Jornal Estado de Minas

PENSAR

'Gabriela, cravo e canela' completa 65 anos e ganha edição especial


 
“Não quisera ofendê-lo, não quisera magoá-lo. Mas o ofendera porque era casada, mas o magoara porque deitara com outro na sua cama, sendo casada. Um dia percebera que ele tinha ciúmes. Um homem tão grande, era engraçado. Tomara tento, desde então, muito cuidado porque não queria que ele sofresse. Coisa mais tola, sem explicação: porque os homens tanto sofriam quando uma mulher com quem deitavam, deitava com outro? Ela não compreendia. Se seu Nacib tivesse vontade, bem que podia ir com outra deitar, nos seus braços dormir. Ela sabia que Tonico dormia com outras, dona Arminda contava que ele tinha um horror de mulheres. Mas se era bom deitar-se com ele, brincar com ele na cama, por que exigir que fosse só ela? Entendia não. Gostava de dormir nos braços de um homem. Não de qualquer. De moço bonito, como Clemente, como Tonico, como seu Nilo, como Bebinho, ah, como seu Nacib. Se o moço também queria, se a olhava pedindo, se sorria para ela, se a beliscava, por que recusar, por que dizer não? Se estavam querendo, tanto como o outro? Não via por quê. Era bom dormir nos braços de um homem, sentir o estremecimento do corpo, a boca arder, num suspiro morrer. Que seu Nacib se zangasse, ficasse com raiva, sendo casado, isso entendia. Havia uma lei, não era permitido. Só o homem tinha direito, a mulher não tinha. Ela sabia, mas como resistir? Tinha vontade, na hora fazia, nem se lembrava que não era permitido. Tomava cuidado para não ofendê-lo, para não magoá-lo. Mas nunca pensara que ia tanto ofender, que ia tanto magoar. Daí a uns dias, o casamento acabado, acabado pra frente, acabado pra trás, porque seu Nacib continuaria com raiva? (…) Que importância tão grande se ela deitara com outro, por que tanto sofrer se ela deitava com um moço? Não tirava pedaço, não ficava diferente, gostava dele da mesma maneira, e não podia ser mais. Ah! Não podia ser mais!”

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Esta acima é Gabriela, cravo e canela. Parodiando a “Modinha para Gabriela”, criada por Dorival Caymmi e eternizada na voz de Gal Costa, ela nasceu assim, cresceu assim, foi sempre assim, vai ser sempre assim, sempre igual, não deseja mal, ama o natural. No imaginário popular da cultura brasileira, a simples menção de “Gabriela, cravo e canela” remete de imediato à jovem, bela e sensual Sônia Braga, então com 25 anos, em meados dos anos 1970. A atriz foi protagonista da novela inspirada no romance do escritor baiano Jorge Amado (1912-2001), que conta a história de uma retirante sertaneja que chega a Ilhéus, fugindo da seca, em plena efervescência da produção de cacau em meio aos mandos e desmandos dos velhos coronéis, que reinavam na política e ditavam os costumes da população.





Lançado em 1958, o romance põe abaixo os pilares da moralidade hipócrita e do machismo na pele da ingênua e ao mesmo tempo libertária Gabriela, para quem o amor é livre, sem amarras. À sua maneira, sem ativismo, o autor baiano dá vez e voz à luta pelos direitos da mulher que ainda engatinhavam no Brasil. E o faz de forma poética e sensual ao transformar a quase ainda adolescente Gabriela num turbilhão que vai virar de ponta-cabeça o machismo vigente no interior do Brasil. E não apenas no amor e no sexo, mas também nas delícias da cozinha. Afinal, Gabriela é cozinheira e também fisga os homens pelos prazeres culinários.

A obra tem duas tramas paralelas – o romance entre o árabe Nacib, dono do famoso bar Vesúvio, e Gabriela e também a disputa política em Ilhéus, que oscila entre o atraso do coronelismo e o progresso trazido pela ascensão dos exportadores de cacau em meados dos anos 1920. O estrondoso sucesso da novela, que teve várias reprises e um remake quatro décadas depois, e o filme homônimo dirigido por Bruno Barreto popularizam ainda mais o romance.

Agora, as novas gerações têm oportunidade de também conhecer a obra-prima de Jorge Amado com o lançamento da edição especial, capa dura, da Companhia das Letras, com ilustração de capa e belo ensaio visual de Goya Lopes, que acaba de chegar ao mercado brasileiro. O ano é 1925 e tem como cenário o interior da Bahia em profundas transformações do rural para o urbano, O patriarcado começa a ser confrontado pela incipiente “libertação” feminina, encarnada por Gabriela e Malvina, filha de coronel que não aceita o casamento encomendado e outras imposições paternas.





