Desnazificação
Falso moralismo
Labirinto de violências
“Os órfãos”
- De Bessora
- Tradução de Adriana Lisboa
- Relicário
- 244 páginas
- R$ 62,90
“Parece que a história só entra na memória coletiva quando as artes e os artistas se apoderam dela”
Entrevista | Bessora
Como se inspirou para o romance “Os órfãos”? Os personagens são reais?
Assisti a um documentário que se chama “Du sang blanc pour l’Afrique du Sud” (“Sangue branco para a África do Sul”). Foi produzido por Régine Dura e data de 2008. Peter Ammermann, à época com 68 anos, e Werner Schellack, com 62, deram testemunho sobre a sua infeliz adoção na África do Sul, em 1948. Tinham, respectivamente, 2 e 8 anos.
Fiquei impressionada com o testemunho de Peter e decidi escrever um romance sobre a culpa dessas “crianças”, mas também sobre a sua resiliência. Carregam uma dupla culpa: por terem sido um emblema do nazismo e do apartheid. Mas a África do Sul é agora também o lugar da sua “resiliência”. Fui à África do Sul à procura de Peter, em 2018, exatamente 70 anos após a sua adoção (que bela coincidência). Werner, infelizmente, falecera algum tempo antes. Encontrei Peter depois de uma rápida apuração. Ele e a sua esposa, Rabia, me receberam de braços abertos. Contei-lhes sobre meu projeto de romance, baseado em sua história, e nas histórias das 83 crianças envolvidas nesse projeto político e ideológico, em 1948. As personagens de Barbara e Wolf de “Os órfãos” são, portanto, fictícios, mas a jornada deles é inspirada na de Peter, Werner e das outras crianças da época. Escolhi a ficção porque me parece que a história só entra na memória coletiva quando as artes e os artistas se apoderam dela. No entanto, o menino na capa do livro é de fato Peter, com a sua irmã Birgit, em 8 de setembro de 1948, quando eles chegaram à Cidade do Cabo.
Como, em sua avaliação, a violência da colonização europeia na África criou as condições para a instauração do apartheid em 1948?
As condições de violência estão postas por uma conjunção de fatores: primeiro, a colonização inglesa, e também a autarquia das populações africâneres, que se sentem em perigo por parte das populações não brancas, mas também se sentem ameaçadas pelos ingleses. São os ingleses que de fato reprimem violentamente os africanos e africâneres. Há também a violência ligada a uma forma de fundamentalismo religioso, protestante: a “Bíblia” serve de legitimação para a violência e o separatismo. A população africâner também se sustenta na “Bíblia” para se designar como um povo escolhido. A “Bíblia” ainda serve de pretexto para a imposição de modelos morais, que permeiam as leis e moldam as famílias: nas famílias (a de Peter, em particular), exerce-se uma violência mais ou menos explícita, como um eco do apartheid, mesmo que já não seja uma violência racista. Mas estamos na presença de abuso infantil e difamação das esposas. As famílias nacionalistas se atribuem o papel de encarnar a perfeição bíblica. Mas como pessoa alguma faz jus a tal ideal, daí, as violências... No que diz respeito ao apartheid (que também reprime a homossexualidade), o que foi implantado em 1948 apenas aperfeiçoou um certo número de leis que já existiam à época. Assim, populações negras, mestiças ou indígenas já haviam sido expropriadas em 1913. O apartheid, implantado em 1948, foi obra do Partido Nacional, grande vencedor das eleições daquele ano. Este é, sem dúvida, o arsenal jurídico, dentro de seus propósitos (de manutenção de uma supremacia branca, baseada numa rígida hierarquia de castas raciais, em que a cor da pele define as chances de acesso aos direitos civis e ao poder), mais bem-sucedido até hoje. Seria ainda aperfeiçoado por muitos anos...
O apartlheid é apresentado em sua obra como “primo-irmão” do nazismo. Como classificaria o racismo, ainda tão atual e presente em intensidades distintas em diferentes países do mundo, dentro desta árvore genalógica?
As crianças foram adotadas na África do Sul por iniciativa de uma “associação beneficente”. Antissemita e anti-inglesa, essa associação simpatizava com os nazistas e lamentava a derrota de Hitler. Werner Schellack, um dos filhos adotivos, dedicou grande parte de sua vida a esse assunto. Dele extraiu uma tese de doutorado, publicada em 1988. Infelizmente, sua tese não está disponível e nunca foi traduzida! O envio de crianças “arianas” para a África do Sul – deveriam ser 10 mil – reiterou o projeto “purificador” realizado pelos nazistas: tratava-se de “purificar” o sangue dos africâneres e de torná-los, a longo prazo, a maioria da população. O racismo é intrínseco a essa ambição: alega-se que as raças existam biológica, fisiologicamente, procura-se argumentar que sejam puras, e que devam ser “preservadas”, impermeáveis.
Em diversos países, os movimentos políticos de extrema-direita retomam as agendas neofascistas. Como explicar tal fato, apesar das lições históricas de barbaridades cometidas por esses regimes?
Parece que a história é um círculo... Continuamos repetindo, sem cessar, os mesmos erros... Talvez porque nos esquecemos. Mas esquecer também é necessário para a cura. Então, o paradoxo... Acredito também que é difícil medir a gravidade do que não vivemos: o sofrimento dos outros nem sempre nos é acessível. Às vezes nos falta empatia. Nesse sentido, as artes têm o poder de desencadear e promover a empatia. Uma pintura, um filme, uma canção, um romance permitem-nos viver o que não vivemos, ser o que não conhecemos. É uma experiência formidável.
Como as temáticas abordadas em “Os órfãos” dialogam com o conjunto de sua obra?
Cada novo romance constitui uma nova partida, um novo começo. Inicio sempre com a impressão vertiginosa de nada saber. Mas sem dúvida tenho neste meu “trabalho” os temas favoritos. Gosto de pessoas comuns, que são arrastadas, voluntária ou involuntariamente, para vidas extraordinárias. E costumo contar, creio eu, de jornadas de emancipação, individuais ou coletivas.
Trecho