente. Ali também se plantam frutas, criam-se avestruzes para consumo. A sua família de calvinistas franceses foi atraída pela colonização protestante holandesa, que se segue 150 anos depois da descoberta, por navegadores portugueses, da rota marítima do Cabo para as Índias Orientais. Ao longo dos séculos 17 e 18, acorreram à Cidade do Cabo calvinistas provenientes, sobretudo, dos Países Baixos, mas também da Bélgica, Alemanha, Escócia e França. Os protestantes de origem europeia não inglesa constituem a base da geração de africâneres – também chamados boêres –, em formação na África do Sul, que vão se conflitar com o domínio inglês a partir de 1795, quando estes dominam a Cidade do Cabo e abolem a escravidão, prejudicial aos interesses comerciais britânicos.
A estrutura de dominação da colonização europeia na África do Sul sobre as populações autóctones, destituídas de suas terras e, em muitos casos, escravizadas, é o substrato sobre o qual se alimenta e se institucionaliza o apartheid, em 1948, a partir da ascensão da extrema-direita. Reverberava entre brancos daquela sociedade a ideia de que as populações originais iriam, um dia, se rebelar e aniquilar africâneres. Jacob doutrina o neto Wolfang: “O apartheid vai nos proteger do suicídio nacional. Refletimos bastante antes de colocá-lo em prática (...) Sem isso – diz ele – um dia vão nos matar a todos”. Ele me lança um sorriso e acrescenta que eu, seu neto, “vou impedir o suicídio nacional: ‘Sou uma sentinela, eu também’”. Mas Wolfang não apenas refuta a ideologia, como mais tarde se casaria duas vezes com mulheres não brancas, com as quais teve duas filhas.
A narrativa da supremacia branca sobre pretos se respalda na ideologia protestante e em sua interpretação bíblica. Em sala de aula, Michèle recorda aos alunos brancos da escola onde leciona a história de Davi, o rei “ruivo” que descende diretamente de Adão, através de uma linhagem que também inclui Noé. “Somos o povo Dele – ela nos assegura com emoção (...)– Pois, no fundo, pertencemos todos à mesma família, essa família que os ingleses torturaram e fizeram passar fome, essa família que vive sob o risco de desaparecer e ser substituída pelos negros, mas que descende do rei Davi, em linha direta!.” A mesma retórica é repisada nos cultos das igrejas: o pastor proclama que “Deus elegeu nosso povo!”. Revisa toda a história dos africâneres, “um povo forte, mas frágil, que o mundo inteiro pode bem invejar. Ele tem provas. Mas o verdadeiro crente não precisa de provas, porque tem fé”.
Labirinto de violências
Para além do apartheid, o romance percorre muitas camadas de um labirinto de violências praticadas sob o moralismo bíblico, anunciado por pastores e professores bôeres, ideólogos do segregacionismo. Nas famílias, a mulher é permanentemente reprimida e condenada a um papel secundário, de obediência e serviços ao homem e, tristemente, como no caso de Michèle, uma pedagoga, incorpora e reproduz tal ideologia.
Há violências de professores contra crianças, em práticas abusivas e de humilhação em sala de aula; de mães contra filhos, em agressões psicológicas e em punições físicas desproporcionais a “ofensas” questionáveis. E sob o moralismo religioso, se esconde, entre os segredos das famílias, Lothar, que, além de abusar sexualmente da filha adotiva, Bárbara, mantém romance com a esposa do pastor que prega o “Davi ruivo”. Michèle, esposa traída, desqualificada pelo pai, Jacob, rói os dedos em ansiedade permanente. Fruto de um caso extraconjugal de sua mãe, quando Michèle enfim consegue engravidar procura esconder os cabelos crespos do filho, “denunciado” pelo próprio Jacob, que vê, no neto, a infidelidade da esposa, morta ao dar à luz Michèle.
Quando avança, armado, sobre a fazenda provençal do Cabo Théophile Terre’Blanche, pastor do Poitou, 1688, Samora quer vingança. Pelas injustiças cometidas por aquela família contra o pai, Thanon; pela avó, Graça, de vida dedicada àquela servidão. Ambos mortos. Na testa, a mesma cicatriz branca em forma de estrela; nas costas, um fuzil bate contra os seus rins; Samora anota o centenário de Mandela e pensa, beijando a cruz que um dia servira de pendente ao pai: “Papai e Graça não devem lamentar estar mortos. Porque nada mudou, não. E nada mudará jamais. Os negros não estão em casa aqui. A casa deles não fica em lugar nenhum”. É assim que Samora vai à forra. Mira num sistema segregacionista que não se extinguiu com o fim do apartheid, e que perpetuou o domínio colonizador europeu sobre a África, após expropriar os povos originais da terra e escravizá-los. Samora acerta a cabeça Wolfang, amigo de seu pai, um homem atormentado pela “culpa” de ter vivido o nazismo e o apartheid, ainda que sem jamais apoiá-los.
