Um desmatamento acelerado, predatório e desnecessário varreu em cinco décadas um quinto da floresta abraçada pela Amazônia Legal. Se até 1975, a cobertura vegetal resistia praticamente intacta, com o comprometimento de apenas 0,5% da floresta, 86 milhões de hectares já foram destruídos. É uma área do tamanho da Espanha e Itália juntas ou correspondente ao território dos estados de Minas Gerais e de São Paulo. Além da derrubada das árvores, no pós-década de 1970, extensas áreas de florestas remanescentes foram degradadas por queimadas, extração de madeira, garimpo de ouro e grilagem de florestas públicas.
Todas ilegais, essas atividades acirram conflitos sociais e potencializam a violência endêmica na região, deteriorando o ambiente econômico. Não menos grave, o ritmo alucinado de degradação ambiental tangencia o risco de não retorno: cientistas e pesquisadores registram a perda da capacidade de regeneração em várias áreas devastadas da floresta, com a vegetação nativa sendo substituída por espécies típicas do cerrado, de menor porte e mais resistentes ao clima seco e ao fogo.
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“Desmatou-se muito, mal e rapidamente na Amazônia, o que contribui para piorar o balanço de carbono no Brasil e para as perdas de vida da biodiversidade”, considera o engenheiro agrônomo Beto Veríssimo, pesquisador sênior e co-fundador do Imazon, um dos coordenadores do projeto Amazônia 2030. Atualmente, a Amazônia Legal gera 48% das emissões de Gases de Efeito Estufa (GEE) do Brasil, a maioria devido ao desmatamento e às queimadas, não obstante, contribua com menos de 9% do PIB do país. “São Félix do Xingu, município do Pará (com população segundo censo parcial divulgado em 2022 de 81.161 habitantes), emite mais do que São Paulo (com 12.200.180 habitantes, censo parcial 2022)”, aponta Veríssimo. “Em 2022 foram, na Amazônia, um milhão e 300 mil campos de futebol queimados. Cada campo de futebol representa 150 toneladas de carbono”, afirma ele.
Ao contrário do que o senso comum possa supor, o desvairado desmatamento da Amazônia não trouxe riqueza à região. Coordenador do projeto Amazônia 2030, o economista Juliano Assunção, professor da PUC-Rio e diretor-executivo do Climate Policy Initiative, é taxativo: “O período em que fomos mais efetivos no combate ao desmatamento foi exatamente aquele em que o PIB da agropecuária da Amazônia mais cresceu”.
Entre 2004 e 2012, o desmatamento na Amazônia Legal teve redução de mais de 80%, caindo no período de 27.772 km2 para 4.571 km2, a menor taxa da série histórica a partir de 1997. Ao mesmo tempo, a produção de soja, milho, dendê e carne na região quase dobrou: saltou de aproximadamente 30 mil toneladas, em 2004, para cerca de 55 mil toneladas, em 2012. Juliano Assunção observa que muito do desmatamento realizado não estava associado à necessidade de produção.
“Se olharmos as imagens de satélite das áreas desmatadas vamos observar que aproximadamente a quinta parte dessas áreas está abandonada, o que ilustra com muita clareza que se desmatou à toa, por questões que não estão associadas à necessidade de produzir, tanto é que foram abandonadas. E o grau de produtividade nas outras áreas é extremamente baixo”, afirma o economista.
Além de a agropecuária não ser grande geradora de oportunidades de emprego – apenas 17% da mão de obra na Amazônia está associada a ela – o desmatamento a serviço da atividade não apresentou impacto positivo sobre as possibilidades de trabalho: 40% da população entre 25 e 29 anos na região está fora do mercado, formando um contingente de jovens que nem estuda nem trabalha.
Com um perfil demográfico diferente das demais regiões do Brasil, a Amazônia Legal registrará, até 2030, um bônus demográfico, com maior proporção de pessoas em idade de trabalhar, na faixa etária compreendida entre 18 e 64 anos. “Entretanto, pela atual ausência de oportunidades, esse bônus tem se transformado em ônus: os jovens encontram poucas oportunidades e a participação deles no mercado de trabalho na Amazônia é de 13 pontos percentuais menor do que no resto do país”, afirma Juliano Assunção.