Um bom exemplo do machismo da época está no diálogo entre o coronel Altino Brandão e Mundinho Falcão, o exportador de cacau que chega a Ilhéus e passa a desafiar o poder do coronel Ramiro Bastos. Entre os muitos aliados que busca está Altino, da vizinha Itabuna. Mundinho afirma:

“– Casamento é coisa séria, coronel. Primeiro, é preciso encontrar a mulher com que se sonha, o casamento nasce do amor.

– Ou da necessidade, não é? Nas roças, trabalhador casa até com toco de pau, se vestir saia. Pra ter mulher em casa com quem deitar, também pra conversar. Mulher tem muita serventia, o senhor nem imagina. Ajuda até na política. Dá filho pra gente, impõe respeito. Pro resto, tem as raparigas...” – responde o coronel Altino.

PROCURA-SE COZINHEIRA DESESPERADAMENTE

Nacib está desesperado. A antiga cozinheira foi embora e ele precisa, urgentemente, de uma nova  para o seu bar, o Vesúvio, o mais tradicional e frequentado de Ilhéus. Ali batem ponto os moradores mais notáveis da cidade, os amigos, os velhos coronéis e os forasteiros. Ilhéus está no auge da produção de cacau. O chefe político da cidade é o coronel Ramiro Bastos, mas agora ele é confrontado por Mundinho Bastos. É preciso lembrar que o título de coronel da época nada tem a ver com as patentes de hoje em dia, quando há ascensão na carreira militar. A origem dos chamados coronéis que dominavam o Brasil profundo vem do período imperial, no século 19, e se estende com força até 1930, com o fim da chamada Primeira República. O coronelismo era caracterizado pela atuação de grandes latifundiários aliados à monarquia que recebiam o título de coronel para exercer o poder político e econômico em suas terras, a fim de impedir rebeliões. Isso porque a dimensão continental do país tornava impossível ao exército imperial controlar tudo. A violência e a troca de favores, inclusive com os votos de cabresto da população, predominavam e ai de quem ousasse enfrentar os coronéis.





Dessa forma, Jorge Amado dá vida em “Gabriela, cravo e canela” ao coronel Ramiro Bastos e a vários outros para esmiuçar a realidade há um século, quando essas figuras já começavam a entrar em decadência. Continuam defendendo a moralidade e a submissão feminina, enquanto mantêm esposa, amantes e até alugam casas para as “raparigas” que visitam frequentemente, além do frequentar o famoso bordel Bataclan. Em meio a esse mundo arcaico e violento, Nacib, que nunca se casou, sai em busca de nova cozinheira. Está muito preocupado porque terá que oferecer um jantar para comemorar o início do serviço de marinetes, o transporte por ônibus que ligará Ilhéus a Itabuna.

VESÚVIO EM ERUPÇÃO

Depois de muitas recusas, Nacib acaba encontrando Gabriela entre retirantes nordestinos que acabam de chegar a Ilhéus fugindo da seca. Nesta parte da narrativa, Jorge Amado faz uma ponte essencial entre o velho mundo decadente e o novo que surge em seu romance. No mesmo dia em que Nacib conhece Gabriela, o coronel Jesuíno Mendonça mata a tiros sua mulher, Sinhazinha Guedes Mendonça, e o dentista Osmundo Pimentel, ao flagrá-los na cama. Faz valer a máxima de que honra se lava com sangue. Mais uma vez, o escritor baiano põe em xeque o patriarcado e o machismo ao evitar que o desfecho dessa tragédia seja a impunidade, natural para a época.

A moça que diz se chamar Gabriela está muito suja e vestida com trapos. Nacib não dá muito por ela, muito menos como cozinheira, mas quando prova as suas primeiras guloseimas e seus primeiros pratos, cai vencido. Como se não bastasse, torna-se amante de Gabriela, já que é solteiro e a moça, em sua ingenuidade e volúpia, considera o amor e o sexo naturais, sem amarras.





A comida saborosa e os encantos de Gabriela põem o Vesúvio em erupção, sempre lotado. Mas a salvação de Nacib também vira tormento. Sua amante cozinheira é cobiçada por amigos e coronéis, que fazem propostas tentadoras para levá-la. Como solução, Nacib acaba se casando com Gabriela para acabar com o assédio. Mesmo assim, o que seria solução, vira outro drama, porque Gabriela é espírito livre, se tem vontade de se deitar com um homem deita. Traído pela nova mulher com Tonico Bastos, seu amigo e filho do velho coronel Ramiro, Nacib não lava sua honra com sangue, é homem civilizado e moderno, mas expulsa Gabriela. Com isso, perde sua mulher voluptuosa e a cozinha perfeita. E agora? Perdoar Gabriela e trazê-la de volta, mas ficar com fama de “corno manso” ou simplesmente esquecê-la, cicatrizar a ferida da traição e ver o Vesúvio encolher?

