Jornal Estado de Minas

PENSAR

Em 'As primas', Aurora Venturini relata brutais histórias familiares


 Stefania Chiarelli *

Especial para o EM

 

De origem latina, idem significa o mesmo, da mesma forma, igualmente. É palavra recorrente em “As primas”, de Aurora Venturini: sempre entre parênteses, o vocábulo surge como uma espécie de mote, a indicar as sucessivas tentativas e fracassos da protagonista de relatar sua história e dar conta das situações bizarras que lhe sucedem. No romance, acompanhamos o monólogo de Yuna Riglos, jovem de origem humilde na La Plata, Argentina, no início dos anos 1940. 





 

Sua família está marcada por casamentos consanguíneos, deficiências e limitações físicas de toda ordem: nela convivem a mãe, uma simples professora da escola local, a irmã Betina, presa a uma cadeira de rodas, e Nené, tia virgem, apesar de separada e rodeada de pretendentes. A esse núcleo se soma tia Ingrazia, que vive com o marido (e primo) Danielito, pais de Carina, jovem com seis dedos, e sua irmã Petra, uma anã que desde a adolescência se prostitui com homens da cidade.

 

“Minha família era muito monstruosa. É o que conheço”, declarou a autora em entrevista sobre a própria obra, desde sempre povoada por tipos estranhos e deslocados. Em “As primas”, Venturini recupera passagens biográficas de sua infância na província argentina. Sem meias palavras, em tom muitas vezes debochado, relata um universo frequentado por gente esquisita, a começar por si mesma. Ciente de sua limitada capacidade cognitiva, Yuna é dotada de extrema sensibilidade, pintando desde criança toda sorte de papéis e papelões que cruzam seu caminho. Neles, conta as brutais histórias familiares - um “circo extravagante” - com tinta e pincel. Por suas criações, passa a obter reconhecimento, e aos 18 anos consegue vender alguns quadros, com o apoio de um professor que a convence a estudar belas-artes e se interessa desde o início pelos trabalhos. 

 

Uma das incontáveis belezas do romance se situa na proposital confusão entre polos, que alternam sem transição dor e glória, riso e lágrima. Yuna retrata em minúcias as deficiências da irmã, olhando sem medo a fisicalidade dos corpos. Sangue, tripas e excrementos estão por toda parte nessa tragicomédia. Dirigindo-se ao leitor, explicita na escrita a grande dificuldade de expressão que enfrenta, causando sensação de vertigem na leitura de um texto quase desprovido de pontuação:Vou tratar de aprender e pôr vírgulas e pontos porque tudo o que escrevo desmorona como se virasse em cima de mim um prato cheio de macarrão sopa de letrinhas e talvez o leitor sinta o mesmo mas não dou conta de tudo de uma vez e também tenho que aprender a questão das maiúsculas e acentuações eu terminei o sexto ano e graças à minha capacidade artística agora frequento concertos, reuniões de artistas e já ganhei vários prêmios de pintura.





 

A cada tanto, explica que o uso de determinada palavra é decorrência da consulta ao dicionário, espaço em que colhe avidamente os sentidos que lhe escapam. Uma coisa é se expressar com o léxico da oralidade; outra, domesticar a linguagem por escrito. Yuna se espanta por não saber o sentido dos “vocábulos finos” e se lança de peito aberto na tentativa de transmutar em texto as palavras faladas que lhe saltam da boca. O resultado é uma saborosa mistura entre os dois registros. Como sustenta a escritora Mariana Enriquez no prefácio da edição brasileira, ela escreve “contra a linguagem, contra as convenções da escrita, com o que lhe resta de uma oralidade precária”.

