O ano 2000 foi marcado pelo sequenciamento do genoma humano, a chegada dos primeiros moradores à Estação Espacial Internacional e a descoberta de sinais de água em Marte. No Brasil, explodia nas rádios a música “Se eu não te amasse tanto assim”, na voz de Ivete Sangalo, enquanto a atriz Carolina Dieckmann emocionava milhões de pessoas com a histórica cena raspando a cabeça. As manchetes destacavam o sequestro do ônibus 174 e a prisão do juiz Nicolau. Também naquele ano, a Sony lançava o PlayStation 2 no Japão, a Austrália sediava os Jogos Olímpicos e George W. Bush era eleito presidente dos Estados Unidos. Entre tantos assuntos, a chegada de um homem baixo e esbelto ao comando da Rússia pode ter passado despercebida para muitos, mas, 23 anos depois, ele continua lá: Vladimir Putin.
Em fevereiro de 2022, o maior país do mundo em extensão territorial, detentor de petróleo, gás e armas nucleares se tornou o centro das atenções ao invadir a Ucrânia, trazendo à tona antigas cicatrizes e muita tensão. Tanques russos ocuparam Kherson, Mariupol e Chernigov. Aviões bombardearam Lviv, Odessa, Cracóvia e Kiev. Pessoas foram executadas à queima-roupa e seus corpos descartados em valas comuns. Milhares de famílias refugiadas começaram a atravessar fronteiras para fugir da violência provocada pela guerra, enquanto o Google registrava um recorde de pesquisas sobre o presidente da Rússia. Nesse contexto, enquanto um acordo de paz ainda não foi selado, a editora Intrínseca relançou no Brasil o livro “O homem sem rosto - a improvável ascensão de Vladimir Putin”, com prefácio atualizado da autora e jornalista Masha Gessen.
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Durante entrevistas para sua autobiografia, publicada em fevereiro de 2000, Putin afirmou ser impulsivo, fisicamente violento, uma pessoa que não conseguia controlar o próprio temperamento. Em suas apurações, Masha Gessen obteve depoimentos semelhantes. Pessoas que estudaram com Putin disseram à autora que o futuro presidente tinha modos de brigão. “Se alguém o insultasse, partia para cima do sujeito e o arranhava, arrancava-lhe os cabelos”.
Aos 11 anos, Putin demonstrou grande entusiasmo pelas artes marciais. De uma forma instintiva, para complementar sua inclinação às brigas, passou a fazer aulas de boxe, mas foi às cordas logo no primeiro assalto: uma fratura no nariz tirou o menino de combate no início dos treinos. Com o ego dolorido, resolveu apostar suas fichas no Sambo, uma espécie de esporte de autodefesa que usa golpes de judô, caratê e luta tradicional. Os pais não concordavam com o hobby do filho, mas a disciplina foi uma ótima válvula de escape, transformando o antigo encrenqueiro em um adolescente aplicado e com metas bem definidas. Foi nessa época que ele teria ouvido que a KGB, polícia secreta do país, iria admitir novos recrutas para serem treinados em combates corpo a corpo.
Putin contou a um biógrafo que, aos 16 anos, foi ao quartel-general da KGB para tentar se alistar e recebeu a informação de que a melhor maneira para atingir seu objetivo era entrar para a universidade, de preferência em um curso de Direito, ou fazer parte do Exército. Seus professores ficaram espantados quando souberam que o jovem tinha interesse em ingressar no ensino superior, afinal de contas, a Universidade de Leningrado era uma das mais concorridas da União Soviética. Ele terminou o curso secundário com “excelente” em história, alemão e ginástica; “bom” em geografia, russo e literatura; e “satisfatório” em física, química, álgebra e geometria. Não se sabe ao certo o que garantiu sua admissão no mundo acadêmico, se foi por sua determinação ou a intenção de trabalhar para a KGB, mas o fato é que ele conseguiu a vaga.
Na universidade, manteve-se isolado. Tirava notas altas e passava as horas livres treinando judô e passeando de carro. Aliás, a relação dos Putin com o dinheiro ainda levanta muitas dúvidas. De acordo com a autora, o futuro presidente era “extravagante” e “autocentrado” para o seu meio social e sua família chegou a viver relativamente bem, sendo uma das poucas da região com televisão e telefone. Uma das hipóteses é que Putin, o pai, teria trabalhado para a polícia secreta e permanecido ligado à reserva ativa. De todo modo, na segunda metade dos anos 1970, o jovem universitário foi procurado por um oficial da KGB. Após algumas entrevistas, constatou-se que o rapaz “não era particularmente sociável, mas enérgico, flexível e corajoso”, ou seja, qualidades esperadas de um bom agente do serviço de inteligência.
