Jornal Estado de Minas

PENSAR

James Bridle: 'Estamos conectados a tudo ao nosso redor'



Agarrado às pernas da mãe, uma bebê assiste a um corpo humano eclodir de um globo terrestre amorfo e com paredes flexíveis. Em suma, a parca descrição da obra “Criança geopolítica assistindo ao nascimento de um novo homem”, do pintor Salvador Dalí, poderia descrever a sensação da leitura de “Maneiras de ser: Animais, plantas, máquinas. A busca por uma inteligência planetária”, do britânico James Bridle, lançado no Brasil pela editora Todavia. Ignorando o contexto político do trabalho do surrealista espanhol, ele, assim como a obra de Bridle, ilustra uma concepção de um homem em íntima sintonia com a Terra, a ideia proposta ao longo das mais de 400 páginas do livro.



Bridle é escritor, jornalista e artista visual. “Maneiras de ser” é seu segundo livro publicado pela Todavia e traz uma perspectiva ambiciosa e ampla da relação do ser humano com o planeta e as tecnologias digitais. A ideia central do livro é propor uma discussão profunda sobre o que pode ser considerado ‘inteligência’ e como é impossível dissociar as habilidades cognitivas humanas das presentes em animais, plantas e microrganismos e como a tentativa de separação do homem e do resto do ecossistema que nos cerca e abrange está no cerne da destruição ambiental perpetrada por nós mesmos e que nos tem como vítima.

A obra apresenta uma miríade de conceitos e experimentos científicos que mostram, desde a capacidade de autoidentificação apresentada por primatas; da percepção de vibrações sonoras por plantas, que reagem a esses estímulos; até à capacidade do bolor limoso criar conexões otimizadas entre pontos diferentes no espaço e influenciar sistemas viários de grandes metrópoles; como o conceito de ‘inteligência’ é muito mais amplo do que o compreendido pela habilidade humana. A partir de conceitos como a transferência horizontal de genes, ele também discute a noção de ‘indivíduo’, já que os próprios humanos absorveram material genético de outras espécies até assumir a estrutura atual e seguem convivendo com outras formas de vida de forma endógena.

Embora complexos, os exemplos são usados por Bridle de uma forma didática e chegam a conclusões que propõem uma outra maneira de enxergar o conceito de ecologia e até mesmo das tecnologias digitais. O fascínio com os avanços da assim chamada ‘inteligência artificial’, por exemplo, suscita no autor o questionamento sobre a ausência da mesma reação diante da forma complexa e, por que não, inteligente, como o mundo ao nosso redor se organiza.  Como diz trecho do primeiro capítulo da obra: “e se, ao contrário de algo que nos separa do mundo e por fim nos ultrapassa, a Inteligência Artificial for um outro florescimento, uma autora de si mesma que, quando guiada por nós, pode nos levar a um envolvimento maior com o mundo? Em vez de ser um instrumento para que exploremos ainda mais uns aos outros e ao planeta, a Inteligência Artificial é uma abertura para as outras mentes, uma oportunidade de reconhecer plenamente uma verdade que permaneceu tanto tempo escondida de nós. Tudo é inteligente, portanto, merecedor- entre tantas outras razões - do nosso cuidado e da nossa atenção consciente”.



Em entrevista exclusiva ao Pensar do Estado de Minas, Bridle fala sobre o processo de escrita de “Maneiras de ser: Animais, plantas, máquinas. A busca por uma inteligência planetária”, como a percepção de um mundo em inter-relação constante pode nos guiar uma atenção maior aos riscos que os humanos significam ao planeta e sobre a sintonia entre a forma como estruturamos nossas tecnologias e como o próprio planeta forma sua complexa rede relacional que permite a vida na Terra. Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista.