COMUNISTA VIRA BEST SELLER


“Gabriela, cravo e canela” foi um divisor de águas na vida de Jorge Amado, uma guinada de sucesso na trajetória desse baiano de Itabuna. Foi comunista de carteirinha até o início dos anos 1950 – quando Stálin morreu, seu nome caiu em desgraça e o escritor se decepcionou ao saber das atrocidades praticadas pelo ditador – e teve seu mandato de deputado constituinte cassado em 1948. Antes de ser preso, opta pelo exílio por quatro anos pelos países da chamada “cortina de ferro”. Já havia publicado 16 dos seus 36 livros, incluindo “Jubiabá”, “Mar morto” e “Capitães da areia”. Deslumbrado com o comunismo, viu suas obras traduzidas naqueles países e chegou a ser agraciado com o prêmio Stálin, espécie de Nobel soviético. No Brasil, entretanto, foi chamado de “ex-romancista” e “ex-brasileiro”.

Por isso, retornou sob grande desconfiança ao Brasil em 1952, já casado com a escritora Zélia Gattai e com os filhos João Jorge e Paloma, ainda crianças. Tão logo publicou “Os subterrâneos da liberdade” (“Os ásperos tempos”, “Agonia da noite” e “A luz no túnel”), obra de resistência à ditadura fascista de Getúlio Vargas, essa desconfiança aumentou. Foi criticado, por exemplo, por intelectuais como o modernista Oswald de Andrade, que publicou em sua coluna no Correio da Manhã que “sua maior esperança na literatura” se perdeu em “sectarismo improdutivo”. Tudo mudou, contudo, quando lançou “Gabriela, cravo e canela”, em 1958, quando a disputa ideológica acirrada, o comunismo e o fascismo deram lugar a um romance fabuloso, entre as mazelas do coronelismo e o amor livre da protagonista. Amado já era autor traduzido no exterior, inclusive na URSS, mas com “Gabriela” se tornou best-seller. A obra ficou um ano entre as mais vendidas do New York Times, revela Josélia Aguiar no livro “Jorge Amado – Uma biografia” (editora Todavia – 2018), feito inédito, até então, para um autor brasileiro. Mesmo assim, críticos conservadores destilaram preconceito por aqui,  porque, para eles, era inadmissível uma cozinheira ser a protagonista

Depois de Gabriela, Jorge Amado deu vida e voz a outras mulheres marcantes, como “Dona Flor e seus dois maridos” (1966), “Teresa Batista cansada de guerra” (1972) e “Tieta do Agreste” (1977). E a outras obras notáveis: “A morte e a morte de Quincas Berro d'Agua” (1959) e “Tenda dos milagres (1969). A conferir, talvez seja o escritor brasileiro com obras adaptadas para a TV, cinema e teatro.
 

Modinha para Gabriela

Dorival Caymmi


Quando eu vim pra esse mundo
Eu não atinava em nada
Hoje eu sou Gabriela
Gabriela, he! Meus camaradas

Eu nasci assim, eu cresci assim
Eu sou mesmo assim
Vou ser sempre assim
Gabriela, sempre Gabriela

Quem me batizou, quem me iluminou
Pouco me importou, e assim que eu sou
Gabriela, sempre Gabriela

Eu sou sempre igual, não desejo mal
Amo o natural, etc e tal
Gabriela, sempre Gabriela
 
 

Sucesso na TV com Sônia Braga

 
Sucesso na literatura mundo afora, Gabriela conquistou êxito maior ainda quando chegou à televisão pela primeira vez, em 1975. Produzida pela Rede Globo, a novela foi adaptada da obra de Jorge Amado por Walter George Durst e dirigida por Walter Avancini e Gonzaga Blota. Além da ótima trama, o destaque foi o elenco estelar encabeçado por Sônia Braga – então com 25 anos e esbanjando beleza e sensualidade, que a projetou como estrela da dramaturgia nacional. Armando Bógus (Nacib) José Wilker (Mundinho Falcão), Paulo Gracindo (coronel Ramiro Bastos), Fúlvio Stefanini (Tonico Bastos), Dina Sfat (Risoleta), Elizabeth Savalla (Malvina), Nívea Maria (Jerusa), Marco Nanini (professor Josué), Eloísa Mafalda (Maria Machadão) e muitos outros atores e atrizes entre veteranos consagrados e novatos no início do estrelato encarnaram os múltiplos e curiosos personagens e fizeram da telenovela um clássico inesquecível.





