Jornal Estado de Minas

PENSAR

Livro 'As margens e o ditado' oferece mergulho na cabeça de Elena Ferrante

Stefania Chiarelli*

Especial para o EM

 

“Eu não invento a minha biografia, não me escondo, não crio mistérios. Estou presente”, afirmou Elena Ferrante em entrevista de 2015, incluída em “Frantumaglia – Os caminhos de uma escritora”, livro de não ficção publicado no Brasil dois anos depois. Irônico, em se tratando do rosto desconhecido de uma das escritoras mais célebres atualmente. Mas pura verdade. Ou verdade literária, como gosta de sustentar a autora da série “A amiga genial”, que há pelo menos três décadas escolheu o anonimato, mas não recusa a oportunidade de falar de seus processos criativos e referências de leitura. Sobre esses e outros temas, se faz presente. 





 

Ferrante frui de intensa liberdade criativa ao não subir nos palcos, mas escolheu quem estava sobre um deles para ler seus escritos no final de 2021: no Teatro Arena del Sole, a atriz Manuela Mandracchia encarnou a escritora, em três sessões organizadas pelo Centro Internacional de Estudos Humanísticos Umberto Eco, da Universidade de Bolonha. Escritas a convite do diretor do Centro antes da pandemia, as conferências resultaram no livro “As margens e o ditado – Sobre os prazeres de ler e escrever”, obra lançada no final de 2021 na Itália e agora no Brasil pela Intrínseca, com tradução de Marcello Lino. Às palestras se soma “A costela de Dante”, ensaio produzido para o encerramento do Congresso de Italianistas sobre Dante Alighieri, lido pela crítica literária Tiziana de Rogatis em outra ocasião. Estão disponíveis na internet os vídeos das apresentações em italiano, um deleite suplementar para a legião de leitores e leitoras que consumiram mais de 16 milhões de exemplares da obra ao redor do mundo. Ferrante está lá inteira, em palavras.

 

 

 

As lições

 

“As margens e o ditado” é leitura saborosa e oportunidade de acompanhar o pensamento da escritora italiana, que retoma a discussão sobre autoria, tradição literária, emprego de elementos biográficos e escolhas estéticas. A primeira lição, “A caneta e a pena”, traz as recordações da escola primária, em um relato sobre o gesto de escrever como movimento limitado pelo caderno pautado, espaço ameaçado pelo erro a cada vez que a aluna não se sujeitava ao fio vermelho das linhas verticais ou ao preto das linhas horizontais. O caderno infantil surge como importante imagem de transbordamento, trampolim para forçar certos limites e ignorar regras aprendidas ao sair da jaula sólida das páginas. Escreve-se, sustenta Ferrante, para conhecer esse estranho eu que está do lado de fora das margens: “Quando escrevo, nem eu mesma sei quem sou”. 

 

A autora da tetralogia napolitana aborda também o tema da autoria masculina, revelando que suas primeiras experiências de leitura impactantes eram sempre escritas por homens, o que a levava a crer que escrever bem era escrever como um deles. Desde sempre, as mulheres conhecem de perto a ordem simbólica masculina, considerando-a universal; já o contrário não se efetua, afirma. A questão é retomada de modo contundente no terceiro (e brilhante) ensaio, “Histórias, eu”, leitura necessária para qualquer pessoa que ensina, escreve, lê ou produz pensamento crítico sobre literatura. No contexto contemporâneo em que cada vez mais a questão da autoria feminina reclama espaço e leitores, Ferrante discute a presença de uma “língua má”, de palavras falsas herdadas, indagando de onde poderíamos extrair novas imagens. A escritora menciona o fato de, ao longo da vida, ter conhecido homens cultos que jamais leram Virginia Woolf, Jane Austen ou Natalia Ginzburg – só liam outros homens. O esforço de escrita para as mulheres, nesse sentido, é imenso, e a despeito de muitas conquistas terem se efetivado, ainda há muito por fazer. As mulheres não devem se conformar com a língua que historicamente não lhes cedeu espaço, devem unir forçar, fundir talentos: “Nenhuma linha deve se perder ao vento”.





 

 

 

A voz dialetal

 

No segundo ensaio, “Água-marinha”, a autora recupera outra memória, a da mão materna que carrega um anel de cor cambiante, difícil de descrever, assim como a voz dialetal da mãe. Indaga-se com que palavra seria possível capturar esse tom de azul, de modo a defini-lo de forma precisa. Aparece então a discussão sobre a dificuldade de contar o real – um espelho deformante existe entre a mão que escreve e a suposta verdade diante de nós, sustenta, abalando qualquer noção purista sobre seu projeto literário.

 

Ao confrontar a origem, Ferrante elabora interessante visão sobre a presença do napolitano em sua obra, revelando ter apagado ou traduzido para o italiano inúmeras passagens de seus primeiros livros. Língua da infância, da violência e do desejo, o dialeto criaria um problema quase insolúvel: transpor a oralidade de seu léxico e sintaxe para a escrita resultaria em artifício estéril, subtraindo da língua paixão e efeito. Afirma ter trabalhado essa presença “como um riacho subterrâneo, uma cadência dentro da língua, uma perturbação da escrita que irrompe de repente em poucas palavras, em geral obscenas”.

