“(...) e minha voz
como assim subtraída?
gosto de pedra
na saliva em minha língua
as palavras me emparedam
onde houvera minha boca (...)”
“Bloqueio”, de Helena Parente Cunha
Ao lançar-se à escrita, driblam a “cilada das palavras” e em escavação ao fundo do poço, desafiam “o mundo que não está à tona”. E se estas palavras de Clarice Lispector remetem ao ato de coragem associado ao perigo de escrever em garimpo ao que está oculto; para as mulheres escritoras é também uma viagem de conquista da identidade, de presença da voz e de luta contra o selo do apagamento de uma outra forma de viver e de sentir.
Se Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Cecília Meireles e Raquel de Queiroz, para amantes do espírito, - pois sempre haverá aqueles que escolhem ser toscos - alcançam a visibilidade da imortalidade; no inventário literário nacional é absoluta a prevalência masculina de ótica patriarcal. A “amnésia” - ou apagamento - literário ronda a produção feminina. Quem é Teresa Margarida Silva e Orta? Quem são Liria Porto, Ruth Guimarães, Helena Parente Cunha, Ana Cristina Cesar, Adélia Prado, entre outras centenas de mulheres brilhantes, resgatadas por Nelly Novaes Coelho, no “Dicionário Crítico de Escritoras Brasileiras” (Escrituras, 2002) e por Rita Terezinha Schmidt em “Mulheres e Literatura: (Trans)Formando Identidades” (Pallotti, 1997).
Ainda hoje, para a mulher, o ato da escrita também representa gesto intelectual de resistência ao olhar hegemônico masculino que, entre outras coisas, versa sobre expectativas de papeis sociais, cultura política, relações de domínio e a distribuição do poder na sociedade. E é pensando em contribuir com a visibilidade da literatura feminina, que as escritoras Claudia Lage e Helena Machado lançaram o projeto “O mundo não está à tona”, - um elo entre aquelas que escrevem hoje e aquelas que escreveram no passado, especialmente aquelas que deixaram a sua marca entre os séculos 19 e 20. Em formato audiovisual, com episódios curtos, a escritora homenageada é lida e comentada por uma escritora, pesquisadora, crítica, professora ou jornalista contemporânea.
Há um fio conceitual no projeto, que conduz o diálogo, destinado a responder: “Quando você começou a ler mais mulheres e como seria seu olhar para o mundo se as tivesse lido antes?” Já foram lançados seis episódios: Ruth Guimarães, pela voz de Nara Vidal; Stella do Patrocínio, apresentada por Stephanie Borges; Helena Parente Cunha, comentada por Renata Belmonte; Liria Porto, descrita por Adriane Garcia; e Ana Cristina Cesar, apresentada em dois episódios, por Morgana Kretzmann e Cidinha da Silva. Nesta sexta-feira (14/04) será publicado o vídeo da crítica literária e escritora Luciana Araujo Marques falando sobre a escritora Marilene Felinto. E, na próxima semana, a professora da UFF e pesquisadora Euridice Figueiredo reage à obra de Heloneida Stuart.
Os episódios estão disponíveis no Canal Espaço Desenredo do YouTube. O projeto pode ser acompanhado pelos @desenredo.narrativas no Instagram e no Facebook.
Entrevistas/Claudia Lage e Helena Machado
Carlos Marcelo
Leituras femininas
MORGANA KRETZMANN lê Ana Cristina Cesar
"A Ana Cristina Cesar, assim como tantas outras escritoras, sofreu um forte apagamento do seu trabalho, na sua época, no Brasil. Como tantas outras e como muitas de nós ainda passam por isso."
NARA VIDAL lê Ruth Guimarães
"Por que cargas d'água essas mulheres não tiveram a mesma possibilidade e oportunidade de mostrar o trabalho? Do trabalho delas serem falados, comentados, discutidos, estudados. Isso para mim é uma questão por si só muito complexa, muito problemática e que de fato merece esta atenção, esta reflexão."
STEPHANIE BORGES lê Stella do Patrocínio
"Começaram a ficar muito claras pra mim questões como a origem, a relação entre o corpo da mulher e a linguagem, sobre a subjetividade da mulher negra, que eu só fui começar a prestar atenção quando li as escritoras negras. Quando li Stela do Patrocínio foi especialmente forte essa questão da relação do corpo e linguagem."
RENATA BELMONTE lê Ana Cristina Cesar
"Nós que somos mulheres de gerações muito diferentes (se referindo a Helena Parente Cunha), a gente precisa saber que aquela que tá lá na frente tem muito a dizer sobre o que é ser uma mulher e ser uma escritora."