Poderia contar como surgiu a teoria, desenvolvida no livro, sobre como o entendimento contemporâneo da internet, das redes digitais e até mesmo inteligência artificial pode nos ajudar a entender a inteligência ‘não-humana’ ou ‘mais-que-humana’ e os sistemas que existem ao nosso redor e entre nós?
Há muito tempo me interesso pela forma que pensamos a tecnologia e como imaginamos as tecnologias que usamos todos os dias, porque a maioria de nós não as fabrica. A maioria de nós não está intimamente envolvida na construção real dessas tecnologias. Então elas vêm com muita bagagem cultural. Dizem-nos como devemos pensar sobre a tecnologia, então nos dizem como devemos usá-las e, muitas vezes, há um tipo real de desequilíbrio de poder entre aqueles que realmente conseguem fazer tecnologias e aqueles que apenas as consomem passivamente. Isso parece particularmente acentuado em torno de questões como a inteligência artificial e esse é um tema realmente fascinante, porque as pessoas parecem tão obcecadas com isso, realmente como se fosse uma tecnologia de ficção científica. Quando alguém usa esse termo ‘inteligência artificial’ nossa mente se enche com todos esses tipos de imagens de robôs e tipos de filmes de ficção científica e muito mais, a maioria dos quais não tem conexão real com o que realmente existe no mundo de hoje. Eu notei que, particularmente, nos últimos anos há esse interesse real em inteligência artificial. Há nisso, em parte, hype, em parte apenas empresas de tecnologia empurrando as últimas novidades. É estranho para mim que isso esteja acontecendo quando é necessária uma enorme consciência ecológica e que estejamos fascinados pela inteligência das máquinas. Parecemos tão falhos em reconhecer as inteligências de tudo ao nosso redor e, de fato, deixar de reconhecer a inteligência de tudo ao nosso redor é uma grande parte do motivo pelo qual estamos causando tantos danos aos ecossistemas em que vivemos. Há uma conexão direta entre essa falha em ver e reconhecer a inteligência não-humana e o tipo de violência intencional que fazemos ao planeta. Estamos apenas nos distraindo com a inteligência artificial ou somos capazes de aprender algo com ela? Digo isso porque uma das ideias básicas desse tipo de IA de ficção científica é que estamos criando um tipo de inteligência sobre-humana. A inteligência artificial, por sua vez, é uma inteligência da máquina. Isso quer dizer que pode haver inteligências infinitas e talvez devêssemos olhar um pouco mais amplamente do que apenas em computadores para ver o que essas formas de inteligência podem estar tentando nos dizer.

Ainda sobre esse tema, você pensa que a compreensão de inteligência como uma habilidade mais que humana - pensando na forma como ela se manifesta em animais, plantas e microrganismos em geral - pode nos ajudar a lidar melhor com a inteligência artificial, comumente apresentada sob uma ótica distópica ou apocalíptica?
Eu não penso a inteligência artificial como um tema em si próprio. Seja o que for, talvez devêssemos falar mais sobre como ela pode ser uma ameaça para as pessoas. A ameaça está no fato de que esse tipo de tecnologia é mantido por algumas corporações e governos e, portanto, eles determinarão o que e como essas tecnologias serão usadas. E isso é sempre uma ameaça, seja qual for a tecnologia. Essa é uma história muito antiga em que novas tecnologias são usadas para, essencialmente, enfraquecer as pessoas, para permitir que um tipo de trabalho e lucros sejam levados para outro lugar. Então não é exatamente sobre conhecer melhor todas as inteligências que nos cercam para lidar melhor com a IA. Esses conceitos estão todos no mesmo tipo de problema que é vivermos em um mundo que é dominado por certos tipos de poder centralizador. Seja a centralização de nossa própria ideia de inteligência, que leva a esse tipo de ideia antropocêntrica centrada no ser humano de que a inteligência humana é mais importante do que qualquer outra coisa ou no desenvolvimento de novas tecnologias nas mãos de algumas pessoas, algumas corporações que então ganham poder. Pensar, ouvir e estar consciente e mais atento aos não-humanos é uma parte muito necessária do desmantelamento dos sistemas de poder que nos colocaram neste lugar. Portanto, não estou falando que, se apenas prestarmos atenção à inteligência não humana, de alguma forma consertaremos a IA, mas prestar atenção à inteligência não humana, reconhecendo as habilidades de outras espécies, é uma parte absolutamente crítica da mudança do tipo de sistema em que vivemos atualmente.