Outra sensação da novela foi a excepcional trilha sonora, que deu origem a clássicos como “Coração ateu” (Maria Bethânia), “Guitarra baiana” (Moraes Moreira), “Alegre menina” (Djavan), “Quero ver subir, quero ver descer” (Walter Queiroz), “Horas” (Quarteto em Cy),“São Jorge dos Ilhéus” (Alceu Valença), “Modinha para Gabriela” (Gal Costa), “Filho da Bahia (Fafá de Belém), “Caravana” (Geraldo Azevedo), “Porto” (MPB4), “Retirada” (Elomar), “Doces olheiras” (João Bosco) e “Adeus” (Walker). E ainda o complemento “Uma noite no Bataclan”, com mais 12 músicas, incluindo “A volta do boêmio” (Nelson Gonçalves) e “Tortura de amor” (Waldick Soriano). O sucesso da novela no Brasil reverberou em Portugal, onde foi exibida em 1977. Os portugueses chegaram a mudar hábitos, moda, comportamentos e horários de seus afazeres para acompanhar a novela pela RTP. Quando Elizabeth Savalla e Fúlvio Stefanini desembarcaram no aeroporto de Lisboa, foram recebidos por milhares de pessoas, entre elas o então primeiro-ministro Mário Soares.

A grande audiência da novela também levou à reapresentação pela TV Globo em 1979, a um compacto de 90 minutos no “Festival 15 anos”, em 1980, e a outra reprise, em 1982, em compacto de 12 capítulos. E em 1988/89, ainda foi reprisada no horário vespertino de “Vale a pena ver de novo”. Em 2012, a TV Globo lançou o remake de Gabriela com Juliana Paes. Apesar do talento e do êxito da atriz, ela já tinha 33 anos de idade e destoava da protagonista original de Jorge Amado, que encantava não apenas pelo espírito livre, mas pela liberdade juvenil. Essa Gabriela já não tinha graça. O mesmo se pode dizer do filme homônimo de Bruno Barreto, com a própria Sônia Braga, o genial ator italiano Marcello Mastroianni como Nacib e música de Tom Jobim. A atriz estava prestes a fazer 34 anos quando o filme foi lançado, em janeiro de 1984. O encanto da Gabriela juvenil também já havia se perdido. Mas o filme reforçou o vigor do romance de Jorge Amado.
 

TRECHO DO LIVRO


“Enfiou a chave na fechadura, arfando da subida, a sala estava iluminada. Seria ladrão? Ou bem a nova empregada esquecera de fechar a luz? Entrou de mansinho e a viu dormida na cadeira, os cabelos longos espalhados nos ombros. Depois de lavados e penteados tinham se transformado em cabeleira, solta, negra, encaracolada. Vestia trapos, mas limpos, certamente os da trouxa. Um rasgão na saia mostrava um pedaço de coxa cor de canela. Os seios subiam e desciam levemente ao ritmo do sono, o rosto sorridente.





– Meu Deus! – Nacib ficou parado sem acreditar.

A espiá-la, num espanto sem limite, como tanta boniteza se escondera entre a poeira dos caminhos? Caído o braço roliço, o rosto moreno sorrindo no sono, ali, adormecida na cadeira, parecia um quadro. Quantos anos teria? Corpo de mulher jovem, feições de menina.

– Meu Deus, que coisa! – murmurou o árabe quase devotamente.

Ao som de sua voz, ela despertou amedrontada, mas logo sorriu e toda a sala sorriu com ela. Pôs-se de pé, as mãos ajeitando os trapos que vestia, humilde e risonha, coberta pelo luar.

– Por que não deitou, não foi dormir? – Foi tudo que Nacib acertou dizer.

– O moço não disse nada...

– Que moço?

– O senhor... Já lavei roupa, arrumei a casa. Depois fiquei esperando, peguei no sono – uma voz cantada de nordestina.

Dela vinha um perfume de cravo, dos cabelos talvez, quem sabe do cangote.

- Você saber mesmo cozinhar?”
 
 
 

"Gabriela, cravo e canela" (edição especial)

  • Jorge Amado
  • Companhia das Letras
  • 600 páginas
  • R$ 169,90 | E-book: R$: 49,90