ADRIANE GARCIA lê Liria Porto
"O fato de lermos só homens, com raras exceções, acaba nos dando uma visão de mundo que não é do mundo real, é só de uma parte do mundo, a literatura é mais completa quando todas as vozes podem ser ouvidas. E o mundo também é mais completo, né?"
CIDINHA DA SILVA lê Ana Cristina Cesar
"É importante que a literatura produzida por mulheres esteja disponível nas escolas, especialmente nas escolas públicas, que para muitas pessoas são a conexão privilegiada que elas têm com o mundo cultural. Que a gente tenha esta possibilidade, de descobrir um poema que nos acompanhe a vida inteira."
Entrevistas/Claudia Lage e Helena Machado
"O silenciamento é resultado da lógica dominante no cânone masculino"
Carlos Marcelo
Como surgiu o projeto e qual o objetivo?
Claudia Lage: Foi em 2021, durante a pandemia. Em meio ao horror e a tanta destruição que vivemos, inclusive no sentido cultural, senti a necessidade de fazer alguma coisa no movimento oposto, contribuir de alguma forma. Falei com a Helena, que, para minha alegria, topou fazer o projeto comigo. Essa questão das escritoras das décadas passadas que não receberam a atenção, espaço e reconhecimento que mereciam já era uma reflexão para mim. Lembro de ter lido a Julia Lopes de Almeida, muitos anos atrás, e ficado perplexa com a força da sua escrita, com a coragem das suas temáticas. Ocorreu o mesmo com a Maria Firmina dos Reis, e tantas outras que eu e a Helena fomos pesquisando, especialmente no livro da Nelly Novaes Coelho. Sabemos que esse silenciamento não é por acaso, é resultado de uma lógica dominante de um cânone masculino. É urgente o resgate da contribuição das escritoras brasileiras para a nossa vida cultural, como também de suas vozes e de suas histórias.
Helena Machado: Quando comecei a escrever meu primeiro romance, em 2016, eu me perguntava se as mulheres sempre escreveram, mas deixavam seus textos em gavetas, ou se não escreviam devido a tantos outros afazeres destinados a elas, se não tinham vontade ou não se davam essa permissão. Mas eu nunca tinha ido em busca dessas respostas. Eu e a Claudia sempre conversamos muito sobre a escrita das mulheres e falávamos em fazer algo juntas, e aí, durante a pandemia, ela veio com essa ideia brilhante de iniciarmos esse resgate criando uma conexão entre as escritoras do passado e as de hoje. Eu topei na hora, claro. Então, começamos a formatar o projeto que tem justo esse objetivo: trazer à tona a existência e a obra dessas escritoras brasileiras pouco lembradas ou esquecidas.
Como se estabelece o elo entre as escritoras contemporâneas e as do passado?
Claudia: Pelo gesto de olhar para trás, para as escritoras que vieram antes de nós, e enxergar e reconhecer o que fizeram. Por isso pensamos em convidar mulheres (escritoras, jornalistas, críticas, professoras e pesquisadoras) do meio literário atual para ler, pensar e refletir sobre o que essas mulheres escreveram no passado, na intenção de formar esse elo, e também nos reconectarmos a elas. A conexão feita antes, no fluxo dessa lógica e cânone masculino, é geralmente com escritores homens, sendo as escritoras exceções. Fomos formadas assim, nesse pensar do cânone masculino, inclusive nas temáticas. Rosa Montero fala que falta o sangue feminino na literatura, falta o nosso corpo e experiência escritos por nós, mas podemos reformular e mudar isso, essa reflexão é também a nossa proposta.
Helena: Nós fizemos uma pesquisa, a partir do “Dicionário de Escritoras Brasileiras”, da Nely Novaes Coelho, e selecionamos algumas autoras cujas obras poderiam ser acessadas — a maioria não tem sequer registro de catalogação. Dividimos as escritoras por décadas e, a partir daí, começamos a convidar nossas colegas contemporâneas para escolherem — da lista ou sugerindo algum outro nome que não havíamos mencionado —, alguma escritora do passado que gostariam de homenagear, falando sobre ela e lendo um trecho de alguma obra, e também refletindo sobre as questões envolvendo a escrita e a leitura de mulheres.
Quando vocês começaram a ler mais mulheres e como seria o olhar para o mundo de vocês se as tivesse lido antes? Quais foram as autoras que mais marcaram a formação de vocês como escritoras?
