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Estado de Minas PENSAR

João Moreira Salles: 'Tudo ainda está em jogo, mas a encruzilhada é agora'

Em livro que resulta de 6 meses de viagens pela Amazônia, documentarista investiga indiferença do restante do Brasil e afirma que floresta está dilacerada


03/03/2023 04:00 - atualizado 03/03/2023 16:32

Não existem árvores na capa do livro de João Moreira Salles. Verde é quase nada. Esmaecida, a cor está confinada ao nome e sobrenomes do autor de “Arrabalde”. Duas onças imaginadas pela artista Joseca Yanomami flutuam no vazio vermelho. É a porta de entrada do minucioso e revelador relato de uma Amazônia dilacerada.

Com citações dos estudos mais relevantes sobre o bioma produzidos nos últimos anos e de sentença de escritores como Euclides da Cunha e Milton Hatoum, “Arrabalde” narra a colonização, o desmatamento, a disputa pela terra, o fracasso e as consequências de projetos megalomaníacos, a desertificação, a imposição cultural, as múltiplas tentativas – e os crescentes riscos ao planeta – da ação humana ao subjugar a floresta ao longo das últimas décadas. E, a cada década, há menos Amazônia. “A encruzilhada é agora. Tudo ainda está em jogo e isso não vai durar por muito tempo”, alerta o documentarista, em entrevista ao Estado de Minas.

Tantas formas de destruição do bioma responsável por 25% de toda biodiversidade terrestre do planeta são facilitadas pelo que Moreira Salles chama de indiferença do restante do Brasil. “A Amazônia sofre por não ter sido pensada e não ter sido querida. A civilização brasileira não formulou uma ideia de floresta, não a incorporou à imaginação coletiva, não a transformou em imagem compartilhada”, constata, em um dos pontos altos do livro. “A colonização indiferente permite que a Amazônia seja destruída com menos ônus moral: é mais fácil destruir aquilo que não está investido de afeto, de interesse, curiosidade ou conhecimento.”
João Moreira Salles
João Moreira Salles (foto: cale/divulgação)

“O sentimento em nós é brasileiro, a imaginação europeia. As paisagens todas do Novo Mundo, a floresta amazônica ou os pampas argentinos, não valem para mim um trecho da Via Appia, uma volta da estrada de Salerno a Almafi, um pedaço do cais do Sena à sombra do velho Louvre. No meio do luxo dos teatros, da moda, da política, somos sempre squatters (posseiros), como se estivéssemos ainda derribando (sic) a mata virgem.”
 

Joaquim Nabuco (1949-1910), em “Minha formação”  

Conhecido por documentários intimistas como “Nelson Freire” (2003), “Santiago” (2006) e “No intenso agora” (2017), o publisher da revista “piauí” passou sete meses no Pará em 2019.  “Fui conhecer a Amazônia porque a gente que não é de lá vive de costas para ela”, afirma o carioca. Até então, ele jamais havia permanecido mais do que duas semanas no bioma. O documentarista explica a opção por uma narrativa com palavras, não por meio de imagens: “É mais rápido, e eu tinha pressa. E a escrita me parece mais espaçosa do que o cinema. Cabe mais coisa nela”, afirma o irmão do cineasta Walter Salles. 
 

'A colonização indiferente permite que a Amazônia seja destruída com menos ônus moral. É mais fácil destruir aquilo que não está investido de afeto, de interesse, curiosidade ou conhecimento.'

João Moreira Salles

João Moreira Salles alugou um apartamento em Belém e fez seguidas expedições ao interior do Pará. Entrevistou, observou, pesquisou, formou convicções, desfez impressões. Voltou ao Rio de Janeiro pouco antes do início da pandemia com dois cadernos repletos de anotações transcritas a cada noite paraense, uma série de vídeos curtos (“Filmava cinco minutos por dia, nem mais nem menos, e esses pequenos vídeos me ajudaram a descrever pessoas e paisagens mais de um ano depois de tê-las visto”),  algumas frases na cabeça (“Quando cheguei, aqui não tinha nada”, repetida por fazendeiros orgulhosos de pastos ou lavouras que fizeram após arrancar árvores) e uma certeza: “Amazônia é a parte central do Brasil hoje em dia. A periferia somos nós.” 

