Embora a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva para a Presidência da República abra o caminho para que o Brasil transite de uma concepção relativizada da democracia – hegemônica entre 2018 e 2022, durante o governo de Jair Bolsonaro – para uma concepção de reconstrução democrática, há um longo percurso para a restauração do papel das instituições brasileiras e reconquista da governabilidade, ainda de futuro incerto no país. A avaliação é de Leonardo Avritzer, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais e coordenador do Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação (INCT/IDDC) e do Observatório das Eleições.
São três grandes agendas não resolvidas no processo de redemocratização do Brasil, identificadas por Avritzer, com efeitos danosos sobre a governabilidade: o papel dos militares, a fragmentação excessiva do sistema partidário e o seu relacionamento com o Poder Executivo e o novo papel do Poder Judiciário. “É difícil apontar qual será o futuro da democracia brasileira. O que podemos afirmar é que, certamente, ele estará sendo determinado nos próximos anos”, observa o cientista político, assinalando que o bolsonarismo não foi um acidente na trajetória democrática brasileira, mas uma consequência de erros da arquitetura institucional, que emerge da Nova República. A polarização política, respaldada e acentuada no contexto do ecossistema de desinformação, foi reforçada por arranjos institucionais fortemente disfuncionais, registra o cientista político.
Sob o título “Eleições 2022 e a reconstrução da democracia no Brasil” (Editora Autêntica), Leonardo Avritzer e as pesquisadoras Eliara Santana e Rachel Callai Bragatto organizam e alinhavam reflexões abrangentes e transdisciplinares de 37 autores que, em quatro seções, abordam o processo eleitoral de 2022, as redes sociais e o ecossistema da desinformação, a representação no Congresso Nacional e os caminhos para a governabilidade nos próximos quatro anos, esta, posta como desafio do governo Lula para a reconstrução democrática. O livro será lançado em Belo Horizonte neste sábado, 18 de março, a partir das 11h, na Livraria Scriptum (Rua Fernandes Tourinho, 99, Savassi).
“A construção democrática brasileira deve ser dividida, claramente, em dois momentos: um de forte expansão e consenso democrático entre a sociedade e as elites, que vai de 1985 a 2014; outro de forte regressão democrática, que começou em 2014 e que ainda não sabemos qual será seu desfecho”, sustenta Avritzer. Avaliado pela ciência política como mais promissor – do que hoje se entende que realmente tenha sido – o período compreendido entre 1985 e 2014 foi marcado, “pela não resolução ou por uma resolução deficiente de três problemas”, que hoje voltam a assombrar a democracia brasileira. São eles as três grandes agendas, entre as quais, a questão militar é apontada por Leonardo Avritzer como a mais grave.
“Não temos Forças Armadas democráticas no Brasil, quase quarenta anos após o fim do regime militar”, observa Avritzer. “Ao se iniciar o período de transição para a democracia e a elaboração da carta constitucional, parecia que os militares brasileiros haviam se resignado a abandonar a cena política. Hoje sabemos que temos um setor militar fortemente antidemocrático, que interveio na decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em relação à prisão em segunda instância, que interveio no exercício da presidência do STF durante a gestão Dias Toffoli, que usurpou poderes em relação à avaliação da lisura das urnas eletrônicas”, escreve o cientista político e pesquisador, no artigo “O futuro da democracia no Brasil”, que encerra a coletânea do livro.
Recuperando fatos históricos no transcorrer do primeiro período da Nova República sobre o relacionamento entre militares e democracia, o professor alinhava a compreensão de porque, diferentemente de países como Portugal e Argentina, que tiveram forte envolvimento dos militares na política, o Brasil ainda não logrou firmar o exercício do poder político civil. A começar por militares como Jair Bolsonaro, que sem aceitar a democratização, nunca foram abertamente punidos quando em manifestações públicas e em atos, pregaram ou praticaram atentados à nova ordem democrática que ressurgia, após o longo ocaso autoritário-militar. “Não somente a transição não foi realizada com qualquer tipo de punição aos abusos passados, como também os próprios abusos por parte de militares na ordem civil não foram tratados institucionalmente”, analisa Avritzer. Ainda mais grave foi o lobby militar sobre a Assembleia Nacional Constituinte para substituir a proposta de atribuição das Forças Armadas à “defesa nacional e dos poderes constitucionais” pela versão militar de “manutenção da lei e da ordem”, que acabou prevalecendo e se tornando o Artigo 142 da Constituição Federal. “Na transição democrática, a retirada das Forças Armadas do campo político se deu em seus próprios termos, inclusive com a imposição de um artigo na elaboração da Constituição, que determina em seus próprios termos também as condições de sua intervenção na manutenção da ordem democrática”, considera Avritzer, acrescentando que os militares deixaram em aberto a ampliação de seu papel na ordem política nos últimos seis anos. E é precisamente este papel que precisa ser redefinido neste governo.
Além da questão militar, Avritzer destrincha as duas outras agendas cruciais para a reconstrução democrática. O papel do Poder Judiciário, com prerrogativas ampliadas, teve atuação democrática importante nas eleições de 2022, afirma ele. “Mas há um Poder Judiciário hipertrofiado em relação às demais instituições que precisa ser discutido”, salienta. E ainda mais relevante para a estabilização democrática, é a agenda que deve abordar o relacionamento entre Executivo e o Congresso Nacional, um problema que se acentua em decorrência da fragmentação do sistema partidário. “O Congresso no Brasil é, hoje, extremamente forte em dois quesitos que são pouco democráticos. O primeiro deles é que o Congresso derruba os presidentes que são fracos, algo que dificilmente contempla os critérios de soberania popular, e torna fortes os presidentes sem nenhuma popularidade ou aprovação, como foi o caso de Michel Temer. O segundo quesito é que a questão da elaboração do orçamento tem que ser feita dentro de princípios de transparência e controle público”, anota o cientista político, que conclui: a governabilidade no Brasil depende de um nível de falta de controle sobre o orçamento ou de um processo de negociação que gera corrupção e afeta legalmente a governabilidade. “Em ambos os casos, temos um arranjo político indesejável e instável, cujos elementos principais precisam mudar.”
“Eleições 2022 e a reconstrução da democracia no Brasil”
- Organização de Leonardo Avritzer, Eliara Santana e Rachel Callai Bragatto.
- Autêntica Editora
- 242 páginas
- R$ 59,80. E-book: R$ 41,90.
- Lançamento neste sábado (18/03), às 11h, na Livraria Scriptum (Rua Fernandes Tourinho, 99, Savassi, Belo Horizonte)