 

Curioso perceber semelhante força e ambiguidade nos livros de uma (provável) contemporânea sua: Annie Ernaux. Por diversas vezes em seus escritos de cunho autobiográfico, a autora francesa, ganhadora do Nobel de literatura de 2022, tematiza o impacto do dialeto normando irrompendo em meio ao francês padrão. Tanto Ernaux (filha da classe operária) quanto Ferrante se veem diante de um cruzamento de dois mundos e duas línguas, aquela provinciana e familiar, pertencente ao universo da oralidade e da variação dialetal; e uma outra da educação formal trazida pela escola, de uma realidade intelectual e burguesa inacessível aos respectivos pais. Tal distância cultural é elemento determinante na forma como as autoras, em suas obras, enxergam a língua e a literatura como espaços inseparáveis da questão de classe. Ambas afirmam se construir como intelectuais lutando com essa arma que muitas vezes traz culpa e vergonha, como fica explícito tanto nos depoimentos biográficos de Ernaux e Ferrante, quanto na trajetória da personagem Lenù, da série napolitana. Ao tornar-se escritora, a coprotagonista de “A amiga genial” se vê diante da força que irradia do lugar de origem, mas o esforço de galgar degraus sociais, separando-se do perímetro sufocante do bairro, é gigantesco. Conclui ser impossível se dissociar de tudo isso – ruas, vielas e becos sujos da localidade já estão do lado de dentro. 





 

Tal aspecto também aflora no mais recente romance da autora, “A vida mentirosa dos adultos” (2020), em que a jovem protagonista Giovanna se vê atraída pelo universo da tia paterna – pertencente a um mundo distante do seu e falante de uma língua considerada vulgar, ela em tudo se diferencia do pai e da mãe, ambos professores. Nesse confronto, o velho e bom sentimento incômodo se instala. Em uma visão de conjunto, a prosa ficcional de Ferrante gira em torno de mulheres desajustadas em um mundo masculino: mães desnaturadas, filhas perdidas, amigas fiéis e traidoras, tias lascivas, esposas desaparecidas. “Na verdade, muito do que elas perdem lhes foi tirado, arrancado ou extorquido por seus parceiros masculinos”, sustenta Eliane Robert Moraes sobre as personagens femininas da autora. Desse modo, o eu feminino que escreve se nutre da intimidade, mas nunca está desvinculado de uma moldura histórica.

 

Como Ferrante sustenta, as mulheres sempre escreveram para governar um mal-estar que se instalava. Nesse contexto, propõe pensar os limites da própria linguagem; aquilo que deve, como no caderno infantil, permanecer dentro da margem, mas que de repente transborda e desmargina –  palavra incontornável desde “A amiga genial”, alusiva a um estado de perda de si e de dissolução. O termo pode se vincular à noção trazida pela “frantumaglia”, do léxico napolitano materno, empregado toda vez que a mãe se referia a uma sensação de desordem interna. Como dar nome a tudo isso? A partir do caos instaurado por entre margens e bordas, pulsando no lado de dentro de cada sujeito, a escritora nos joga dentro de uma paisagem sedutora, como a sereia perversa que define o espírito de sua Nápoles natal. Nela mergulhamos sem medo, ansiando pelo próximo canto.

 

*Professora e pesquisadora de literatura brasileira da Universidade Federal Fluminense, Stefania Chiarelli publicou o volume “Partilhar a língua – Leituras do contemporâneo” (7Letras, 2022)

 

 

 

TRECHO
( de “As margens e o ditado – Sobre os prazeres de ler e escrever”)

 

O desafio – eu pensava e penso – é aprender a usar com liberdade a jaula na qual estamos presas. É uma contradição dolorosa. Como é possível, seja ela um sólido gênero literário, sejam hábitos expressivos consolidados, seja até mesmo a própria língua, o dialeto? Uma resposta possível me parecia ser a de Gertrude Stein: adaptando-se, e ao mesmo tempo, deformando (...) Enfim, habitar as formas e depois deformar tudo o que não nos contém por inteiro, que não pode de modo algum nos conter.





 

Precisamos aceitar o fato de que nenhuma palavra é realmente nossa. Precisamos abrir mão da ideia de que escrever é libertar de forma milagrosa a voz própria, uma tonalidade própria: para mim isso é um jeito displicente de falar da escrita. Pelo contrário, escrever é, a cada vez, entrar em um cemitério infinito em que cada tumba espera para ser profanada. Escrever é acomodar-se em tudo o que já foi escrito (....) Na escrita, tudo tem uma longa história atrás de si. Até a minha insurreição, a minha desmarginação, a minha ânsia, faz parte de um ímpeto que me precede e vai além de mim.

 

 

“As margens e o ditado – sobre os prazeres de ler e escrever”