A viagem ao Pará rendeu um conjunto de sete artigos publicados originalmente na revista “piauí” e ampliadas para o livro. Houve uma razão para João Moreira Salles escolher o estado da região do Norte como ponto de partida para a tentativa de compreensão do que o Brasil está fazendo – ou deixando de fazer – com um dos patrimônios da humanidade.
 
 
“O Pará contém todas as glórias, misérias e contradições do bioma, depois de 500 anos de história: a Amazônia preservada, a destruída, a que criou territórios quilombolas para proteger as populações que fugiam dos seringais, a das periferias que convivem com violência e com menos vigilância e atenção da imprensa e da sociedade civil organizada, a das terras indígenas, indígenas em situação urbana absolutamente precarizada. Enfim, é uma zona em disputa, como toda a Amazônia”, explica.
 
“É um lugar em fluxo que pode ir para a devastação de um ponto de não-retorno ou para a restauração das áreas desmatadas com a devolução dos processos ecológicos que foram destruídos. Tudo é possível. Mas tem que ser nesse momento, não daqui a 20 ou 30 anos”, ressalta Moreira Salles. “A floresta não aguenta mais devastação e estamos chegando perto do ponto em que ela joga a toalha e vira outra coisa, como uma savana.”

“Não existe mais esse negócio de ‘desastre natural’ ou ‘as coisas vão piorar’; tecnicamente falando, já pioraram (...). O aquecimento global comprimiu da forma mais improvável em duas gerações toda a narrativa da civilização humana (...). E, se não fizermos nada quanto às emissões de carbono, se os próximos 30 anos de atividade industrial deixarem como rastro o mesmo arco ascendente dos últimos 30 anos, até o fim deste século regiões inteiras se tornarão inabitáveis por quaisquer padrões que tenhamos atualmente.”
 

David Wallace-Wells, em “A terra inabitável – Uma história do futuro”

 
Como reverter a marcha da destruição em curso no planeta? Em “Arrabalde”, João Moreira Salles aponta um caminho após citar a condição de emergência climática mundial que tira o sono, em especial, dos países desenvolvidos. “Nunca tínhamos sido chamados a enfrentar um problema capaz de afetar a coletividade humana; agora fomos.”
 
E a resposta passa pelo direcionamento de esforços capazes de fazer do país uma referência obrigatória e incontornável para produtos florestais não madeireiros, reflorestamento de áreas abandonadas, agricultura de baixo carbono, entre outras ações de preservação.
 
“Se o Brasil quiser ser um grande país, que se senta com altivez em uma mesa internacional, deve adotar um projeto digno de sua ambição e da riqueza dos trópicos. Se fizer isso, ajuda o mundo a se livrar de um problema existencial. Mas tem de querer”, avalia o autor de “Arrabalde”. A seguir, trechos da entrevista de João Moreira Salles ao Pensar do Estado de Minas.  
 

Por que contar essa história sem imagens ou sons, mas com palavras? 
 
Porque é mais rápido, e eu tinha pressa. Não é preciso levantar recursos substanciais, não é preciso formar uma equipe, não é preciso passar mais de um ano numa ilha de edição, não é preciso perambular com o filme pelos festivais na torcida para que ganhe um mínimo de visibilidade capaz de despertar o interesse do público. Essa é a resposta mais prática.
 
A outra, mais conceitual, é que a escrita me parece mais espaçosa do que o cinema. Cabe mais coisa nela. Numa reportagem é mais fácil passar de um assunto para outro, recuar para o passado num parágrafo para, logo no seguinte, voltar para o presente. Documentários, ao menos aqueles que eu faço, tendem a se concentrar num único assunto, numa única história – uma eleição, um pianista, um ano, um homem, uma casa. O escopo de “Arrabalde” é muito mais amplo. 

Quais os cuidados que tomou para não impor a sua visão cultural, originalmente hegemônica, à Amazônia?
 
Não imagino que seja possível ser um observador imparcial. É inevitável projetar no que está diante dos olhos o mundo mental que carregamos conosco. O primeiro cuidado, então, é estar ciente disso e não ser um observador ingênuo. O segundo cuidado é aquele que menciono logo na abertura do livro: é preciso prestar atenção.
 
