Stefania Chiarelli *
Especial para o EM
Aurora foi amiga de Victoria que era irmã de Silvina. Que era casada com Bioy Casares, que era íntimo de Borges. A vida literária na Argentina ao longo do século 20 é misto de banquete e festim (quase) diabólico. A leitura da biografia “A irmã menor”, escrita por Mariana Enriquez sobre Silvina Ocampo (1903-1993) e o romance “As primas”, de Aurora Venturini (1921-2015) nos aproximam desse universo vibrante. Enriquez apresenta as escritoras ao leitor e à leitora do século 21 com grande talento, tanto no prefácio à edição brasileira de “As primas”, de Venturini, quanto no ensaio sobre Ocampo. Décadas depois de publicados pela primeira vez no país de origem, chegam agora as traduções que permitem ao público brasileiro fruir escritos tão peculiares.
Em “A irmã menor”, Enriquez coleta depoimentos, revisita diários, conversa com pessoas do convívio de Ocampo, frequenta lugares do passado. Escuta, pergunta, escreve. Resulta daí relato primoroso, com direito a um passeio pela vida intelectual de vários dos autores e autoras mais instigantes daquele momento.
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Seria razoável evitar a ideia de resgate, palavra que muitas vezes surge assim que se menciona um autor pouco lido ou desconhecido. Embora seja inegável certo apagamento de suas produções, Venturini e Ocampo não necessitam de salvamento ou condescendência: sua obra se sustenta com toda força e brutalidade. Talvez mais produtivo seja indagar por que ler as escritoras hoje, e em que medida continuam tão atraentes quanto atuais, momento em que uma nova geração de autoras latino-americanas utiliza a estética do insólito para compor suas tramas. Entre elas a própria Enriquez, além da argentina Samanta Schweblin e a equatoriana Monica Ojeda. Há uma linhagem pulsante em cena, cujas histórias nos causam, em igual medida, desconforto e atração.
Horror e humor
Aurora Venturini e Silvina Ocampo tinham especial interesse em escrever sobre famílias estranhas e monstruosas. Horror e humor caminham juntos, e suas narrativas nos convidam a desfrutar um universo nada ameno. Sobre as duas pairam inúmeras lendas e boatos: da primeira, a visão de fantasmas desde a infância e o cultivo de aranhas de estimação, entre outras excentricidades. Sobre a segunda, uma das mulheres mais ricas e extravagantes da Argentina, rumores que incluem clarividência e mistérios sobre a vida privada. Além do talento que as unia no campo da prosa literária do século 20, talvez se possa afirmar que ambas, cada uma ao seu modo, manipulam lembranças inventadas, na condição de pessoas “disfarçadas de si mesmas” – para empregar a feliz expressão utilizada por Victoria Ocampo ao resenhar “Viaje olvidado” (1937), primeiro livro da irmã Silvina, na revista Sur. Victoria era uma mulher de personalidade forte e dominadora, além de muito influente no mundo literário hispânico no início dos anos 1920, editora e fundadora da referida revista, principal publicação literária argentina. Bioy Casares a odiava, Silvina mantinha com ela uma relação de amor e implicância mútua.
Para se localizar na condição de mais nova de seis filhas de um clã numeroso, Silvina dizia se sentir a et cetera da família. De origem aristocrática e educada com preceptoras em casa, jamais foi à escola tradicional. Depois da morte do pai, passou uma temporada em Paris para estudar pintura e desenho com o artista italiano Giorgio De Chirico e com o mestre cubista Fernand Lèger. O interesse pela arte surrealista empresta outro sentido à sua obra, marcada pela visão de uma realidade alterada, em que o real surge deformado. No que concerne a vida literária, apreciava a reclusão, não frequentava eventos sociais, demorava a dar entrevistas sobre seus livros, em geral por escrito: “Não sou sociável, sou íntima”, afirmava.
Na biografia é possível acompanhar o mistério acerca da personalidade ambígua de Ocampo, que desdenhava a primavera: “Gosto do outono, das flores do outono, tem cores, é mais estético, mais delicado. A primavera é como uma pessoa muito rica que coloca todas as joias que tem. Já no outono há flores que se escondem”. Não por acaso, Clarice Lispector figurava entre os poucos autores por ela mencionados. Para a autora de “A hora da estrela” enviou livros autografados, evidenciando afinidade e um temperamento próximo.