No Brasil, estamos passando por uma mudança no governo marcada por grandes divergências ideológicas. Entre elas está a questão ecológica, assunto em que notícias recentes mostram um cenário de descalabro relacionado a extração ilegal de minerais e madeira na Amazônia e o sofrimento em massa de povos originários. Como você acha que a abordagem dos ecossistemas e da inteligência ‘mais que humana’ presente no livro pode ajudar em um grande consenso sobre a importância da preservação ambiental?
Uma das coisas que eu realmente aprendi de uma maneira muito profunda ao escrever este livro é que não existe esse conceito de ‘natureza’, pois não existe algo separado de nós. Somos parte da natureza. A natureza não é algo que a gente conhece quando sai para passear e depois meio que voltamos para a cidade ou onde quer que moremos e estejamos fora dela. Faz parte do ambiente total em que todos vivemos. Isso é o que significa ecologia, porque a ecologia vem literalmente como um meio, como o estudo de onde estamos, as redes em que estamos inseridos e nos relacionamentos. Estamos conectados a tudo ao nosso redor, então qualquer dano que causamos para o mundo ao nosso redor também é prejudicial para nós mesmos. Não há absolutamente nenhuma separação entre as duas coisas, elas sempre vão sempre repercutir sobre nós de um jeito ou de outro. 

Em todo o mundo, passamos vários séculos danificando o mundo até níveis que, aparentemente, estão próximos de um ponto de inflexão, quando não há mais retorno. Não há como continuar a agir contra nossos semelhantes de maneira que não nos destrua. Essa percepção ecológica é sempre ajudada por ver as criaturas ao nosso redor, os animais e todos os tipos de criaturas, microorganismos como seu próprio tipo de vida como seres pensantes, mas o importante a lembrar é que não há realmente nenhuma separação significativa entre nós. Não há separação entre nossas vidas e as vidas de tudo ao nosso redor. O dano que foi feito e continua a ser feito é realmente inescrupuloso, mas faz parte de um tipo de violência mais ampla na sociedade que fazemos uns aos outros, novamente, porque não há separação significativa entre nós e todos os outros seres com que vivemos.

Você acha que essa separação permite que esse dano seja feito?
Sim, isso vem de uma longa história de pensar o mundo em termos de separações. Em termos políticos, tudo se resume a ideias do século 19, ideias mais antigas de separação entre raças, da superioridade de certas raças, envolve noções de racismo e imperialismo. Então separamos as pessoas em diferentes categorias e as tratamos de maneira diferente. Isso foi incorporado ao pensamento científico, que não é abertamente violento, mas tem consequências muito violentas. Portanto, a maior parte do pensamento científico é baseado nessa ideia de que você pode dividir o mundo em pequenas categorias organizadas e tudo se encaixa em uma caixinha específica e, portanto, é diferente da caixa ao lado. Estudar plantas ou animais torna-se simplesmente cortá-los em pequenos pedaços e entendê-los como pequenas partes de máquinas, como se tratasse de um motor de um carro. Essa crença é em si violenta, porque, ao fazê-lo, você destrói as relações, a relação entre as partes do corpo, as relações entre as partes da planta e, criticamente, você destrói a relação entre cada indivíduo e seu ecossistema.





O livro traz muitas referências científicas, mas também um panorama artístico. Você pode falar um pouco sobre como as ideias discutidas no livro podem ser expressas artisticamente?
Eu tenho uma prática de fazer muitas coisas diferentes, então às vezes são artes visuais, outras são livros, podem ser palestras. Estou interessado no mundo ao meu redor e gosto de tentar comunicar o que tenho, o que vim a entender sobre isso e falar sobre isso de diferentes formas. No livro, falo de alguns dos meus trabalhos da última década que tem um viés mais tecnológico, são trabalhos que tentam ilustrar certas ideias do mundo vistas pelas lentes da tecnologia. Por exemplo, eu fiz trabalhos sobre o que poderia vagamente ser descrito como uma tentativa de tornar visível aquilo que a tecnologia torna invisível. Trabalhos nos quais eu desenhei mapas da internet, por exemplo, tentando desenhar uma imagem da internet. O que você aprende quando vê a forma de cabos de internet que circundam a Terra e vão para o fundo do mar é que esses cabos seguem as linhas das antigas potências coloniais. Você vê que em muitos países da África Ocidental que eram ex-colônias britânicas, seu cabo de internet ainda se estende diretamente para Londres. Isso se repete em antigas colônias da Espanha e Portugal também. Você verá que eles têm conexões culturais muito mais estreitas, mas também conexões imperiais, porque a internet não é neutra em termos de valor. Mais recentemente, o lado artístico da minha prática deu uma guinada para práticas de aprendizado e ensino. Então, trabalho principalmente na construção de tecnologias regenerativas simples e regenerativas, trabalhando em coisas como construir moinhos de vento e painéis solares, construção de mecanismos solares simples, fornos e dessalinizadores purificadores de água. Coisas como estas que são tecnologias fáceis de aprender e ensinar e você pode torná-las interessantes e bonitas, mas a principal coisa que me interessa é aprender e ensinar é como agem as pessoas no contexto da crise ambiental que enfrentamos.