Como eu escrevo: “A pensadora francesa Simone Weil dizia que a atenção é a forma mais rara e mais pura da generosidade. A floresta sempre precisou de atenção, mas poucos lhe dispensaram esse cuidado simples. Populações indígenas e tradicionais, sim. Naturalistas, exploradores e cientistas, também. Ainda, alguns escritores. Mas a grande massa de gente que, ao fim e ao cabo, colonizou a Amazônia, não.” A atenção de Weil é uma espécie de exercício moral que leva à empatia e ao cuidado. Não é coisa que a gente alcance, mas funciona como horizonte.  

O que você chama no livro de “colonização indiferente” e como ela contribui para a destruição da Amazônia? 
 
A colonização indiferente permite que a Amazônia seja destruída com menos ônus moral. É mais fácil destruir aquilo que não está investido de afeto, de interesse, curiosidade ou conhecimento. Cito, no livro, a visão de colonos que foram para lá nos anos 1960 e 1970 e enriqueceram. Homens hoje com 70, 80 anos e donos de casas bonitas, avarandadas. Orgulhosos, eles mostram de suas varandas a obra de uma vida. E a obra da vida deles não é a Amazônia, mas é o inverso da Amazônia. Eliminaram a Amazônia e a transformaram na paisagem que eles conheciam na juventude.
 
“Quando eu cheguei aqui, não tinha nada’, eles dizem. E entenda por nada o sistema biológico mais complexo da Terra. Nós somos testemunhas oculares da destruição da Amazônia. Até 1970, o desmatamento era de 0,5%. Hoje está chegando a 21%, 22%. E não houve nos últimos anos nenhuma grande indignação nacional, nenhuma mobilização. A Amazônia não tem ainda o peso do pecado que está sendo cometido em nosso nome. A gente está à vontade na situação tropical, mas não está à vontade na situação equatorial. A nossa imaginação é tropical, é praieira. Mas não é florestal. Nós não transformamos a Amazônia em matéria simbólica. 

É diferente do que ocorreu no Oeste dos Estados Unidos?
 
Nos Estados Unidos, incentivados pelo governo como aconteceu no Brasil, homens brancos, europeus, ocidentais se moveram do Leste para o Oeste. A diferença é que nos EUA a colonização teve mão dupla: o Oeste colonizou o americano que foi para lá. Aquela paisagem, no cinema, na literatura, na música, se tornou sagrada e constitui hoje a identidade norte-americana. No Brasil, nada parecido aconteceu. A gente foi para a Amazônia e decidiu não se contaminar pela Amazônia. Os índios de nossa infância eram os norte-americanos, não os indígenas brasileiros.  

Por que, no livro, há a associação da Amazônia ao espanto?
 
A escala da Amazônia é inapreensível. E essa ideia se aproxima muito do espanto, que pode ter uma conotação positiva, do milagre, da beleza total, quase uma questão espiritual, como pode ser o terror. A chave do terror ligado à escala é a que está mais presente nas descrições da floresta: no cinema do (Werner) Herzog, por exemplo, é o lugar onde o homem não cabe, é um impertinente; a floresta morde, fere, pica, infecta, esmaga. É tão monumental e tão complexo: as interações ecológicas, processos de vida que dependem um dos outros, são tão infinitas que é um desafio intelectual e até ofende a nossa cabeça cartesiana ocidental porque não conseguimos decifrar. Mas isso não ofende os indígenas.
 
A floresta no seu emaranhado é uma alegoria forte da anarquia, e tirar aquilo para colocar a ordem de uma plantation, de uma monocultura, ou até de várias culturas que respeitam o seu lugar (aqui é o milho, ali é a soja, depois o boi) é mais fácil de compreender e dominar. A incompreensão da floresta impede o domínio, a não ser que você a derrote colocando-a abaixo. E essa talvez seja uma das grandes belezas das civilizações indígenas: elas detêm uma tecnologia extraordinária, uma inteligência ecológica. Entender esse emaranhado e conseguir atuar sobre ele não para destruí-lo, mas para se beneficiar dele, o que nós não sabemos fazer. A nossa epistemologia não sabe lidar com esse excesso de coisas, os povos originários sabem.
 
