Rodrigo Jorge*
Especial para o EM
Terminada a leitura de “A sociedade dos textos”, novo livro de André Botelho, Maurício Hoelz e Andre Bittencourt, lembrei-me do narrador machadiano do conto “As primas de Sapucaia!”, para quem “tudo depende das circunstâncias, regra que tanto serve para o estilo como para a vida; palavra puxa palavra, uma ideia traz outra, e assim se faz um livro, um governo, ou uma revolução; alguns dizem mesmo que assim é que a natureza compôs as suas espécies.”
A narrativa curta reunida em “Histórias sem data”, de 1883, nos sugere, com a ironia típica do Bruxo do Cosme Velho, um exercício de imaginação para sabermos melhor quem seriam essas primas, ou seja, a leitura sobre elas se dá a partir das nossas referências. E como “palavra puxa palavra”, as referências seriam não apenas resultantes de nossas trajetórias, mas também fios que nos ligam a outros caminhos, que talvez um dia se cruzem, ou não.
Os autores de “A sociedade dos textos” lidam com problemas semelhantes ao discutir as relações entre os conceitos de “literatura” e “sociedade”. Afinal, quem tem medo da literatura? Vivemos em um tempo de opacidade do conhecimento estimulada pelo volume avassalador de dados e informações, tempo de disputas de versões dos fatos reconfigurados pela economia de estruturas narrativas, tempo de incitação ao aniquilamento do outro e de tudo aquilo que desestabilize um sistema de crenças, tempo de debilidade e urgente reconstrução das instituições democráticas. Em um tempo como este, a literatura pode dar medo e é, também por isso, cada vez mais necessária.
Por isso, a proposta do livro de ser um “escrito corsário”, à maneira de Pier Paolo Pasolini, vem cumprir com um papel fundamental: “Desde a sociologia, contra-atacar a reverência, o a-historicismo e outros obstáculos aos processos criativos de leitura e escrita dos produtores”. O trio de autores é formado por sociólogos de grande destaque no cenário intelectual brasileiro. André Botelho e Andre Bittencourt são professores da UFRJ; já Maurício Hoelz, da UFRRJ, duas instituições de relevância incontestável no desenvolvimento tecnológico e científico nacional.
Atuando, em especial, nos campos da sociologia da cultura e do pensamento social brasileiro, os ensaístas se ocupam, no livro, de pensar nos textos não apenas como fenômeno social, mas também como instrumentos potenciais de investigação sociológica da realidade. Ou seja, além de produtos da sociedade, as literaturas (no plural, colocando em xeque os rigores disciplinares) podem se tornar, inclusive, suas principais agentes: “Textos são forças sociais reflexivas em relação à sociedade que os forja, eles participam de sua construção, ajudam a conferir sentido às ações, relações e processos coletivos e individuais”. Um poema e um romance são, portanto, mais do que documentos sociais ou textos de gêneros literários distintos, ajustados a convenções e exigências específicas. A partir das e contra essas regras, eles reordenam nossa percepção da realidade e provocam nossos afetos. Mesmo uma leitura despretensiosa pode suspender visões supostamente decantadas e ressignificar nossa experiência com o mundo. No entanto, não há qualquer dimensão messiânica nesse papel. Nem todo poema salva um afogado, como queria Mário Quintana.
Entre as discussões teóricas mobilizadas pelos autores, destacam-se os trabalhos dos sociólogos Anthony Giddens e Niklas Luhmann, que nos auxiliam na compreensão do papel da literatura, ou das literaturas, na sociedade por meio de conceitos como reflexividade social e sistemas sociais. Uma determinada obra, seja de ficção ou autobiográfica, por exemplo, não é apenas um dado da realidade social, mas também um de seus elementos constitutivos, podendo, inclusive, modificar a trama sobre a qual ela reflete. Assim sendo, os textos são os registros das dinâmicas sociais e os seus dispositivos de “medição”, mas podem se tornar também de controle e de transformação.
“A sociedade dos textos” é composto por 10 ensaios, divididos em duas partes, intituladas “Através do espelho” e “Bildung e depois”. A primeira é de caráter mais teórico-metodológico, e a segunda discute os problemas da ideia de formação da subjetividade como aprimoramento do indivíduo. Em todos eles, o movimento modernista surge como principal temática, considerando a sua importância na configuração social, política e cultural do país e suas ressonâncias até os dias atuais. Por isso, o modernismo é abordado aqui a partir do conceito de “movimento cultural”, objeto, aliás, de ensaio incontornável de André Botelho e Maurício Hoelz, publicado em 2022 sob o título “O Modernismo como movimento cultural: Mário de Andrade, um aprendizado”.
Mário de Andrade, Ronald de Carvalho e Pedro Nava são os três personagens modernistas que têm seus textos e contextos analisados, entre cartas, relatos de viagem, ensaios de crítica literária, romances e livros de memórias. Além desses, os autores também se detêm em um dos mais importantes intérpretes do Modernismo e da cultura brasileira, o crítico e escritor Silviano Santiago, com seu conceito de “entre-lugar”, suas memórias de infância e suas contribuições para uma crítica da concepção eurocêntrica e colonialista da nossa cultura. Também merece destaque a colaboração do ensaísta convidado, Lucas van Hombeeck, mestre e doutorando em sociologia da UFRJ, que traz uma leitura perspicaz do “Poema sujo”, de Ferreira Gullar, como possibilidade de interpretação do Brasil.
