Nascido em Porto Alegre no ano de 1981, Samir Machado de Machado tem se especializado na travessia de séculos e continentes. O escritor gaúcho, como afirma um de seus personagens no mais recente livro, “O crime do bom nazista” (Todavia), reconstitui minuciosamente “momentos que se perderão no tempo, feito bolhas no champanhe”. Munido de farta pesquisa histórica, Samir cria dilemas e intrigas que, muitas vezes, ecoam no tempo presente. E este é um dos trunfos da história narrada no novo romance, ambientada em um dirigível vindo da Alemanha do Terceiro Reich.
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Acompanhamos as ações e omissões deste grupo de personagens nada confiáveis, que defendem a segregação (“É preciso branquear o sangue da nação”, defende um deles) enquanto degustam acepipes e bebericam gim tônica.
Como nos romances policiais da primeira metade do século 20 de Conan Doyle e Agatha Christie, há uma investigação, reviravoltas, pistas falsas, interrogatórios e revelações nas últimas páginas.
Mas, assim como no premiado “Uma tristeza infinita”, de Antônio Xerxenesky, “O crime do bom nazista” ganha força quando lido à luz do flerte que o Brasil desenvolveu nos últimos anos com o autoritarismo e a tentativa de imposição de padrões de comportamento e sexualidade.
“Política e crime numa aventura irônica pela história – dos personagens, do século 20, ao Brasil atual”, define, na contracapa de “O crime do bom nazista”, outro escritor gaúcho, Michel Laub.
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“Não é algo original da minha parte apontar as evidentes semelhanças de pensamento, ideologia e ações entre o nazismo e o bolsonarismo: ambos são movimentos políticos baseados no discurso de ódio e violência, cuja solução para tudo sempre parte da eliminação física do que consideram indesejável à sociedade, e não faltam pesquisadores sobre o holocausto que apontem isso”, acredita Samir Machado de Machado.
Leia, a seguir, outros trechos da entrevista com o autor, também responsável pela tradução e prefácio da mais recente edição de “As minas do rei Salomão”, livro definidor de um modelo de narrativas de aventura.
Como surge “O crime do bom nazista”? Já sabia que iria escrever um romance bem mais curto do que os anteriores “Tupinilândia” e “Homens elegantes”?
Surgiu primeiro como um conto, para uma coletânea que ainda está por sair, e que deveria ter no máximo 20 laudas. Conforme fui escrevendo e fui chegando a 50, 60 laudas, percebi que não tinha mais como ser um conto. Desde o princípio a ideia foi um whodunnit. Fazia tempos que eu tinha a vontade de escrever algo ambientado a bordo do zepelim em alguma de suas muitas passagens pelo Brasil, e isso se somou às aulas com o meu orientador de mestrado, sobre as mentalidades idolátricas de regimes totalitários, e meu interesse por história LGBT.
O que vem primeiro? A trama, os personagens ou a pesquisa?
Depende do livro, e daquilo que me interessa contar naquele momento. Em “Homens elegantes”, o condutor do enredo era o personagem, a ideia do herói de ação gay. Em “Tupinilândia”, era o cenário, o parque, e toda a pesquisa sobre a cultura dos anos 1980, década em que nasci. Com “O crime do bom nazista”, foi definitivamente o enredo.
Como foi a sua pesquisa para o livro? O que mais o surpreendeu durante o processo e do que mais gosta nessa fase do trabalho?
Houve dois momentos de surpresa: o primeiro foi que, de início, não me dei conta da quantidade de dirigíveis em operação pela Zepelim, e eu já estava no segundo capítulo quando me dei conta que estava usando como referência o zepelim errado! O que viajava regularmente para o Brasil era o LZ 127 Graf Zepelim, e cada dirigível tinha um espaço interno relativamente distinto.
