Jornal Estado de Minas

PENSAR

Crônicas de Vinicius de Moraes são reunidas em livro

João Pombo Barile

ESPECIAL PARA O EM

 

O mestre Antonio Candido tem a melhor definição que conheço sobre a obra de Vinicius de Moraes. Escreve o autor de “Formação da literatura brasileira”: “Os poetas que valem realmente fazem a poesia dizer mais coisas do que ela dizia antes deles. Por isso, precisamos deles para ver e sentir melhor, e eles não dependem das modas nem das escolas, porque as modas passam e os poetas ficam. Se hoje dermos um balanço no que Vinicius de Moraes ensinou à poesia brasileira, é capaz de nem percebermos quanto contribuiu, porque, justamente por ter contribuído muito, o que fez de novo entrou na circulação, tornou-se moeda corrente e linguagem de todos”. 





 

Lembrei-me do parágrafo de Candido durante a leitura de “Crônicas inéditas”. Com organização de Eucanaã Ferraz e Eduardo Coelho  (que, infelizmente, não tiveram disponibilidade para conceder entrevista ao Pensar sobre o trabalho realizado), o volume reúne 172 textos em prosa que Vinicius publicou na imprensa entre as décadas de 1940 e 1970 e que permaneciam inéditos em livro. O livro faz pensar se a contribuição de Vinicius à prosa brasileira não é ainda meio subestimada. 

 

Se é bem conhecido o preconceito que muitos poetas da época tinham à conversão de Vinicius à música popular, também não se pode dizer que o cronista Vinicius tenha tido em vida o reconhecimento necessário. Fico imaginando se a amizade com alguns dos maiores nomes da crônica brasileira (Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Antonio Maria, Fernando Sabino) não tenha inibido o poeta. E feito com que ele não se interessasse em reunir sua produção em prosa de forma sistemática. Afinal, seu primeiro livro de crônicas só apareceria tarde, em 1962, com a publicação de “Para viver um grande amor”. Ainda assim, mesclado com poemas. Em vida, o poeta carioca só organizaria mais um volume: “Para uma menina com uma flor”, publicado em 1966. 

 

Espalhada em jornais e revistas, grande parte da deliciosa prosa de Vinicius só começaria a ganhar formato de livro a partir de 1998, com a edição das “Obras completas” pela Nova Aguilar. Reedição do volume feito por Afrânio Coutinho, em 1968, com a ajuda do próprio Vinicius, a edição dos anos 1990 foi organizada por Alexei Bueno e ganhou crônicas de Vinicius publicadas no Jornal do Brasil.  

 

 

Mas seria mesmo com a editora paulista Companhia das Letras que a obra, do mais carioca dos poetas, finalmente ganharia edições definitivas. E muitos inéditos seriam publicados. Nomes como Carlos Augusto Calil, Ruy Castro, José Castelo e Ana Miranda participaram desta empreitada. 





 

Nos últimos anos, Eucanaã Ferraz vem fazendo um excelente trabalho, cuidando da edição dos livros já conhecidos e reunindo textos do poeta que estavam perdidos em vários periódicos. Como estes de “Crônicas inéditas”. 

 

No volume que chega agora às livrarias, podemos constatar que Vinicius não foi genial apenas na poesia. E conhecer uma outra face do artista: a de profundo conhecedor da prosa modernista. Caso, por exemplo, da crônica “João Alphonsus”.

 

Escrita em 1944, ano da morte do grande contista mineiro, no texto Vinicius revela a dívida que tinha com dois mineiros na sua formação: João Alphonsus, na prosa, e Murilo Mendes, na poesia.  Um dos mais importantes poetas do modernismo brasileiro, estava antenado com o melhor da literatura de sua época. Leia trecho abaixo.





 

“Lembrei-me então da ‘Galinha cega’, o primeiro conto que li, na época da minha iniciação literária. Que revelação para mim essa história pungente, fria em sua imensa piedade, um pouco irônica, surda mas disposta a revelar todo o horror nela contido! João Alphonsus – do mesmo modo que Murilo Mendes o seria para a poesia – foi o primeiro prosador brasileiro em que descobri o moderno, essa coisa tão difícil para o rapaz que se inicia à base de leituras acadêmicas. Devo-lhe o meu eureca com relação às formas novas. É curioso... João Alphonsus e Murilo Mendes: dois amigos mineiros, ambos homens de rara dignidade humana.” 

 

“Crônicas inéditas” traz ainda textos sobre cinema e que não foram incluídos em “O cinema de meus olhos”, volume organizado em 2015 por Carlos Augusto Calil. Em “Zé Carioca”, Vinicius conta a origem do simpático papagaio criado por Walt Disney no início dos anos 1940 e que teria sido inspirado em José do Patrocínio Oliveira, músico que tocou com Carmen Miranda nos EUA.