Nesse sentido, os ensaios de “A sociedade dos textos” são também corsários, lançados no alto-mar, ora sereno e límpido feito lâmina, ora feroz e tenebroso feito uivo, dos textos e dos contextos sociais que eles singram, não como quem busca a segurança dos pés fincados em uma ilha, depois do grito “terra à vista!”, mas, talvez, como quem sabe que, neste país, navegar é preciso. E viver também.
*Rodrigo Jorge Ribeiro Neves é professor, crítico e doutor em estudos de literatura pela UFF
“A sociedade dos textos”
- André Botelho; Maurício Hoelz; e Andre Bittencourt
- Relicário Edições
- 260 páginas
- R$ 59,90
Entrevista com André Botelho, Maurício Hoelz e Andre Bittencourt, autores de “A sociedade dos textos”
“O memorialismo mineiro é extremamente instigante”
Como um livro de sociologia da literatura, “A sociedade dos textos” lança mão de determinados conceitos das ciências sociais para pensar na relação entre a literatura e a sociedade, como o de reflexividade social. Do que ele trata?
O livro trata da relação entre literatura e sociedade, o que pode parecer convencional. Entendemos, porém, que tanto na teoria literária quanto na sociologia, “a” relação propriamente dita tem dado lugar a análises polarizadoras. Isto é, ora recaindo sobre a literatura, ora sobre a sociedade. Nossa pesquisa mostra, além disso, que “sociedade” opera como uma categoria praticamente naturalizada em ambas as abordagens, o que é particularmente complicado no caso da sociologia. Os textos podem nos ajudar a desnaturalizar e assim a qualificar a complexidade do contexto. A ideia de “reflexividade social” permite qualificar justamente o “e” que liga e separa de diferentes formas literatura e sociedade. Ela desloca o velho jogo entre idealismo e materialismo para uma nova visão dinâmica e contingente de intersecção entre literatura e sociedade.
Qual é a importância do Modernismo para compreender os fios entre a sociedade e os textos do Brasil de hoje?
Se entendido como movimento cultural, o Modernismo nos ajuda a perceber que a cultura é um campo aberto de conflito pelo controle dos significados e afetos a partir dos quais a sociedade aprende, se organiza, (re)produz e modifica suas práticas. Mudanças demandam mobilização e participação contínua para disputar corações e mentes no cotidiano, a médio e longo prazos. O Modernismo alterou as formas básicas por meio das quais a sociedade se compreende e que ainda são objeto de conflito: não só valorizou o saber subalterno historicamente apagado pelo eurocentrismo das nossas elites, criando diálogos entre erudito e popular, mas também promoveu uma política de reconhecimento das multiplicidades da cultura como ponta de lança de um projeto plural e inclusivo de nação. E isso numa sociedade tão desigual e pouco democrática como a brasileira continua atual, central e nada trivial.
A segunda parte do livro é dedicada a questionar a ideia de formação do sujeito na modernidade, a partir do conceito de Bildung. Poderiam falar um pouco mais sobre essa discussão?
Embora o tema da Bildung esteja explicitado no título da segunda parte do livro, ele indica uma preocupação mais geral que praticamente atravessa todos os capítulos: a formação de subjetividades. O ideal da Bildung foi um horizonte importante das elites letradas brasileiras, mas encontrava limites em uma sociedade periférica, em tantos sentidos diferente da europeia, a começar no que diz respeito à própria forma de conceber o indivíduo. Ao mesmo tempo, a Bildung também entrava em crise na Europa do entre-guerras, movimento que será capturado pelos nossos autores mais cosmopolitas.
Quais são, então, as formas de experimentação da subjetividade que emergem dessas tensões?
Procuramos estudar a questão através de gêneros textuais muito distintos, tais como como cartas e livros de memória, mas que conformam diferentes exercícios de criação de subjetividades. O caso do memorialismo mineiro nos é extremamente instigante nesse sentido, pois foi capaz de desenvolver formas muito sofisticadas, quase surpreendentes, de experimentação da subjetividade.
Trechos:
“É certo que Mário foi mesmo o modernista paulista que mais se ‘nacionalizou’, mas isso não significa apenas a expansão geopolítica de sua influência cultural e de política cultural sobre o diverso território nacional, mas também que ele se abriu às diferenças regionais e soube aprender com elas, ampliando seu campo de visão e seu modo de ver.”
(“A viagem de Mário de Andrade à Amazônia: Entre raízes e rotas”)
“A justaposição de temporalidades dispersas, dimensões de significado e relatos, já o sabemos, é característica crucial das ‘Memórias’ de Pedro Nava, e que as distanciam de forma canônica do gênero memorialístico até então praticado no Brasil, aproximando sua lite- ratura do jogo intertextual nosso contemporâneo, tão marcado por baralhamento de vozes, diversidade, hibridismo, negociação de identidades.”
(“A paixão segundo Pedro Nava”)
“Desconstruir o eurocentrismo também não implica rejeitar ou descartar o pensamento europeu, posto que ele é a um só tempo indispensável e inadequado, como lembram Silviano e Chakrabarty, para nos ajudar a entender as experiências da mo- dernidade em países não ocidentais e periféricos. Envolve explorar o modo pelo qual esse pensamento – que agora é herança comum e afeta todos nós – pode ser renovado a partir de e para as margens.”
(“Cosmopolítica do entre-lugar”)