Como Clarice, Silvina era tida como sedutora, irresistível, dona de inteligência única. Padecera horríveis ciúmes, ao viver casada por décadas com o escritor Bioy Casares, tão adorável quanto mulherengo. Eram um par e tanto, “os Bioy”, além de próximos de Jorge Luis Borges, um dos padrinhos de casamento, que por anos privou da intimidade do casal. A vida amorosa por ali era agitada e variada. Tudo um pouco verdade, nada totalmente verdade. Afinal, estamos no terreno pantanoso da memória e da invenção.
No Brasil, circulam o volume de contos “A fúria” (1959), publicado em 2019 e “As convidadas” (1961), em 2022. Considerada exímia contista, Ocampo cultivou o gosto pela experimentação, explorando situações inóspitas – criou muitas histórias com crueldade e assassinatos. Nelas, o espaço doméstico é cenário de ameaça, em que pais, mães, babás e tias trazem dor e destruição. Nunca se está seguro, nem mesmo diante de uma criança, personagem frequente em escritos que focalizam a infância como lugar da perversidade.
Em “A fúria”, relatos cruéis proliferam, em que crianças colocam fogo em outras, ou mesmo na própria mãe, sem que se faça presente nenhuma mostra de remorso. Traumas, sonhos e desejos são expostos de modo cru. Segundo Enriquez, seus contos são protagonizados por “crianças cruéis, crianças assassinas, crianças assassinadas, crianças suicidas, crianças abusadas, crianças pirômanas, crianças perversas, crianças que não querem crescer, crianças que nascem velhas, crianças bruxas, crianças videntes”, além de cabeleireiras, costureiras, preceptoras, clarividentes, corcundas e cachorros.
Enriquez destaca também que Ocampo aprendeu espanhol tarde e com dificuldade, uma vez que suas tutoras privilegiavam o ensino de outros idiomas. O fato de ter se tornado uma das maiores ficcionistas argentinas diz muito sobre a relação tortuosa com a própria linguagem. Alguns dos depoimentos coletados pela biógrafa ressaltam seu “ouvido apurado” para a fala coloquial. Nos textos ocampianos se faz presente a oralidade da região platense, incorporando a fala de classes sociais que não a sua, em um exercício profícuo presente em autores como Julio Cortázar e Manuel Puig.
Enriquez também sustenta que o fato de Silvina ter estado menos em evidência que a irmã e o próprio marido pode ter rendido à autora uma liberdade de escrita, na ausência de maiores pressões, justamente pela falta de reconhecimento. Hoje, sua obra recebe grande atenção dos estudos acadêmicos, mas nem sempre foi assim. Na época não contou com grande adesão do chamado leitor comum. Silvina obteve o aplauso dos pares, mas queria ter sucesso de público.
A escritora seguiu escrevendo durante décadas, quase até o fim da vida, quando sentiu os efeitos do mal de Alzheimer. Morreu aos 90 anos, e foi enterrada no cemitério da Recoleta, no jazigo familiar em que constam apenas os nomes das irmãs Victoria e Angélica, última morada coletiva dos Ocampo e sintoma de uma trajetória lacunar. Está eclipsado o nome da irmã menor, omissão imperdoável.
Nessa ciranda argentina, as mulheres viveram para escrever, e o fizeram até o fim: Aurora Venturini e Silvina Ocampo nos legaram uma literatura que revela a irrupção da estranheza, fraturando a realidade em mil estilhaços. Ler suas obras hoje é um deleite e um espanto.
* Professora e pesquisadora de literatura brasileira na UFF e autora do livro “Partilhar a língua – leituras do contemporâneo” (7Letras, 2022).
Trecho de “A irmã menor”, de Silvina Ocampo
“O mais comum dos lugares-comuns sobre Silvina Ocampo é considerar que ela ficou à sombra, apagada, diminuída por sua irmã Victoria, seu marido escritor, Adolfo Bioy Casares, e o melhor amigo de seu marido, Jorge Luis Borges. Que eles a ofuscaram. Mas é possível que a posição de Silvina tenha sido mais complexa. Aqueles que a admiram fervorosamente decretam sem dúvidas que foi ela quem escolheu esse segundo plano. Dizem que, dali, podia controlar melhor o que queria controlar. Que nunca se interessou pela vida pública, mas sim por ter uma vida privada livre e o menos escrutinada possível. Que, definitivamente, ela inventou seu mistério para não ter que dar explicações.”
“A irmã menor: um retrato de Silvina Ocampo”
- Mariana Enriquez
- Tradução de Mariana Sanchez
- Relicário Edições
- Coleção Nos.Otras
- 224 páginas
- R$ 44,15