Jornal Estado de Minas

PENSAR

Poemas inéditos de Carlos Drummond de Andrade são publicados



(...)
A câmara hoje passeia contigo pela Mata Atlântica. 
No que resta - ainda esplendor - da Mata Atlântica, 
Apesar do declínio histórico, do massacre 
De formas latejantes de viço e beleza. 




Mostra o que ficou e amanhã - quem sabe? - acabará 
Na infinita desolação da terra assassinada.

E pergunta: "Podemos deixar 
Que uma faixa imensa do Brasil se esterilize, 
Vire deserto, ossuário, tumba da natureza?" 

Este livro-câmara é anseio de salvar 
O que ainda pode ser salvo, 
O que precisa ser salvo 
Sem esperar pelo ano 2 mil.
(...)
("Mata atlântica: A câmara viajante", de Carlos Drummond de Andrade)

Sem responsabilidade pelo que viu, a inquieta e irretocável “câmara” fotográfica de Carlos Drummond de Andrade vai revelando paisagens, contando sobre a natureza do mundo, forçando o julgamento, insuflando o desejo de mudança. Sejam as montanhas exterminadas de Minas Gerais, seja a Mata Atlântica devassada, a consciência ambiental chega a este autor muito antes de seu tempo. Não haverá dia seguinte para os ecossistemas aniquilados; nem a vida harmoniosa se restaura, avisa ele. E o que será no dia seguinte é o vazio da noite, o vazio de tudo, registra Carlos Drummond de Andrade no poema “Mata atlântica - A câmara viajante”, que integra a seção “Viola de bolso (nova)”, de 25 inéditos integrados à terceira edição de “Viola de bolso: Mais uma vez encordoada”. A obra será lançada em março pela editora José Olympio, do grupo editorial Record. 

“Viola de bolso” foi publicado pela primeira vez em 1952, pela Coleção Cadernos de Cultura, do Ministério da Educação e Saúde. Em 1955, “Viola de bolso: Novamente encordoada” foi relançado pelo selo da editora José Olympio. São muitas transformações entre as edições, o que deixa em cada uma delas, assim como o caráter da vida, a marca da permanente transformação. Na primeira edição, 37 foram os poemas denominados pelo autor de versos de “circunstâncias” – em que recorda “ternuras” de sua infância, da terra natal, a mineira Itabira, mas também traz muito da poesia que remete ao Rio de Janeiro (bairros do Flamengo e Leblon), onde passou a viver a partir de 1934. Na primeira edição, os poemas estão divididos em duas seções: a primeira sem título; a outra batizada de “Meigo tom”. Na primeira seção: 

O Rio Amazonas é o maior do mundo, 
mas o Rio do Tanque é o menor. 




(Deslizava na fazenda de meu irmão.) 
O Rio Doce banha terras amargas
 de maleita, ferro e melancolia. 
O córrego da Penha, esse, coitado, 
mal fazia um poço raso onde a gente, fugindo, se banhava. 
Talvez porque me faltasse água corrente,
 hoje a tenho represada nos olhos
e neste vago verso fluvial. 
(“Cidade sem rio”)

Também a solidão, que ao preço da nostalgia alimenta a alma drummondiana, é abordada na primeira edição de “Viola de bolso”: 

Solidão, não te mereço, 
pois que te consumo em vão. 
Sabendo-te embora o preço, 
calco teu ouro no chão.
(“Desperdício”)

A segunda edição da obra leva o título “Viola de bolso novamente encordoada” (editora José Olympio), incorporando, aos 37 poemas originais, mais 54, totalizando 91 poemas, distribuídos nas seções – Prima & contraprima (primeira, batizada na nova edição); Meigo tom; além de quatro novas seções: Boas-festas; Dedicatórias de “Claro enigma”; Dedicatórias de “Fazendeiro do ar”; e Para agradecer; e Ponteio maduro.  

