Jornal Estado de Minas

PENSAR

Biógrafa de Silvina Ocampo, Mariana Enriquez revela método usado em livro

 

“Irmã de Victoria Ocampo, esposa de Adolfo Bioy Casares, amiga íntima de Jorge Luis Borges, uma das mulheres mais ricas e extravagantes da Argentina, uma das escritoras mais talentosas e estranhas da literatura em língua espanhola: todos esses títulos não a explicam, não a definem, não servem para entender seu mistério. Nunca trabalhou por dinheiro – não precisava –, não participou de nenhum tipo de atividade política (nem de política cultural), publicou seu último livro quatro anos antes de morrer (escreveu mesmo quando já tinha os primeiros sintomas de Alzheimer, com quase noventa anos) e sua vida social, sempre limitada, foi se tornando nula com os anos, algo quase inaudito para uma mulher de sua classe. O dinheiro lhe deu liberdade, mas ela nunca pareceu muito consciente de seus privilégios, que, pode-se dizer, pouco aproveitou.”





 

Assim a escritora Mariana Enriquez, uma das principais vozes da literatura argentina contemporânea, nos apresenta a colega Silvina Ocampo, nascida em 1903 em Buenos Aires, no perfil biográfico “A irmã menor” (Relicário Edições). Autora de contos insólitos e perturbadores como os reunidos em “A fúria”, Silvina pode ser considerada tematicamente uma “irmã mais velha” da geração de Enriquez, Samanta Schweblin, Ariana Harwicz e outras que ultrapassaram a fronteira de seu país e conquistaram leitores em todo o mundo. “A relação de Silvina com uma realidade fragmentada e estranha é muito mais familiar às novas gerações e acho que pode ser observada em muitos escritores contemporâneos”, acredita Mariana Enriquez, em entrevista ao Pensar do Estado de Minas. 

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Irmã da também escritora Victoria Ocampo, Silvina estudou desenho e pintura em Paris com Giorgio de Chirico e Fernand Léger. Em 1935, após conhecer Adolfo Bioy Casares (com quem se casaria cinco anos depois), passou a se dedicar exclusivamente à literatura. Sua obra, porém, jamais alcançou a mesma repercussão da atingida pelos escritos do marido e do amigo Jorge Luis Borges. “Se Silvina foi um pouco deixada de lado, foi em parte por causa de sua personalidade e em parte por ela ser mulher”, aposta Enriquez. Mas, após a morte da escritora, aos 90 anos, sua obra foi sendo revalorizada e situada no lugar mais alto da literatura latinoamericana produzida no século 20. “Silvina Ocampo convida à fantasia e à imaginação sem escrúpulos nem preconceitos; presenteia-nos com a possibilidade do sonho acordado para um despertar mais agudo, mais crítico e menos iludido, mais consciente, cara a cara com um mundo desprovido de máscaras”, aponta Laura Janina Hosiasson, no posfácio da edição brasileira de “A fúria”, lançada pela Companhia das Letras em 2019. “Ela maneja o horror, o absurdo e um tipo de não-realismo de forma absolutamente única”, endossa Enriquez, também autora de livros sinistros como a coletânea de contos “As coisas que perdemos no fogo” e o romance “Nossa parte de noite”, ambos lançados pela Intrínseca.

 

A seguir, a escritora e jornalista de formação conta como foi o seu método de trabalho para elaborar o perfil biográfico, elege os pontos altos da obra da escritora e admite que não conseguiu decifrar os mistérios da criação da escritora. “Também acho que ela cultivou esse mistério de forma muito inteligente”, acredita.   

 

 

Como foi seu primeiro contato com a obra de Silvina Ocampo? O que mais a fascina nos livros dela?

Meu primeiro contato foi na infância por meio de uma compilação de contos na biblioteca dos meus pais. Eu mal me lembro das histórias, e sim de quão perturbadoras elas me pareceram, o quão estranhas eram. Não sabia se eles me davam medo, asco. E acho que não as entendia completamente. Com o tempo, ao reler, entendi que Silvina manejava o horror, o absurdo e um tipo de não-realismo (porque também não é surrealismo) absolutamente único, especialmente quando foi publicado. Mas meu verdadeiro reencontro e fascínio veio quando pesquisei para meu livro. Ainda tenho um caderno com a síntese de cada um dos contos, o que me serviu não apenas para identificar padrões e continuidades, mas para rir de sua incrível imaginação retorcida. 





 

No livro você cita alguns títulos atribuídos a Silvina Ocampo e afirma que, mesmo assim, “eles não servem para entender seu mistério”. Foi possível decifrar esse mistério?

Acho que não. Ela forneceu às pessoas que a conheciam diferentes versões de si mesma: muitos que a conheceram me contaram fatos inesperados sobre ela, diferentes de outros que eu também havia entrevistado. Silvina não deixou um diário. Ela pintava, mas não autorretratos. Então não podemos ver como ela se sentia, mesmo em forma de artes plásticas. Ela era muito reservada e, embora concedesse entrevistas, não revelava muito sobre si mesma. Ela dizia: “Minha vida não tem nada a ver com o que escrevo”. Acho que isso nunca é completamente verdade, mas é difícil encontrá-la no que escreveu, exceto em alguns contos e poemas que parecem mais pessoais, especialmente aqueles que lidam com amor, ciúme, família. Eu também acho que ela cultivou esse mistério de forma muito inteligente. Acabou deixando um nó que não conseguimos desatar porque ela não quis que nós o desfizéssemos. Ao menos não por completo.