Ao reconstituir sua história, Wolfang se despede de Bárbara procurando dar sentido a tudo o que viveram: “Tenho a impressão de dormir. Mas não consigo acordar. Barbie? Você também está dormindo?”
“Os órfãos”
- De Bessora
- Tradução de Adriana Lisboa
- Relicário
- 244 páginas
- R$ 62,90
“Parece que a história só entra na memória coletiva quando as artes e os artistas se apoderam dela”
Entrevista | Bessora
Como se inspirou para o romance “Os órfãos”? Os personagens são reais?
Assisti a um documentário que se chama “Du sang blanc pour l’Afrique du Sud” (“Sangue branco para a África do Sul”). Foi produzido por Régine Dura e data de 2008. Peter Ammermann, à época com 68 anos, e Werner Schellack, com 62, deram testemunho sobre a sua infeliz adoção na África do Sul, em 1948. Tinham, respectivamente, 2 e 8 anos.
Fiquei impressionada com o testemunho de Peter e decidi escrever um romance sobre a culpa dessas “crianças”, mas também sobre a sua resiliência. Carregam uma dupla culpa: por terem sido um emblema do nazismo e do apartheid. Mas a África do Sul é agora também o lugar da sua “resiliência”. Fui à África do Sul à procura de Peter, em 2018, exatamente 70 anos após a sua adoção (que bela coincidência). Werner, infelizmente, falecera algum tempo antes. Encontrei Peter depois de uma rápida apuração. Ele e a sua esposa, Rabia, me receberam de braços abertos. Contei-lhes sobre meu projeto de romance, baseado em sua história, e nas histórias das 83 crianças envolvidas nesse projeto político e ideológico, em 1948. As personagens de Barbara e Wolf de “Os órfãos” são, portanto, fictícios, mas a jornada deles é inspirada na de Peter, Werner e das outras crianças da época. Escolhi a ficção porque me parece que a história só entra na memória coletiva quando as artes e os artistas se apoderam dela. No entanto, o menino na capa do livro é de fato Peter, com a sua irmã Birgit, em 8 de setembro de 1948, quando eles chegaram à Cidade do Cabo.
Como, em sua avaliação, a violência da colonização europeia na África criou as condições para a instauração do apartheid em 1948?
As condições de violência estão postas por uma conjunção de fatores: primeiro, a colonização inglesa, e também a autarquia das populações africâneres, que se sentem em perigo por parte das populações não brancas, mas também se sentem ameaçadas pelos ingleses. São os ingleses que de fato reprimem violentamente os africanos e africâneres. Há também a violência ligada a uma forma de fundamentalismo religioso, protestante: a “Bíblia” serve de legitimação para a violência e o separatismo. A população africâner também se sustenta na “Bíblia” para se designar como um povo escolhido. A “Bíblia” ainda serve de pretexto para a imposição de modelos morais, que permeiam as leis e moldam as famílias: nas famílias (a de Peter, em particular), exerce-se uma violência mais ou menos explícita, como um eco do apartheid, mesmo que já não seja uma violência racista. Mas estamos na presença de abuso infantil e difamação das esposas. As famílias nacionalistas se atribuem o papel de encarnar a perfeição bíblica. Mas como pessoa alguma faz jus a tal ideal, daí, as violências... No que diz respeito ao apartheid (que também reprime a homossexualidade), o que foi implantado em 1948 apenas aperfeiçoou um certo número de leis que já existiam à época. Assim, populações negras, mestiças ou indígenas já haviam sido expropriadas em 1913. O apartheid, implantado em 1948, foi obra do Partido Nacional, grande vencedor das eleições daquele ano. Este é, sem dúvida, o arsenal jurídico, dentro de seus propósitos (de manutenção de uma supremacia branca, baseada numa rígida hierarquia de castas raciais, em que a cor da pele define as chances de acesso aos direitos civis e ao poder), mais bem-sucedido até hoje. Seria ainda aperfeiçoado por muitos anos...
O apartlheid é apresentado em sua obra como “primo-irmão” do nazismo. Como classificaria o racismo, ainda tão atual e presente em intensidades distintas em diferentes países do mundo, dentro desta árvore genalógica?