E aí há um possível encontro que ainda pode acontecer e para mim pode ser a salvação da floresta: aprender com eles essa tecnologia da floresta. Almir Suruí (líder indígena) diz: a gente não tem a tecnologia do google, mas temos a tecnologia da floresta. E num mundo que caminha para situações ainda maiores de emergências climáticas, essa é uma tecnologia quase vital porque permite que a vida continue a ser o que ela é nesse momento. Está na hora de a gente aprender para que o Brasil possa cumprir o seu papel no mundo: ser o país que oferece as soluções, baseadas na natureza, para os problemas das mudanças climáticas. Mas para isso a gente precisa aprender o que ainda não sabe.

E onde está o espanto relacionado ao horror? 
 
O horror é a não-floresta. O horror é a BR-163, entre Santarém e Itaituba: do lado direito, uma floresta nacional, com toda a sua complexidade, beleza e excesso de vida; do lado esquerdo do carro, você tem um deserto. Puseram um gado e o gado exauriu o pasto, que já é vagabundo, em solo paupérrimo. Você está debaixo do sol equatorial, que te martela a cabeça, sem nenhuma cobertura florestal, e para onde você lança o olho nessa direção se avista uma paisagem destruída e um trabalho humano que desistiu: uma cerca caída, um curral sem teto ou parede, de vez em quando alguns bois.
 
A cada quilômetro, a gente vê uma castanheira (cuja derrubada é impedida pelo Ibama), uma árvore que vai morrer porque não está mais inserida em um sistema biológico que a sustente. Cada uma dessas castanheiras projeta sua sombra que faz uma risca no chão nu e lembra um relógio de sol. Em uma dessas riscas, vi seis bois em linha tentando fugir do sol, o focinho de um grudado no rabo do outro. Pareciam equilibristas nessa linha preta marcada pela sombra no chão, único lugar onde eles conseguem se proteger. Essa é a Amazônia que a gente tem construído.
 
O agronegócio brasileiro não é o Vale do Silício da produção de alimentação mundial: você não está construindo a Califórnia brasileira, mas o Sudão ou a Somália, países que sofreram todas as chagas da história e ainda sofrem com desertos naturais. A produtividade da pecuária na Amazônia é baixíssima, patética. E mais: é o grande vetor do desmatamento. Nasce da grilagem. Está contaminada na origem. 

Como o governo Bolsonaro contribuiu, na sua visão, para a destruição da Amazônia?
 
Bolsonaro acelerou tudo que já existia. Ele anabolizou tudo. A desordem fundiária na Amazonia sempre aconteceu, com a ocupação irregular. Conseguiu ser relativamente controlado no início desse século, com Marina Silva à frente do Ministério do Meio Ambiente. O Estado resolveu se mostrar presente na Amazônia. Já Bolsonaro anunciou que o Estado ia se retirar e que as pessoas poderiam fazer o que quisessem. Logo no primeiro mês ele desautorizou uma ação e se posicionou ao lado dos criminosos que tinham invadido.
 
Quando isso acontece é muito sintomático e grave. Quando o governo decide que as atividades criminosas – grilagem, garimpo ilegal, roubo de madeira – são quase autorizadas porque as multas ambientais são basicamente suspensas, estabelece-se na Amazônia uma espécie de anarquia: o Estado sai e prevalece quem está mais organizado criminalmente.
 
O que aconteceu nos últimos anos é que, hoje em dia, o grande palco onde se disputa o poder das grandes facções criminosas brasileiras não é mais na periferia das grandes cidades brasileiras ou na Baixada Fluminense, mas na Amazônia. E esse é um elemento que não existia, muito novo e perigoso. A gente perdeu a soberania de áreas extensas da Amazônia durante o governo mais militarizado desde a ditadura militar.

A conclusão de um dos capítulos, a partir dos depoimentos e de estudos citados, é a seguinte: “Proteger a Amazônia é mais produtivo e eficaz do que agredir e destruir a Amazônia”. O que o leva à conclusão?
 
Essa pergunta pode ser respondida de duas maneiras. A primeira olha para o legado do atual modelo de exploração e indaga: Ele produziu bem-estar social? A resposta é um categórico não. Até 1970, a Amazônia Legal representava 4% do PIB brasileiro. Hoje, depois de eliminarmos 20% da floresta, a região responde por 8% do PIB. Soa a progresso, mas não é: no mesmo período, a população da região quadruplicou. Um levantamento feito pelo grupo de pesquisa do economista Juliano Assunção, da PUC-Rio, comparou a renda domiciliar per capita dos seis estados inteiramente contidos no bioma amazônico (Acre, Roraima, Amazonas, Rondônia, Pará e Amapá) com a do restante do Brasil.
 