São muitas as homenagens prestadas pelo autor a grandes artistas de seu tempo. Drummond traçou um roteiro afetivo de seu círculo de relacionamentos, e dedicou poemas a Lygia Fagundes Telles, Guimarães Rosa, Murilo Mendes, Luís Martins, Paulo Rónai, Eneida, Portinari, Santa Rosa, Guignard e outros escritores, artistas e intelectuais. A Lygia, Drummond escreve:

A cinza no cinzeiro, e a chama n’alma, 
Lygia, é o que te desejo: vida calma
 e intensa, no seu ritmo criador, 
e, entre todas perene, aquela palma 
que envolve de um austero resplendor 
a quem põe na sua arte o seu amor
(“Um cinzeiro”)


Ao amigo Di Cavalcanti, o poeta mineiro enfatiza a analogia com a obra mágica de “Alice no País das Maravilhas”: 

Lewis Carroll ainda faz das suas. 




Já não fotografa menininhas nuas. 
Mas, com Eneida e Di Cavalcanti, 
bebe uísque, toca pra diante. 
Dedica livros na Jaraguá, 
toma o avião, ei-lo aqui está, 
louco manso, poeta, meu amigo, 
muito obrigado, Di, veio contigo.
(“Alice in Wonderland”)

Em sua terceira edição, “Viola de bolso mais uma vez encordoada” baseia-se na tipologia gráfica da segunda edição, mantida ao ponto de recriarem-se as serifas que se veem nos travessões, nos traços e nos hifens. O livro reproduz emendas manuscritas do poeta. São 116 poemas, 79 a mais do que os 37 da primeira edição, entre os quais 25 inéditos, de uma pasta encontrada pelos netos de Carlos Drummond de Andrade, em que o autor escreveu a mão. Foi denominada “Viola de bolso (nova)”. Nesta seção, há um poema precioso sobre a maior festa popular brasileira no início do século 20 ("Legendas para 12 estampas de carnaval") e, serpenteado pelo tempo, "no maior trem do mundo", a vida e a obra do poeta são lançados à imortalidade. 
(foto: Record)

O maior trem do mundo
 leva minha terra
 para a Alemanha
leva minha terra
para o Canadá
leva minha terra
para o Japão. 





O maior trem do mundo 
puxado por cinco locomotivas a óleo diesel 
engatadas geminadas desembestadas
leva meu tempo, minha infância, minha vida 
triturada em 163 vagões de minério e destruição. 

O maior trem do mundo 
transporta a coisa mínima do mundo, 
meu coração itabirano. 

Lá vai o trem maior do mundo 
vai serpenteando vai sumindo 
e um dia, eu sei, não voltará, 

pois nem terra nem coração existem mais
(“O maior trem do mundo”)

(foto: Record)
“Viola de bolso: mais uma vez encordoada”

  • Carlos Drummond de Andrade
  • Editora José Olympio, 3ª edição
  • 280 páginas 
  • R$ 129,90
  • Nas livrarias a partir de março

Quem foi Carlos Drummond de Andrade


(foto: Record)
Carlos Drummond de Andrade (Itabira, 1902 – Rio de Janeiro, 1987) foi jornalista, poeta, cronista e contista, consagrado-se como um dos autores mais importantes da literatura em língua portuguesa do século 20. Expressão do Modernismo, foi redator-chefe do Diário de Minas quando, em 1928, publicou, na Revista de Antropofagia, o poema “No meio do caminho”, marco inicial da sua carreira e dos novos rumos e influência do Modernismo na literatura. Em 1930, estreou em livro com “Alguma poesia”. Entre as dezenas de títulos de sua vasta obra, publicou  “Sentimento do mundo” (1940), “Confissões de Minas” (1944), “A rosa do povo” (1945), “Claro enigma” (1951), “Contos de aprendiz” (1951) “Antologia poética” (1962), “Obra completa” (1964), “Cadeira de balanço” (1966), “Mundo vasto mundo” (1967). 

Por ocasião das comemorações dos 120 anos de nascimento de Carlos Drummond de Andrade, as obras dele voltaram a ser editadas, desde 2021, pelo Grupo Editorial Record – e, em algumas edições históricas, publicadas pela editora José Olympio, duas casas com as quais o autor trabalhou em vida. São 63 livros lançados em edições novas, do projeto gráfico ao desenho das capas, dos posfaciadores à conexão que se estabelece, por meio de um QR code, entre o texto impresso e o chamado mundo digital, em que os leitores encontram bibliografias, cronologias, manuscritos e imagens do autor.