 

 

Graciliano e engajamento 

 

 

Outro ponto alto do livro é a crônica “Um abraço a Graciliano”. Nela, Vinicius homenageia o grande escritor alagoano e escreve sobre um tema eterno: literatura engajada. De tão atual, o texto parece ter sido escrito ontem. Em “A bênção, velho”, outra crônica sobre Graciliano, Vinicius revelou sua admiração por “São Bernardo” e “Angústia” antes de confessar: “Trocava meus vinte anos de poesia pelo privilégio de escrever um só desses dois livros”.

 

Mas o que talvez torne o livro de uma contemporaneidade impressionante seja mesmo “O saco e o chique”.  Na crônica, publicada em 1952, Vinicius cria a divertida teoria do saco e do chique. E descreve um tipinho inútil, e infelizmente recorrente, da história brasileira: o falso patriota. 





 

“Não há nada mais chique que o amor à pátria. Aliás, o amor é um sentimento essencialmente chique, se não der para ficar muito sublime demais, como o amor materno ou o amor gênero mulher-inspiração. Mas tanto o amor à pátria é chique como o patriotismo é saco. Amor febril no peito varonil pelo céu de anil do nosso Brasil é de um saquismo a toda prova. (...) Sentimentos verde-amarelistas, grandiloquentes, ufanistas, acimadetudistas – são irremediavelmente sacos.”.

 

Publicado há mais de meio século, o texto faz lembrar a malta de terroristas que, fantasiados com a camisa amarela da CBF, sequestram o espaço público brasileiro há meses. E que só pararam, Deus sabe até quando, depois de destruir os três mais simbólicos prédios da República.

 

 

 

“Crônicas inéditas”

 

 

 

 

“Crônica de Minas: a procissão de Sexta-Feira Santa em Ouro Preto”

 

Vinicius de Moraes

Publicado originalmente no “Última Hora”, em 5 de maio de 1952

 

 

Com algumas (lâmpadas) photofloods num total de 8 kW ligadas aos cabos da rua e a ajuda do eletricista da cidade, nós acabamos por arrumar um retângulo lívido de luz bem no meio da rua Conde de Bobadela. Devemos parecer, para a multidão de moças que se debruçam dos balcões caprichosamente gradeados, um bando de insetos loucos, transportando fios, dispondo altos tripés móveis de iluminação que só deverão ser acesos como reforço no momento de passar a procissão.





 

A velha rua, antiga Direita, onde nasceu Marília de Dirceu, assume um aspecto fantasmagórico assim iluminada. As nobres portas residenciais projetam melhor seus relevos e o desenho dos balcões e postigos se enquadra no visor das câmeras com um capricho que fica além da nossa expectativa.

 

Um garoto, nossa sentinela avançada, vem nos avisar que já houve a descida da cruz, na Matriz do Pilar. Por agora o cortejo fúnebre deve estar se esforçando pela ladeira de Randolfo Bretas acima, em demanda da rua Tiradentes. Arrumamos cuidadosamente a nossa tocaia, escolhendo os me- lhores pontos de filmagem, por vezes estendidos no chão de pedra, a estudar as tocaias, e olho dormindo na mira da Paillard.

 

É uma delícia, isso. Não há nada melhor no mundo do que fazer cinema, sobretudo assim, quando se tem à mão um grande assunto e há que colhê-lo rápido, no pouco espaço filmável à disposição. Essa parecia ser também a opinião das sorridentes Marílias debruçadas sobre ricos chalés pendentes dos balcões e janelas, e mesmo de algumas amplas matronas em preto, a dignificar os sobrados valetudinários com a sua austeridade.





 

Lá vem ele, moço!

 

Nosso estafeta, como um azougue, chega para nos dar toda a dica da procissão. Está passando agora pela Casa dos Contos. Colocamo-nos em posição. Os tripés são acesos. Photofloods de punho, móveis, são distribuídos enquanto se procura ordenar aquele aranzel de fios de modo a ninguém tropeçar neles. E de súbito, na boca escura da ladeira, surgem os primeiros círios galgando a curva da rua.

 

Roda, pessoal!

 

O contador da câmera começa a dar o estalinho característico, a cada trinta centímetros de filme, na proporção de dezesseis quadros por segundo.

 

Estamos rodando com filme ultrarrápido, o que compensa a precariedade da nossa iluminação. Pois a verdade é que até agora não nos foi possível conseguir um gerador de eletricidade. Eu confesso que nunca vi coisa mais difícil que conseguir um gerador aqui por essas montanhas, apesar da boa vontade dos poderes oficiais.

 

Lentamente, de baixo, o cortejo fúnebre de Cristo cresce em nossa direção. A escalada é impressionante, com os círios a tremer no escuro da noite, entrecruzando luzes, e nós a tomamos não só de ângulos baixos, ao rés da rua, como do alto de dois sobrados, com aquiescência dos moradores curiosos daquilo tudo.