O cotejo começa em 1970, no início do processo de destruição da floresta, e segue até 2010. Nestes 40 anos de desmatamento contínuo, o Brasil cresceu e deixou os municípios do bioma para trás. Ali as pessoas se tornaram mais pobres do que as que vivem em outras partes do país. Destruímos muito em troca de pouco e a um custo imenso. Dos municípios com os 20 maiores idhs do Brasil, nenhum está na Amazônia. Já dentre os 20 com os piores IDHs, 15 estão na região. Oitenta e dois por cento dos que vivem na Amazônia não têm acesso a saneamento básico. As regiões desmatadas sofrem um êxodo demográfico. Dados de 2022 mostram que dos cinco municípios brasileiros que mais emitem gases de efeito estufa, quatro estão na região: Altamira (PA), São Félix do Xingu (PA), Porto Velho (RO) e Lábrea (AM). São Paulo, com sua potência industrial, aparece na quinta posição. É evidente que estamos cometendo um erro histórico.
 
Caso essas emissões estivessem a serviço da prosperidade, ao menos poderíamos abrir uma conversa: vale a pena? Minha resposta seguiria sendo não – a catástrofe ecológica cobrará o seu preço, que será imenso – mas nem é o caso aqui. Temos apenas a tragédia ambiental, sem ganho social nenhum. A segunda resposta leva em conta o atual momento da história geofísica e ecológica do planeta, marcada pela crise das mudanças climáticas. Há dois caminhos possíveis para enfrentar o problema. O primeiro deles é o das soluções tecnológicas – geoengenharia, captura e estocagem de carbono etc. O segundo caminho é o das soluções baseadas na natureza – reflorestamento, restauração ecológica de áreas degradadas etc. A primeira solução será dada pelos países tecnologicamente avançados.
 
A segunda, pelos países do cinturão tropical. O caminho tecnológico ainda não é técnica e economicamente viável. Por ora, não existe tecnologia mais eficiente e barata para capturar carbono do que uma árvore que cresce, uma floresta que é recuperada e protegida. E mais: no futuro, soluções tecnológicas talvez sejam capazes de desacelerar o aquecimento do planeta, mas não terão qualquer impacto sobre a produção de água doce ou sobre a manutenção da biodiversidade, dois sistemas essenciais ao equilíbrio do planeta. É a floresta que provê esses serviços ecossistêmicos. Está na hora de começar a defender a ideia da natureza como infraestrutura sem a qual não existe a vida. Somos nós os provedores dessa infraestrutura vital. Poderemos cobrar por ela, mas isso não acontecerá automaticamente. Temos que construir essa possibilidade.

 Importante ressaltar que nada disso exclui a lavoura e a pecuária do bioma, e muito menos as cadeias de produtos florestais não madeireiros – açaí, cupuaçu, cacau, bacuri, óleos vegetais, fungos comestíveis. Devastamos tanto, deixamos para trás tanta terra abandonada, que, paradoxalmente, pode-se inclusive aumentar a produção agropecuária da região ao mesmo tempo em que recuperamos as florestas. Basta abandonar o modelo predatório e vagabundo que está aí, comandado pela pecuária. A Amazônia foi colonizada pelo boi. A cultura do boi prevalece: roupas, chapéus, botas, carros 4x4, adereços taurinos, música sertaneja... A comida na casa das pessoas mais abastadas é o churrasco, isso num lugar de uma culinária absolutamente fenomenal. Há a massacrante presença de uma cultura que é a antítese da floresta no bioma florestal.

Yanomamis são citados no livro apenas uma vez porque eles não vivem na região que você visitou. Mas como vê a forma que os yanomamis foram tratados nos últimos anos e os relatos divulgados no início de 2023, como o publicado pela Sumaúma? Outros povos indígenas passam pelo mesmo drama humanitário?
 