Claudia: Antes de entrar no curso de letras da UFF, eu lia repetidamente Clarice Lispector, Hilda Hilst, Cecília Meirelles, Katherine Mansfield, Virginia Woolf e Anais Nin, escritoras maravilhosas, mas parecia que eram as únicas. Então, na UFF, tudo mudou quando fui aluna da Sonia Torres e da Cyana Leahy, que na década de 90 já tinham essa proposta, de ler mulheres. Cyana levou Carolina Maria de Jesus para a sala de aula, algo improvável e pioneiro na década de 90. Lembro também ela lendo Olga Savary, Renata Pallotini e Marly de Oliveira para a gente, poetas excelentes que não conhecíamos. E a Sonia Torres apresentou uma série de escritoras americanas incríveis, indo além de Fitzgerald e Hemingway. Foi quando li “The awakening”, da Kate Chopin, e também a Doris Lessing. Foi perturbador e libertador ler essas mulheres todas falando de experiências e perspectivas impossíveis de encontrar em livros escritos por homens. É como se nós não estivéssemos lá, de verdade, de carne e osso, no que eles escreviam, apenas uma imagem do modo como as mulheres são vistas e retratadas. Foi uma tomada de consciência perceber que nossas experiências são importantes, que deviam ser escritas (por nós) e lidas (por todos), e que elas entram na categoria do universal, porque são experiências humanas. Essa tomada de consciência me levou a escrever meus dois romances, “Mundos de Eufrásia” e “O corpo interminável”, que fala sobre as experiências femininas em sistemas opressores, patriarcais, e talvez eu não tivesse a coragem de escrevê-los, talvez tivesse sido assombrada pelo “Anjo do lar”, como diz a Virginia Woolf, achado que nada daquilo era tão importante assim, se não tivesse lido tantas escritoras, o que começou na faculdade, e se intensificou nos últimos 10 anos.
Helena : Não tem nem dez anos que comecei a ler mais mulheres, foi por volta de 2015, quando iniciei a leitura de livros de escritoras brasileiras de uma geração anterior a minha, como a Carola Saavedra, a Claudia Lage, Tatiana Salem Levy e Adriana Lisboa. Até aí, da minha formação como leitora faziam parte basicamente a Clarice, sempre, Hilda e Lygia. Em uma parte da juventude li muito Agatha Christie e, depois, Anais Nin, Virginia Woolf e Anne Sexton. Se eu tivesse lido mais mulheres certamente eu veria o mundo de maneira muito diferente, acho que começando por aceitar mais a mim mesma, meus pensamentos sinuosos, e talvez tivesse me permitido escrever muito antes do momento em que tomei coragem. Provavelmente também aceitaria meu desejo por falar determinados temas que eu própria considerava menos importantes porque se referiam ao universo feminino, eu caía no papo de que os homens falam sobre temas universais e que para ser uma escritora boa eu não poderia falar de certas coisas. No meu romance, por exemplo, comecei a escrever sobre bulimia e anorexia, e em dado momento me brequei pensando que ninguém queria ouvir falar sobre distúrbios alimentares. Foi a Carola, no grupo de estudos que ela criou apenas com escritoras mulheres, que me perguntou: quantas vezes você já ouviu falar sobre isso? Se eu tivesse lido mais mulheres desde sempre tudo seria diferente. Na vida e na arte.
Sobre as autoras do projeto
Claudia Lage nasceu no Rio de Janeiro, é escritora e roteirista. Formada em Teatro pela Unirio, em Letras pela UFF e mestre em Literatura pela PUC-Rio, é autora do livro de contos "A pequena morte e outras naturezas" e do romance "Mundos de Eufrásia", finalista do Prêmio São Paulo de Literatura de 2010. Em 2013, lançou o livro "Labirinto da palavra", com ensaios-crônicas sobre literatura, que, em 2014, recebeu o Prêmio de Literatura de Brasília e foi semifinalista do Prêmio Portugal Telecom (atual Oceanos). Em 2019, lançou o romance "O corpo interminável", vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura na categoria de Melhor Romance de 2020. Como roteirista, trabalhou na TV Globo e na Conspiração Filmes, entre outras produtoras. Ministra cursos de roteiro e criação literária no Rio de Janeiro. É doutoranda em Literatura Comparada na UFF.
Helena Machado nasceu no Rio de Janeiro. É escritora, dramaturga e roteirista. Bacharel em Comunicação Social pela UFRJ e atriz formada pela CAL. Seu romance de estreia, "Memória de ninguém" (Editora Nós/2022), venceu o Prêmio Toca e teve o primeiro capítulo apresentado na Revista Granta. Dramaturga premiada pelas peças "Sexton" (5o seleção Brasil em Cena - CCBB/MINC) e "Aos Peixes" (Festival de Teatro do Rio de Janeiro). Contos seus foram publicados nas revistas Pessoa, Capitolina, Revera, Mapas do Confinamento, entre outras. Co-roteirizou as séries "Insônia" (Canal Brasil), "Essa História dava um filme" (Multishow), "Punga" (estreia no ano que vem no CineBrasil TV), e o longa-metragem "Nau de Urano" (Lume Filmes/ Ancine, em pré-produção).