É assim que, apesar do contingente de jovens disponíveis para o trabalho ser relativamente grande em relação ao resto do país, estes não encontram emprego e, pelo desalento, sequer o estão procurando. “Não há um instrumento de política pública com ensino profissionalizante para ajudar esse jovem a se qualificar e se conectar ao mercado”, diagnostica Assunção. Sem perspectivas de ocupação para os jovens, estes são capturados para atividades ilegais. Desde o início dos anos 2000, a violência na região aumenta ao ponto de, em 2019, a taxa de homicídios ter sido 70% superior ao restante do Brasil. “Essa violência inibe investimentos e fomenta um ciclo perverso de pobreza, violência e baixo crescimento econômico”, observa Assunção.
O paradoxo
Em meio ao alarmante quadro da devastação predatória da maior floresta do mundo, a boa notícia reside no paradoxo que emerge das mazelas e crimes ambientais ali cometidos: cada elemento que hoje representa revés à floresta tem potencial para se tornar a base da sustentabilidade da região. “O desmatamento é o primeiro e maior dos problemas. Mas, ao mesmo tempo, é a base para pensar a solução”, indica Beto Veríssimo.
“A começar pelo fato de que é possível pensar no aumento de produção agropecuária apenas utilizando-se áreas já desmatadas, que estão abandonadas ou subaproveitadas. Ao mesmo tempo, parte do que se desmatou precisa voltar a ser floresta, inclusive por razão econômica. Existe um mercado de carbono que paga para você plantar floresta. E plantar floresta é mais rentável do que criar boi”, aponta Beto Veríssimo.
Sob a estrita ótica da racionalidade econômica, o florescente mercado global para a captura do carbono é mais promissor do que a atividade agropecuária. Segundo estimativa de Juliano Assunção, a recuperação da floresta amazônica pode aportar para a região algo em torno de 18 bilhões de dólares até 2031: “Temos um estudo com simulação que indica que, sob as regras da coalizão LEAF (Reduzindo as Emissões por Aceleração do Financiamento Florestal), é o que teríamos ao valor de 10 dólares por tonelada de carbono, se reduzirmos o desmatamento até 2030. Esse é um processo, que já deveria estar deslocando a atividade pecuária”.
A coalizão LEAF é uma parceria público-privada, lançada em 2021 pelos governos da Noruega, Estados Unidos e Reino Unido, junto a um grupo de grandes empresas privadas. “O Brasil tem potencial para fornecer créditos de carbono florestais de alta qualidade. E esses preços podem subir ainda mais. Se chegarem a US$15 por tonelada de CO2 no período entre 2027-2031, o retorno para a região pode alcançar 26 bilhões de dólares. O desafio é como a gente estrutura o mecanismo para que esse potencial se realize”, afirma o economista. Adicionalmente, o fim do desmatamento poderá promover o Brasil em uma potência ambiental, destino preferencial do promissor mercado de carbono. Nas palavras de Beto Veríssimo: “O racional econômico é parar o desmatamento e aquilo que já foi desmatado, recuperar plantando de novo a floresta. E isso é uma ação ambiental, mas é também econômica, pois existe mercado gigantesco para captura desse carbono”.
A massa de desempregados, principalmente jovens, presente na Amazônia Legal, é por fim, o terceiro elemento do paradoxo amazônico, com potencial para se transformar em variável de desenvolvimento sustentável. “O que podemos aprender de uma agenda de inserção produtiva de jovens na Amazônia, em que vamos tirar proveito da combinação entre capacitação profissional, acesso à internet e maneiras de conectar os jovens ao mercado de trabalho é muito mais promissor do que qualquer atividade voltada ao desmatamento, que é atividade ilegal, que deteriora o ambiente de negócios e de investimento”, considera Juliano Assunção.