Jornal Estado de Minas

PENSAR

Romance de Irene Solà traz chance preciosa de encontro com cultura catalã


Stefania Chiarelli*
Especial para o EM
 
Na mitologia de muitas culturas, as montanhas são o lugar habitado por deuses, assumindo um caráter sagrado, como o Monte Olimpo, na Grécia, morada de Zeus. A escritora catalã Irene Solà se apropria de modo muito pessoal dessa rica imagética para compor “Canto eu e a montanha dança”, ambientando suas histórias nos Pireneus catalães, região montanhosa no nordeste da Espanha. Solà, também poeta e artista plástica, bebe de narrativas e lendas locais para construir um interessante mosaico. Ao longo do livro, considerado pelo The Guardian como um dos melhores lançamentos publicados no Reino Unido em 2022 (e chamado pelo jornal inglês de “um triunfo lúdico e polifônico”), múltiplos sentidos serão atribuídos ao espaço da montanha. Com a imutabilidade de quem atravessa os tempos, ela é casa e paisagem exuberante que acolhe animais, gentes e plantas. Comparada aos seios maternos onde um bebê recém-nascido é depositado durante o primeiro contato com a mãe, é também lugar de passagem de soldados nacionalistas durante a Guerra Civil espanhola, recebendo balas, granadas e pedaços de fuzil, cenário de guerra e de confrontos no início do século 20. 





“Canto eu e a montanha dança” é traduzido diretamente do catalão por Luis Reyes Gil e integra a coleção Mundo afora, da editora Mundaréu, trazendo ao público brasileiro um encontro com a cultura catalã, cuja literatura pouco circula por aqui. Os falantes dessa língua somam cerca de 7 milhões de pessoas, e buscam historicamente sua preservação, no contexto hegemônico do espanhol falado no país. O curioso título ecoa o verso extraído de um poema de Hilari, personagem tomado pela febre da escrita: nele, o camponês autodidata afirma cantar “como quem cultiva uma horta/, como quem faz uma mesa/, como quem ergue uma casa/, como quem escala um monte/, como quem come uma noz/, como quem acende uma brasa”. O trecho evidencia a dimensão oral no romance, cuja sonoridade aposta em um ritmo próprio, que inclui onomatopeias e repetições. Nele, a montanha, sinônimo de solidez e permanência, pode não somente bailar, como também narrar. 

Nuvens, fungos, animais 


Em um planeta que há muito vive em caráter de urgência ambiental, muitos textos têm surgido com a proposta de questionar as relações entre o humano e o não humano, desconstruindo hierarquias e retirando o ser humano como medida de todas as coisas. Considerando o abalo dessa mirada antropocêntrica, nada mais desejável do que convocar vozes inusitadas para narrar: nuvens, fungos, animais e a própria montanha entram em cena para compor uma polifonia a que se agrega o ponto de vista de outras criaturas – as vivas e as mortas. Idas e vindas no tempo auxiliam a criar certa sensação caleidoscópica que emana dessa escrita.

Duas mortes constituem o eixo do romance. A do camponês Domènec, atingido por um raio no alto da montanha, e a de seu filho Hilari, por um tiro acidental, anos depois. A tragédia afeta diretamente Siò, esposa e mãe dos acidentados. Seu sofrimento não cessa e o cuidado com o restante da prole, que deveria supostamente levá-la adiante, não consola. Acompanhamos sua perspectiva, à qual se agregam outras, como a das nuvens de onde parte o raio matador: “Porque tínhamos sido rápidas, caramba, imprevisíveis e sigilosas, e o pegamos de surpresa”. Uma admirável terceira pessoa dá a ver não somente a pulsão de extermínio vinda da natureza, mas também sensações de prazer: “O melhor de tudo é chover granizo”. 





Como tudo está interligado, no instante exato do segundo acidente uma corça irá escapar com vida, ressurgindo depois no curioso capítulo em que relata seu nascimento e o dia em que foi arrancada da mãe, deslocando aos poucos o tom do acolhimento do ventre materno ao puro terror do bosque, na luta pela sobrevivência. No espaço montanhoso, sofrem todos, bichos, homens e mulheres.

Sem romantização da natureza

A natureza não surge em visão romantizada, marcada por um olhar condescendente, de sublime beleza. A passagem em que a montanha narra sua gênese não deixa dúvidas sobre isso. Acompanhada de figuras que apoiam o texto, detalhando sua formação, ela roga que a deixem em paz: “Não me amolem. (...) O que pode interessar a vocês, minha voz ou minha perspectiva?” Fato é que a natureza não precisa de nós, como comprova o trecho narrado pela cadela Lluna, em que vislumbra longa cena de amor entre um casal. Dotada de humanidade, ela percebe sensorialmente todas as etapas que compõem o sexo entre um homem e uma mulher – quem ali parece humano, quem surge como animal? – as posições se invertem, e a cadela termina interessada em matar os gatos da redondeza. Quem pensou na cachorra a sonhar com preás gordos em “Vidas secas” (1938) não se enganou; Graciliano Ramos teria gostado desse diálogo entre Baleia e Lluna. Nessa conversa, poderia entrar também “O crachá nos dentes” (1995), belo conto de Lygia Fagundes Telles narrado do ponto de vista de um cão.

Diante da constatação de que vivemos momento crítico em relação ao planeta e ao meio ambiente, da sensação constante de queda que a humanidade vive, Ailton Krenak, no conhecido “Ideias para adiar o fim do mundo”, indaga sobre formas de protelar esse final, sustentando a importância de enriquecer nossa subjetividade a partir da capacidade de inventar. Daí a importância de textos literários como o de Solà, capaz de romper percepções automatizadas da realidade, articulando outros modos de consciência. Hilari, em certa passagem, afirma que a voz do poeta conclama as pessoas queridas e os tempos passados e futuros. Conjurando diferentes seres, tempos e vozes, a escritora nos coloca também nesse círculo sem centro. Nele, montanhas dançam, corças fabulam, nuvens nos olham de cima e vivos e mortos fazem soar um coral polifônico revelando modo possível de adiar o fim.






*Autora de “Partilhar a língua” (7Letras), Stefania Chiarelli é professora e pesquisadora de literatura brasileira na Universidade Federal Fluminense (UFF)
 

Trecho
(de “Canto eu e a montanha dança”, de Irene Solà, tradução de Luis Reyes Gil)

 
“Sou o urso graças a vocês. Somos os ursos graças a vocês. Somos o medo por escolha sua. Muita honra ter sido escolhido. Pulo e rujo, descendo pela encosta do castelo. Homes e mulheres correm à minha frente. Atrás de mim, escondem-se homens, mu- lheres e crianças. A criançada chora. O vila- rejo se abre como uma boca, e nós o reconquistamos. Pego outro corpo de homem e bebo o seu medo. O vilarejo era nosso antes de ser vilarejo. Agarro um corpo de mulher e bebo seu pânico. Reconquistamos o vilarejo como será reconquistado pelas ervas da- ninhas, quando chegar a hora. Grito. Reconquistamos o vilarejo como reconquistaremos a montanha, quando chegar a hora.”
 

“Canto eu e a montanha dança”

  • Irene Solà
  • Tradução de Luis Reyes Gil
  • Mundaréu
  • 224 páginas
  • R$ 64