 

No livro, sente-se claramente a sua mão como escritora, o que torna a leitura fluida. Como você encontrou o equilíbrio entre informações baseadas em pesquisas sólidas e a dose necessária de ficcionalização dessas vidas narradas?

Eu sou jornalista, então eu administro esse equilíbrio no meu ofício. Mas, em qualquer tentativa de não-ficção, neste caso um perfil ou retrato biográfico, há uma subjetividade e um ponto de vista delimitados. Tentei me manter o mais fiel possível a documentos e entrevistas. Mas me permiti recriar cenas, sempre com base em dados, não a partir da literatura porque é impossível. E tentei não opinar muito nem lançar teorias. Exceto, é claro, quando eu avalio os contos. 

 

“A fúria” e “As convidadas” são os únicos livros de Silvina Ocampo disponíveis no Brasil no momento. Como você vê as duas obras na trajetória da escritora e o que mais gosta neles?

Acho que “A fúria” é o livro onde ela encontrou sua voz. No primeiro livro, “Viaje olvidado”, ela ainda estava se familiarizando com a escrita em espanhol, porque aprendeu francês e inglês antes do espanhol. E isso se nota em uma gramática estranha, às vezes repentina, e muito visual, muito influenciada pela pintura, eu acho (é estranho o que eu digo, mas elas realmente se parecem com pinturas). Em seu segundo livro, “Autobiografia de Irene”, ela tenta reproduzir a perfeição formal de Borges, e consegue, mas é o livro de uma excelente aluna. Em “A fúria” é como se ela tivesse, enfim, se desamarrado. Seus melhores contos estão lá, também os mais frescos, há a alegria de quem, acho, encontrou a própria voz. E os temas: o mórbido, a sensualidade, o levemente fantástico, a crueldade (especialmente das crianças), a classe, o fascínio pela oralidade e pela concisão. Adoro “As convidadas”, que segue o caminho de “A fúria”, mas histórias são mais refinadas, mais polidas, como se tivessem limpado aquela voz explosiva: há tramas transtornadas, mitos gregos, mulheres solitárias; é um universo próprio e extenso, com mais de quarenta histórias.   

 

No texto, você cunha a bem-sucedida expressão “monstro de três cabeças” para se referir ao aspecto simbiótico da relação entre Silvina, Adolfo Bioy Casares e Jorge Luis Borges. Esse jeito de ser devorou alguém?

Eu não acho. Se Silvina foi um pouco deixada de lado, foi em parte por causa de sua personalidade e em parte por ela ser mulher. Uma mulher rica e privilegiada, mas naqueles anos sua literatura não podia competir com a de Borges ou Bioy, entre outras coisas, porque era muito mais radical, além de sua condição de gênero.





 

Um dos muitos méritos de seu trabalho é mostrar que Silvina foi uma grande escritora, mas manteve uma dinâmica que não era simples com sua irmã Vitória, uma mistura de amor, respeito e ressentimento. Qual a maior dificuldade que enfrentou para se mover na vida da família Ocampo?

O silêncio. Como qualquer família muito rica, eles têm suas extravagâncias e relacionamentos complexos, mas preferem mostrar uma fachada sólida. Silvina quebrou um pouco isso. De qualquer forma, não cheguei muito perto da família para escrever o livro, exceto por meio de documentos. Poucos estão vivos e, às vezes, a família é mais um problema do que uma boa notícia. 

 

As histórias de Silvina influenciaram suas histórias e outras de escritores argentinos?

Acho que sim, mas especialmente nesta geração – e um pouco na anterior – com escritores que finalmente entenderam que ela não era apenas extravagante, mas que bebia do surrealismo, de algumas leituras dos Estados Unidos, gostava de Djuna Barnes, Baudelaire, até de Clarice Lispector. Lembro-me que uma grande escritora argentina, Hebe Uhart, que morreu anos atrás, quando era mais velha, me dizia: “Como era engraçada!”. E é verdade. Entre as novas gerações essa relação com uma realidade fragmentada e estranha é muito mais próxima e, como o humor negro, acho que pode ser observada em muitos escritores contemporâneos. 

 

Muito se diz que as histórias contemporâneas de escritores latinos são marcadas por elementos como o medo, o perturbador, o incomum. Nesse sentido, podemos considerar que a obra de Silvina Ocampo ainda é atual?

Sim. É um pouco do que eu disse antes. Em certo sentido, ela foi uma visionária, embora eu tenha certeza de que ela não procurou por isso; seu mundo interior era assim. E, sim, muito atual.





 

Como você vê o crescente interesse pela ficção produzida por mulheres latinas? Você consegue identificar conexões temáticas ou culturais nos livros desta geração?

Não. Acho que há muitas mulheres escrevendo e, finalmente, estão prestando atenção nelas. Mas o mais interessante, ao menos para mim, são as diferenças. Claro que há semelhanças que têm a ver com linguagem, tempo, experiências mais ou menos similares, mas acho que escritoras como Fernanda Melchor (autora de livros como “Temporada de furacões” e “Paradáis”) e Samanta Schweblin (de “Pássaros na boca” e “Distância de resgate”) não são nada parecidas uma com a outra. E isso é bom: Fernanda usa uma linguagem muito oral, muito “mexicana” e explora a violência com influências tanto de (William) Faulkner quanto de, talvez, Jim Thompson ou dos filmes slasher. Já Samanta é uma perfeccionista do estilo, muito borgeana e muito ocampiana, mas com histórias sempre tensas e que estão bem longe do explícito. Para mim, isso é o que interessa: há muitas mulheres que são escritoras notáveis e cada uma delas tem seu próprio mundo. Vão muito além de conexões geracionais e históricas.