Um pequeno e triste episódio ilustra como o último governo tratou o povo yanomami. O garimpo traz consigo a malária, doença que explodiu em terras yanomamis. Entre 2014 e 2020, dados do Sistema de Informação de Vigilância Epidemiológica (Sivep-Malária) mostram que os casos da forma mais letal da doença cresceram 716 vezes dentro do território indígena. Pois bem, em novembro de 2021, uma equipe multidisciplinar da Fiocruz quis entrar no território para prestar assistência médica às populações afetadas. Não conseguiu. Alegando protocolos sanitários da pandemia de COVID-19, a Funai impediu que os agentes entrassem na região, proibição que só seria suspensa no ano seguinte.
 
E o mais espantoso: de acordo com o site Amazônia Real, em julho de 2022, enquanto o Exército produzia cloroquina e o presidente da República fazia lives quase diárias recomendando o uso da droga para combater o SARS-Cov-2, contra o qual o medicamento é ineficaz, faltava cloroquina para tratar pacientes indígenas. Como se sabe, a substância é indicada para o tratamento da malária. Ou seja: em todo o território brasileiro só não havia cloroquina onde ela era mais necessária. Não consigo imaginar que isso seja descaso. É projeto.  A saúde e a segurança do povo Munduruku estão seriamente ameaçadas pelo garimpo. Em 2019, cientistas da Fundação Oswaldo Cruz e de outras sete instituições de pesquisa visitaram o médio Tapajós para avaliar o impacto da contaminação por mercúrio em habitantes da Terra Indígena Sawré Muybu, situada nos municípios de Itaituba e Trairão.
 
Foram entrevistados e avaliados duzentos mundurukus. Era um grupo bastante jovem, com idade média de 14 anos. Seis em cada dez participantes apresentaram níveis de mercúrio que ultrapassavam os limites máximos estabelecidos pelas organizações de saúde. Numa única aldeia, a prevalência de contaminação se estendeu a 87,5% da população. O maior nível de mercúrio em todo o grupo foi registrado numa criança de 10 anos. Muitos indígenas já mostram algum grau de comprometimento neurológico.
 
Em artigo sobre o impacto do garimpo sobre o povo munduruku publicado na revista “piauí”, a antropóloga Aparecida Vilaça escreve sobre um professor indígena que se surpreendeu com o alto nível de reprovação escolar nas várias aldeias da região. Constatou então que diversas crianças já apresentavam problemas motores. Um dos alunos do professor indígena, um rapaz munduruku de 17 anos, deixou de frequentar as aulas porque não conseguia mais andar. São muitos os exemplos. Em terra Uru-eu-wau-wau, milhares de cabeças de gado pastam em terras roubadas dos indígenas.
 
O Conselho Indigenista Missionário mostrou que já no primeiro mês do primeiro ano do governo Bolsonaro, as TIs Arara, no Pará, e Arariboia, no Maranhão, registraram a invasão de madeireiros e grileiros. Durante o último governo, nem os que mereceriam mais proteção do Estado estiveram a salvo: segundo o Ipam, de 2019 a 2021 seis das 10 terras indígenas com maior aumento no desmatamento no bioma eram habitadas por povos isolados, exatamente aqueles menos preparados para resistir ao contato com o homem branco, com suas armas e seus patógenos. Em resumo: há crises humanitárias pipocando na Amazônia inteira, mas talvez nenhuma delas com a intensidade com o que a gente viu em terra yanomami. Só que os elementos da crise estão disseminados em todo o bioma.

Como transformar o arrabalde não apenas em uma casa, mas na nossa casa? Como despertar o pertencimento da Amazônia em brasileiros que não moram na região?
 
Não existe um único caminho. Fazer do Brasil o país das soluções baseadas na natureza que ajudam o mundo a enfrentar a crise climática é um desses caminhos. No momento em que nos tornarmos uma potência ambiental dos trópicos, ganharemos uma identidade e um propósito. Se faz isso, você desembarca na Normandia.
 
O Brasil infelizmente é muito periférico na história do mundo, a nossa contribuição sempre foi muito tímida, nunca fomos chamados a cumprir uma missão civilizatória de impacto global. Agora a gente tem. É a primeira vez, e não tem ninguém mais habilitado. Mas o Brasil precisa querer. Nessa hora, nós nos daremos conta de que os nossos biomas são o nosso patrimônio mais valioso – e uso aqui “valor” no sentido amplo da palavra, sem reduzi-la apenas ao elemento econômico: a beleza tem valor, a variedade das coisas vivas tem valor, tem valor o cumprimento de um dever de civilização.
 