O relatório parecia fazer sentido, afinal, Putin confessou que era incrivelmente inepto em seus relacionamentos. Segundo Masha Gessen, “antes de conhecer aquela que viria a ser a sua esposa, ele teve uma relação significativa com uma mulher, mas abandonou a noiva no altar”. Certa vez, Ludmila Putina, que foi casada com Putin durante 30 anos, declarou publicamente que a primeira impressão que teve sobre ele foi de um homem que não tinha nada de especial e que não sabia se vestir. Quando começou na KGB, o órgão era um espelho das demais instituições da União Soviética: homens e mulheres passavam o dia catalogando recortes de jornais, fazendo relatórios e trabalhos burocráticos que, posteriormente, chegavam às mãos da direção do Partido Comunista. Somente em 1984, aos 32 anos, ele foi enviado para a escola de espiões de Moscou.
Por lá, o major Putin foi criticado por “seu baixo senso de perigo”, mas também alcançou seu primeiro posto de liderança: representante de turma. Em seguida, foi deslocado para a cidade industrial de Dresden, na Alemanha, onde continuou fazendo um trabalho tedioso, contribuindo para o aumento da montanha de informações inúteis produzidas pela KGB. Deprimido, abandonou os exercícios, passou a tomar cerveja e engordou 10 quilos. Quando retornou a Leningrado, Putin estava se sentindo traído pelo país e pela corporação. Enquanto isso, em 1985, Mikhail Gorbachev chegava ao poder na União Soviética e começava a promover mudanças significativas. Com o fim do monopólio do partido comunista, em 1989 ativistas pró-democracia começaram a se reunir para organizar o que era, até então, impensável, uma eleição.
Putin trabalhou como chanceler assistente para relações exteriores na Universidade de Leningrado. Depois, foi auxiliar de Anatoly Sobchak, considerado naquela época um dos mais destacados políticos pró-democracia da Rússia. Uma das versões garante que Sobchak encontrou Putin por acaso, nos corredores da universidade, mas que se lembrava do desempenho dele durante o curso de Direito. Em 1990, a economia soviética ficou à beira do colapso e, em 1991, Gorbachev acabou perdendo o poder mesmo após um golpe fracassado por parte de ministros. Foi surfando naquela onda de mudanças que Sobchak se elegeu prefeito de São Petersburgo, com Vladimir Putin no cargo de vice, sendo responsável pelo comércio exterior e o fluxo de informação que entrava e saía do governo.
O mandato acabou de forma desastrosa em 1996. Putin se mudou para Moscou, onde conseguiu um cargo de assessor-chefe do Departamento de Propriedades da Presidência, função de pouca responsabilidade pública, mas que lhe dava chances de rechear sua agenda de contatos. Nessa época, defendeu sua dissertação sobre economia dos recursos naturais, que seria acusada de plágio nove anos depois. Em 1999, começava a ascensão meteórica de Putin no Kremlin, que culminaria em sua posse no cargo de presidente em 7 de maio de 2000. Após a cerimônia, aquele homem sem rosto, desconhecido de grande parte da população, jamais deixaria de dar as cartas, mesmo que de forma indireta. Menos de um ano depois da chegada de Putin ao poder, todas as três redes nacionais de TV eram controladas pelo estado.
Em seus decretos, o presidente passou a desmantelar a ainda frágil estrutura democrática do país. Instaurou a ‘tirania da burocracia’, criando uma série de obstáculos a quem quisesse disputar eleições ou protestar nas ruas. O livro indica que o governo é responsável pelas mortes de vários jornalistas críticos ao regime, inclusive por envenenamento, além de jamais ter impedido ataques terroristas dentro do país com o objetivo de justificar a repressão à mídia e à oposição. A Rússia não tem um sistema judiciário independente do Poder Executivo e já chegou a fazer abertamente uma campanha anti-gays. Para Masha Gessen, o país é regido por um homem superficial e egocêntrico, “um ditador megalomaníaco que aposta em combater o mundo ocidental e se isolar dele”.
O homem sem rosto - a improvável ascensão
- de Vladimir Putin
- Masha Gessen
- Editora Intrínseca
- Tradução: Maria Helena Rouanet
- 368 páginas
- R$ 79,90 (livro) e R$ 46,90 (e-book)