As crianças foram adotadas na África do Sul por iniciativa de uma “associação beneficente”. Antissemita e anti-inglesa, essa associação simpatizava com os nazistas e lamentava a derrota de Hitler. Werner Schellack, um dos filhos adotivos, dedicou grande parte de sua vida a esse assunto. Dele extraiu uma tese de doutorado, publicada em 1988. Infelizmente, sua tese não está disponível e nunca foi traduzida! O envio de crianças “arianas” para a África do Sul – deveriam ser 10 mil – reiterou o projeto “purificador” realizado pelos nazistas: tratava-se de “purificar” o sangue dos africâneres e de torná-los, a longo prazo, a maioria da população. O racismo é intrínseco a essa ambição: alega-se que as raças existam biológica, fisiologicamente, procura-se argumentar que sejam puras, e que devam ser “preservadas”, impermeáveis.
Em diversos países, os movimentos políticos de extrema-direita retomam as agendas neofascistas. Como explicar tal fato, apesar das lições históricas de barbaridades cometidas por esses regimes?
Parece que a história é um círculo... Continuamos repetindo, sem cessar, os mesmos erros... Talvez porque nos esquecemos. Mas esquecer também é necessário para a cura. Então, o paradoxo... Acredito também que é difícil medir a gravidade do que não vivemos: o sofrimento dos outros nem sempre nos é acessível. Às vezes nos falta empatia. Nesse sentido, as artes têm o poder de desencadear e promover a empatia. Uma pintura, um filme, uma canção, um romance permitem-nos viver o que não vivemos, ser o que não conhecemos. É uma experiência formidável.
Como as temáticas abordadas em “Os órfãos” dialogam com o conjunto de sua obra?
Cada novo romance constitui uma nova partida, um novo começo. Inicio sempre com a impressão vertiginosa de nada saber. Mas sem dúvida tenho neste meu “trabalho” os temas favoritos. Gosto de pessoas comuns, que são arrastadas, voluntária ou involuntariamente, para vidas extraordinárias. E costumo contar, creio eu, de jornadas de emancipação, individuais ou coletivas.
“Parece que a história só entra na memória coletiva quando as artes e os artistas se apoderam dela”
Cada novo romance constitui uma nova partida, um novo começo. Inicio sempre com a impressão vertiginosa de nada saber. Mas sem dúvida tenho neste meu “trabalho” os temas favoritos. Gosto de pessoas comuns, que são arrastadas, voluntária ou involuntariamente, para vidas extraordinárias. E costumo contar, creio eu, de jornadas de emancipação, individuais ou coletivas.
Trecho
(De “Os órfãos”, de Bessora)
“Lá fora, ele avança. Sua testa está marcada com uma cicatriz branca em forma de estrela. Um fuzil pendurado nas costas bate contra seus rins. Samora caminha com passos leves em direção à fazenda provençal do Cabo, Terre’Blanche, o pastor do Poitou chamado Théophile, que, em 1693, louvava a Deus em seu diário íntimo por tê-lo levado até os desertos da África, onde havia passado por provas muito difíceis. Mas Davi e os outros santos homens de Deus não compuseram a maior parte dos seus cânticos no deserto, e nas maiores agonias?
Samora avança. Em alguns momentos, beija a cruz que servia de pendente ao seu pai. Murmura por trás de sua barba. Mandela festeja seus cem anos. Mas papai e Graça não devem lamentar estar mortos. Porque nada mudou, não. E nada mudará jamais. Os negros não estão em casa aqui. A casa deles não fica em lugar nenhum. (...)
Lá fora, ele se aproxima. O pendente de Thando colado à boca, Samora pede perdão ao seu pai e à sua avó Graça. Não pôde protegê-los, não. Não foi capaz de salvá-los. Perdão. Promete honrá-los, antes de partir por sua vez. Justiça. Vai fazer justiça. Vai matar esse homem, o herdeiro de Terre’Blanche. Um sorriso de anjo se pinta em seus lábios, o mesmo de Michèle. Em sua janela, ela compreendeu que ele não veio buscá-la. Vendo-o se aproximar da desgraçada fazenda provençal do Cabo, ela se dá conta de que, mesmo contra sua vontade, ele veio vingar ela também. Em seguida, ele será eliminado por sua vez. Um a menos.
(...)
– De uma vez por todas, papai. O nazismo não é você. O apartheid não é você. Você não é culpável.
– Não é culpado – corrige Marianne.
Eu escorro por toda parte, lágrimas, muco, é nojento. Louise me enxuga delicadamente o rosto com seus pedaços de papel mastigados, colando de saliva.
Em seu carro, Wilhelm escuta o rádio: Abraçar a diversidade oferece vantagens práticas!, diz Obama.
E de repente um tiro.”