Outro caminho é transformar a floresta em matéria simbólica. Em cultura. Adoraria ver um programa de Estado que enviasse grandes artistas de fora do bioma para lá, enquanto os de lá seriam levados para outras partes do Brasil, num grande processo de fertilização mútua das nossas imaginações. Um bom modelo seria o Works Progress Administration (WPA) do governo Roosevelt durante os anos da Depressão norte-americana. Desse nosso esforço nasceriam filmes, peças, livros, canções, quadros, móveis, roupas. Seria muito bonito.   

Quais as suas descobertas mais recentes que mudaram o seu entendimento da Amazônia?
 
Depois que fiz as reportagens para a “piauí”, descobri toda essa nova ciência da arqueologia que identifica a floresta manipulada. A floresta é, ao mesmo tempo, natureza e cultura. Os estudos mais recentes mostram que, ao longo de séculos, os indígenas manipularam a floresta, ela é como se fosse uma obra deles, e isso é uma beleza. São 390 bilhões de árvores na Amazônia inteira, divididas em 16 mil espécies. O notável é que, dessas 16 mil, apenas 227 são hiperdominantes. E há duas explicações para essa hiperdominância: uma é a vantagem darwiniana, são simplesmente melhores na competição.
 
A outra explicação é que essas espécies se tornaram hiperdominantes porque foram selecionadas, domesticadas, plantadas, cultivadas, porque têm uso econômico ou ritual na cultura dos povos originários. Eduardo Neves (arqueólogo, autor de livros como “Arqueologia da Amazônia”), à frente dessa pesquisa toda, diz que não consegue, diante desses dados, descartar a hipótese de que a floresta amazônica que a gente vê é também um jardim.
 
No sentido que ela foi também plantada. É um bem comum extraordinário e pertence a toda a humanidade. Esse foi o legado dos povos originários. Não é preciso buscar em obras de civilização, que são realmente notáveis, como Machu Picchu, o parâmetro para todas as outras. Existem outras maneiras de avaliar a grandeza e a obra de uma civilização. A nossa, as que estavam aqui em nossas fronteiras antes de serem encontradas e dizimadas pelos exploradores, são civilizações orgânicas que não lidam com a pedra ou o metal, não fazem templos. Mas lidam com matéria viva; palha, madeira, lidam com a inteligência ecológica.
 
Com isso, conseguiram viver dentro da floresta vivendo da floresta sem destruir a floresta e modificando a floresta. Se as pessoas entendessem assim o que é a floresta, mudaria tudo, passaria a ser uma obra, um legado. Seria possível enxergar a floresta como o nosso legado, o nosso Machu Picchu: se torna um precioso presente que nos legaram os povos que aqui estavam antes de a gente chegar e que, portanto, é da nossa responsabilidade manter, cuidar e zelar. Os gregos não destroem o Partenon, a gente não deveria destruir a Amazônia.

O cético diante de um ‘milagre’

“Não sou pessoa de grande espiritualidade, não tenho muito metafísica, salvo com o Botafogo (clube do coração do documentarista). Não me foi dada a graça da fé. Mas, em Cachoeira Porteira (PA), à beira do Rio Trombetas, região protegida na Calha Norte, fiquei hospedado em uma pequena pousada em território quilombola. Da varanda, na parte alta da pousada, é possível ver a floresta a perder de vista. E às seis da tarde a floresta começa a respirar. Exalar o vapor e a água que ela não precisa e, portanto, ela doa. É a água que vai chover em outros lugares. O que vi é, de fato, a coisa mais próxima de Deus que consigo imaginar. Ou seja: algo infinitamente maior que eu, que não compreendo, mas que me comove. Sei que dependo daquilo que me permite existir. Essa minha reverência ao infinito não dura muito tempo, logo volto ao meu modo de ser. Mas a Amazônia te permite isso: observar o incomensurável do espanto. Pode ser aterrorizante ou milagroso. Para mim, foi milagroso. Graças a Deus.”

capa do livro 'Arrabalde'
 
• “Arrabalde”
• João Moreira Salles
•   Companhia das Letras
•  424 páginas
•  R$ 99,90


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