 

Uma multidão de lanternas de papel, de cabo longo, ilumina a cara do povo que sobe em duas filas, em grandes massas de luz e sombra. À medida que no campo luminoso, por nós preparado, os acompanhantes entram, os rostos de início se franzem ofuscados, mas logo a gravidade da investidura recompõe as expressões. Funcionamos agora com duas câmeras, a cinematográfica e a fotográfica, colhendo à passagem, com a possível rapidez, aquelas fisionomias, penetradas de misticismo algumas, outras mero respeito, muitas inexpressivas: quase todas marcadas de nutrição, pobreza, doença, superstição.  Muitas mulheres, algumas bem-vestidas, trazem os pés descalços. Os anjinhos surgem logo depois, de camisolas brilhantes de cetim branco ou azul — em geral as meninas brancas de azul e as pretinhas de branco. As mangas debruadas de arminho e os diademas franjados de medalhinhas de cigana dariam a todas um certo ar carnavalesco, não fosse pelas  asinhas brancas que carregam com indisfarçável orgulho, em sua qualidade seráfica provisória.

 

Há uma quantidade de crianças de colo que dormem nos braços de seus ambulantes pais. Fotografamos um pouco desse absurdo, que a igreja não deveria encorajar e que não pode ser grato aos olhos de um Deus de bondade e de misericórdia. Mas um pai vimos, tão gigantesco e de ar tão bondoso, com uma criancinha tão branca acordada e minúscula espetada nos seus braços, que dir-se-ia um São Cristóvão atravessando o Menino Jesus através da corrente.

 

Estamos francamente atrapalhando a procissão, na nossa ânsia de colher o maior número possível de negativos. Quando se aproxima o pálio fúnebre, então, o pessoal positivamente se acaba de filmar e fotografar de todas as posições. O cerimonial é grave, misterioso, alarmante. Vêm de início dois estranhos arautos, a sacudir umas traves guarnecidas de argolinhas de ferro que produzem um curioso matraqueado. Logo atrás passa deitada a Cruz, segura no pé por um homem e nos braços por dois meninos, e coberta por um manto roxo. Seguem-se novos anjinhos e uns poucos meninos vestidos de túnicas vermelhas e um manto azul à grega sobre o ombro, a carregar umas escadinhas. Não cheguei a saber o que representavam — talvez aqueles que praticaram a descida de Cristo da Cruz.





 

A chegada de Verônica é de grande teatralidade. Precede-a um profeta com uma barba branca de Papai Noel, uma coroa dourada na cabeça e um alfanje a cuja ponta se prende uma longa fita vermelha que um anjinho vai segurando. Disseram-me tratar-se de Abraão. Imediatamente após, Verônica, a padroeira dos fotógrafos (a quem uma piada talvez um pouco desrespeitosa, mas des- pida de maldade, atribuiu o primeiro instantâneo), na figura de uma bela e pálida europeia, traz nas mãos a toalha em que se imprimiu o semblante de Cristo em sangue. A figura é um pouco acadêmica para o nosso gosto, mas a Verônica exibe-a com uma desenvoltura que só pode ter sido adquirida com muito ensaio. Ao entrar no campo de luz, e ao ver nosso aparato cinematográfico, a moça não teve dúvida: trepou num palanquezinho portátil e abriu o peito numas tantas litanias que podiam não ser as mais bem cantadas do mundo, mas que naquela ladeira iluminada dentro da noite – e sob a sugestão de sua túnica de cetim rosa e seu longo manto roxo – nos pareceram coisas de uma grave e antiga beleza.

 

Uma quantidade de apóstolos de túnicas brancas – talvez mais que os doze da regra – e um poder de centuriões batendo com a maior energia os cabos de vassoura das lanças no piso da rua vêm em seguida, antecipando o pálio mortuário. E daí em diante eu pouco mais vi, porque um dos gêmeos cinegrafistas grimpou por minhas costas acima, acomodou seus sessenta quilos nos meus ombros e pôs-se a filmar o Cristo no seu ardor fúnebre, sob o pálio roxo — uma imagem de talha lívida e dolorosa que eu pude entrever da minha forçada posição de Atlas. Soube também que depois chegou a Madalena toda de preto e com negros cabelos longos até os pés, acompanhada de três outras mulheres de preto com véus de viúva – provavelmente Marta e Maria, mas quem era a terceira mulher é coisa que até agora me está dando tratos à bola. A grande procissão de enterramento afinal passou toda, sempre ladeira acima, com uma linda Nossa Senhora num andor ao final de tudo. E lá se foi a  santa imagem a balancear pelo aclive escuro, acompanhando os despojos de seu amado Filho, seguido por uns poucos populares e uma bandinha executando de música um “Queremos Deus” a que não faltava um certo ritmo de dobrado militar.

 

Por algum tempo ainda se ouviu na rua acústica o ruído soturno dos centuriões batendo os cabos de suas lanças nas pedras do calçamento, até que tudo se apagou – ruídos, lâmpadas e nós mesmos, mortos de cansaço. E eu juro que depois de tanta luz parecia que as trevas mesmo se tinham feito de verdade sobre a cidade de Ouro Preto.