 

Dominar as palavras caminha em paralelo ao ofício de pintar, modo de reagir a tudo que a sufoca. Assim como a narradora, buscamos fôlego para respirar dentro dessa sensação de quase claustrofobia, que em tudo se relaciona ao ofício de narrar a casa monstruosa em que os genes “desengonçados” espiam de dentro da aparente tranquilidade doméstica. Histórias de assassinato, estupros, abortos e pedofilia se sucedem, homens abusadores vêm e vão, maltratando essas mulheres na triste morada de subúrbio. Eles carregam nomes autoexplicativos, como José Camaléon e Cacho Carmelo Spichafoco.

 

Yuna pinta para não morrer, e a imagem de expelir algo faz todo sentido aqui: “pintei as sombras que não pude evitar pois carrego dentro de mim tantas sombras que quando me angustiam (idem) eu as expulso em cima das minhas pinturas”. Em uma passagem amarga do romance, a protagonista afirma ter consciência de “se aperfeiçoar ao máximo para sobreviver”. A pobreza, a secura do afeto materno e o machismo da vida provinciana contribuem para tornar mais miserável essa experiência. Um pouco à semelhança da trajetória da pintora mexicana Frida Kahlo, Yuna enfrenta sua caminhada transformando as muitas dores em beleza, na sua forma de expressão mais radical. Uma arte urgente, diante das desgraças que rodeiam essas mulheres. Não à toa, um dos homens que a cerca ameaça cortar sua língua com uma navalha sevilhana caso calunie a honra familiar.





 

Nascida em La Plata, Venturini estreou oficialmente na literatura somente aos 85 anos com “As primas”, pelo qual recebeu em 2007 o prêmio Nueva Novela do jornal Página/12, obtendo dos jurados (dentre eles Alan Pauls e Rodrigo Fresán) o reconhecimento por sua “originalidade desconcertante”. Também poeta, tradutora e professora, antes desse reconhecimento já escrevera dezenas de livros, tendo se exilado depois do golpe de 1955 em Paris, cidade em que foi próxima de Violette Leduc e dos existencialistas. Na ocasião, Venturini assinou o livro sob o pseudônimo de Beatriz Portinari, curiosa escolha para se identificar em uma obra que dialoga com as artes plásticas, ecoando o nome de nosso grande criador e seu contemporâneo. Em termos de produção literária, a autora tinha como pares as irmãs Silvina e Victoria Ocampo, além de Sara Gallardo, grandes nomes da prosa de autoria feminina do século 20, escritoras que nem sempre receberam o mesmo espaço e reconhecimento dos conterrâneos Bioy Casares e Borges, para ficar em poucos nomes.

 

Dentro desse diálogo entre passado e futuro, talvez tenha sido impossível para a escritora deixar Yuna Riglos para trás. Então escolheu repetir o idem em outro sentido: foi preciso fazer de novo, mesmo que em diferença. Em 2020, Liliana Viola, sua herdeira literária, publicou postumamente o romance “As amigas”. Nele, Venturini retoma a história da pintora, agora com 80 anos. O livro ainda não foi traduzido no Brasil, mas desde já deixa água na boca, por imaginar como será o reencontro com essa ousada protagonista, tantas décadas depois. Em todo seu desamparo e desejo de ultrapassar o mundo hostil que a circunda, Yuna Riglos nos enfeitiça. É bom prestar atenção a uma mulher armada de palavras e pincéis. (SC)

 

"As primas", de Aurora Venturini

Assim sendo me vieram inspirações enormes e eu sonhava os acontecimentos vividos transformando-os em figuras cada vez mais coloridas e belas que dentro da minha imaginação se moviam e conversavam comigo me obrigando a tirá-las de dentro e despejá-las nos papelões e nas telas e eu era tipo um ser estranho e dependente das ordens que aquelas formas ou figuras mandavam tiranicamente e que se eu não respondesse elas mordiam meu cérebro e meu coração com dentes de vidro quando a vivência tinha algum significado e exigia ser vertida numa tela ou papelão.

 

“As primas”

 

 * Professora e pesquisadora de literatura brasileira na UFF e autora do livro “Partilhar a língua – leituras do contemporâneo” (7Letras, 2022).