Jornal Estado de Minas

PENSAR

Leitura de Hélène Cixous para a obra de Clarice Lispector chega em versão integral ao Brasil

Giovana Proença*
Especial para o EM
 
Em 1978, Hélène Cixous tem contato com a voz de Clarice Lispector. Cerca de uma década depois, em 1989, a experiência transformadora, resultado do encontro com a literatura da escritora brasileira, é transfigurada em palavras. O texto, profundamente imerso nos mistérios da escrita de Lispector, recebeu o título de “A hora de Clarice”. A leitura de Cixous foi uma das responsáveis pela popularização da obra de Lispector no exterior. 





A autora francófona, nascida na Argélia, escreve que a voz de Clarice veio de muito longe, apesar da barreira da língua, uma vez que a brasileira escreve em um idioma desconhecido para ela. Nesse sentido, em que fronteiras estabelecidas são ultrapassadas, ou ao menos fissuradas, Cixous nos oferece um escrito em que os gêneros literários estão suspensos no limiar. 

A primeira parte, “Viver a laranja”, é uma profunda reflexão sobre a escrita feminina e o poder da voz de Clarice Lispector, beirando o tratado filosófico e a prosa poética. O segundo excerto (“À luz de uma maçã”), de apenas quatro páginas, é um interlúdio entre as outras duas partes do livro. Na terceira seção – “A autora na verdade” – temos o flerte com aspectos da crítica literária, o que já se insinua no fragmento anterior. Nesta última, Cixous investiga uma de suas obsessões: o último texto de um grande escritor. Assim, ela analisa “A hora da estrela”, um dos mais célebres romances de Lispector. 

Mas Hélène Cixous não recai no academicismo. Nenhum aspecto de “A hora de Clarice Lispector” nos anuncia que se trata de um texto com o rigor da teoria literária. O livro transita entre o ensaio e a prosa poética, com a apropriação de Cixous do estilo de Clarice, adepta do fluxo de consciência. Contudo, o ensaio não apenas caiu no gosto da Academia, como também se tornou um dos mais célebres estudos da obra de Clarice Lispector. Os diferentes prismas do texto são frutos da multiplicidade da autora. Cixous é ensaísta, crítica literária, poeta e dramaturga, com cerca de 60 títulos publicados. 






Duas mulheres no texto 


Em “A hora de Clarice Lispector”, ela não teme se colocar no texto, em um ato de fusão com o seu objeto. A própria noção de sujeito é turva, temos duas mulheres no centro: Clarice e Cixous. A forma do escrito é um exemplo da teoria da pensadora francófona. Para Cixous, é urgente que as autoras mulheres afirmem a sua presença no texto, o que ela defende em seu mais famoso ensaio, “O riso da Medusa”, referência dos estudos feministas. O livro foi publicado no Brasil pela Bazar do Tempo em 2022. 

O olhar de Cixous sobre Clarice Lispector é colocado à luz neste jogo entre proximidade e distância. A própria escrita pode ser um ato de distanciamento, como reconhece Cixous na abertura do livro: “E há aqueles de quem não quero falar, de quem não quero me afastar falando; não quero falar com palavras que se afastam das coisas”. Mas a voz da ensaísta francesa se aproxima, vinculando-se intimamente a de Lispector. 

Para ela, a escritora brasileira é apenas Clarice: a mulher de olhar atlético. Em resposta aos anseios da introdução, Cixous termina o texto com a conclusão de que “às vezes a distância certa está no distanciamento extremo. Às vezes, é na extrema proximidade que ela respira”. As contundentes palavras finais do ensaio sintetizam a sua própria tônica, na busca pela distância ideal do objeto.





A partir da imagem da laranja, Hélène Cixous medita sobre a escrita feminina e o que seria um lugar-comum para as mulheres que se arriscam a escrever, lembrando que a voz de Clarice devolveu a ela este ímpeto. No texto, não faltam menções – às vezes diretas, outras insinuadas – ao imaginário lispectoriano: o ovo, a galinha, a rosa, a maçã. Assim como a brasileira, Cixous transcende o significado imediato dos objetos, rumo à reflexão. 

Na visão da pensadora francófona, “Clarice nos desvenda; nos abre as janelas”. Por isso, ela a considera uma mulher perigosa. O perigo reside nesta abertura do olhar para o ínfimo, que guarda a possibilidade da epifania, da fratura do equilíbrio, da desordem cotidiana. Cixous alerta: “Na escola de Clarice, podemos, mesmo que pareça muito tarde neste mundo e muito escuro para que o olhar faça sentido, ter aulas de como ver aquilo que está vivo; aprender a ver demasiadamente perto; a prever. É tão claro aos olhos de Clarice”. 

Para delinear os contornos da literatura clariceana, Hélène Cixous invoca nomes como Franz Kafka, Rainer Maria Rilke, Arthur Rimbaud e Martin Heideg- ger. Mas a todos eles falta um dos pontos decisivos de Clarice: o ser mulher, a maternidade; ou, ainda, a combinação entre a brasilidade, o judaísmo e o nascimento na Ucrânia. A experiência de Lispector vem, para Cixous, de todas as vivências que a constituíram, conferindo-lhe um olhar único. 





“A hora de Clarice Lispector” é um vislumbre do fulgurante rastro da escritora brasileira. Mas é também a contundente leitura de uma das grandes pensadoras contemporâneas. Hélène Cixous não teme buscar a distância exata para escrever sobre Clarice. Este lugar é, muitas vezes, dentro do texto. É nessa fusão íntima que está a luz de uma obra inclassificável. Temos no centro do escrito duas mulheres singulares. A pensadora francófona escreve: “Clarice é o nome de uma mulher capaz de convocar a vida através de todos os seus nomes quentes e frescos. E a vida vem. Ela diz: eu sou. E no instante Clarice é”. Tamanha constatação só poderia vir de alguém que, ao contemplar a obra de Clarice Lispector, teve a sua visão. 


*Giovana Proença é pesquisadora na área de teoria literária na Universidade de São Paulo (USP) 
 

Trecho

(de “A hora de Clarice Lispector”, de Hélène Cixous, tradução de Márcia Bechara)

“Eu não quero falar sobre Clarice. Não quero falar sobre ela, quero ouvi-la escrever, quero ouvir a música tensa, úmida e silenciosa de seus passos de escrita, com meus nervos, quero ouvir seus pensamentos subindo e descendo a es- cada de escrita com os degraus dos anjos antigos, com meus ouvidos de pálpebras abaixadas, quero irradiar Clarice, a arte-clareza para meus amigos, preciso exalar seu perfume, a íris, para irradiar seu olhar-perfume. Seu olhar que não olha, que dá sua luminosidade à música das coisas: cliris.” 
 

“A hora de Clarice Lispector”


  • Hélène Cixous
  • Tradução de Márcia Bechara
  • Nós Editora
  • 144 páginas
  • R$ 60