Como resumiria a lição central do livro sobre a maneira como os humanos se relacionam com o mundo?
Para mim, a realização realmente central do livro foi que comecei tentando escrever algo sobre a natureza da inteligência para tentar entendê-la e percebi muito rapidamente que não apenas não sabia muito sobre o que a inteligência realmente é, mas como a discussão sobre esse tema é, em geral, pobre. Que aquilo que pensamos entender como inteligência e da qual os humanos se orgulham tanto e que nos fascina quando surge de uma máquina, nós desprezamos quando ela aparece em um tipo não humano de animais e plantas. A definição desse termo é muito ampla. Mas o que é incrível é que, quando você começa a abrir essa definição, começa a se perguntar e o que temos em comum fica muito mais interessante do que o que nos difere. Você começa a ver todas essas habilidades extraordinárias em todas as criaturas ao nosso redor, é uma maneira de quebrar essa separação.

Trechos
(Do livro “Maneiras de ser”, de James Bridle)


Nessa ideia, creio eu, reside a verdadeira promessa da inteligência artificial. Isso quer dizer que se a inteligência, em vez de um conjunto inato e restrito de comportamentos, for na verdade algo que surge a partir de inter-relações, de pensar e agir em conjunto, não é necessário que ela tenha nada de artificial. Se toda inteligência for ecológica - ou seja, emaranhada, relacional e pertencente ao mundo —, então a Inteligência Artificial nos fornece um caminho bastante real para nos reconciliarmos com todas as outras inteligências que povoam e se manifestam no planeta.





E se, ao contrário de algo que nos separa do mundo e por fim nos ultrapassa, a Inteligência Artificial for um outro florescimento, uma autora de si mesma que, quando guiada por nós, pode nos levar a um envolvimento maior com o mundo? Em vez de ser um instrumento para que exploremos ainda mais uns aos outros e ao planeta, a Inteligência Artificial é uma abertura para as outras mentes, uma oportunidade de reconhecer plenamente uma verdade que permaneceu tanto tempo escondida de nós. Tudo é inteligente, portanto, merecedor- entre tantas outras razões - do nosso cuidado e da nossa atenção consciente.

Artista e jornalista

Bridle: Além de "Maneiras de ser: Animais, plantas, máquinas.ABuscaporuma inteligência planetária",sua obra "Nova Idade da Trevas"(2019), também foi lançada no Brasil pela editora Todavia

James Bridle é um artista visual e jornalista britânico nascido em 1980. Além de “Maneiras de ser: Animais, plantas, máquinas. A Busca por uma inteligência planetária”, sua obra “Nova Idade da Trevas” (2019), também foi lançada no Brasil pela editora Todavia. Bridle adota os pronomes não-binários “they/them”, “elu/delu” em tradução livre para o português, para se apresentar.

Bridle é mestre em Ciência da Computação e Ciência Cognitiva pela University College de Londres e escreveu sua dissertação sobre aplicações criativas da Inteligência Artificial. Em 2015, foi nomeado uma das pessoas mais influentes da Europa pela revista Wired.





As obras de Bridle foram exibidas na Europa, América do Sul, América do Norte, Ásia e Austrália e já foram requisitadas por organizações como o Victoria & Albert Museum, Barbican e Artangel, de Londres; a Trienal de Arquitetura de Oslo e a Bienal de Design de Istambul.


“Maneiras de ser”
• James Bridle
• Tradução de Daniel Galera
•  Todavia
•  496 páginas
•  R$ 104,90