A segunda surpresa foi durante a pesquisa sobre a cultura LGBT da Alemanha durante os anos 1920 e 1930, com seus bailes, serviços, publicações de banca, articulações políticas... e a velocidade e violência com que tudo isso foi esmagado no instante em que os nazistas chegaram ao poder. Antes mesmo de baixarem leis contra os judeus, os primeiros a serem perseguidos foram os gays, lésbicas e transexuais da Alemanha.
O que foi mais difícil e mais fascinante ao ambientar uma trama policial dentro de um dirigível?
O mais difícil foi planejar a movimentação dentro de um espaço tão pequeno, especialmente para o assassinato em si, quando todos estão tão perto uns dos outros e aos olhares de todos. E o mais fascinante é imaginar o próprio zepelim em si, a ideia de passar dias apertado em um balão altamente inflamável. Fiquei imaginando o horror que devia ser partir pra guerra dentro de um desses, ou, para quem estava em terra, acordar no meio da noite e ver uma coisa dessas no céu noturno parada, largando bombas sobre a cidade, como aconteceu durante a Primeira Guerra.
“Um governo que pretendia fundir seu partido à identidade nacional”, “a arte precisa ser heroica, imperativa, vinculada às aspirações do povo, ou então não será nada”, “empresários generosos nas doações de campanha para o Führer...” Qualquer semelhança com os fatos ocorridos nos últimos anos no Brasil é ou não mera coincidência?
Certamente, não. Mas não é algo original da minha parte apontar as evidentes semelhanças de pensamento, ideologia e ações entre o nazismo e o bolsonarismo: ambos são movimentos políticos baseados no discurso de ódio e violência, cuja solução para tudo sempre parte da eliminação física do que consideram indesejável à sociedade, e não faltam pesquisadores sobre o holocausto que apontem isso. E também não é como se o próprio bolsonarismo não tivesse passado os últimos quatro anos se associando ao nazismo, por vezes de modo explícito.
Um dos personagens afirma que outro personagem possui as “inclinações invertidas do terceiro sexo.” Como a homossexualidade era enxergada no início do século 20 e como ela é mostrada no livro?
A homofobia nasce da misoginia, da noção de que a mulher é inferior ao homem, e que, portanto, o homem que assumisse um papel feminino estaria se inferiorizando (do mesmo modo como uma mulher “masculina” estaria usurpando o papel do homem). Os nacionalismos do início do século 20 eram muito preocupados em projetar uma ideia de superioridade frente a outras nações e culturas, de que eram países de gente muito máscula cercados de estrangeiros efeminados, e isso passava pela ideia de eliminar na sociedade tudo o que considerassem “inferior” ou fora de seu papel.
Depois do Conde de Bolsonaro em “Homens elegantes”, agora temos a Baronesa Van Hattem, que tem o mesmo sobrenome de um deputado federal de seu estado. Por que as referências a políticos brasileiros contemporâneos em livros que se passam em outro tempo?
Escrevi “Homens elegantes” entre 2013 e 2015, e como o protagonista era gay, precisava de um antagonista cujo nome remetesse imediatamente à homofobia, preconceito e ódio, posição que Bolsonaro parecia se alegrar em ocupar. Ele era apenas o ponto mais visível de discursos homofóbicos que vinham sendo normalizados, inclusive na imprensa – basta lembrar a infame coluna de J. R. Guzzo comparando homossexuais a cabras, publicada na revista "Veja". No caso de “O crime do bom nazista”, eu precisava de nomes alemães, e “Hattem” me lembra hate, “ódio” em inglês. E, bem... a baronesa Van Hattem odeia bastante gente no livro. Não acompanho a carreira do político em questão, ele não me parece muito relevante no momento, para além do anedótico.
Acredita que os romances com tramas de aventura ou suspense são vistos com menos atenção pela crítica e pelos júris de prêmios literários no Brasil? Concorda com a divisão feita pelo Jabuti entre romance literário e romance de entretenimento?
Quando o Jabuti anunciou a divisão entre romance “literário” e romance de “entretenimento”, confesso que a ideia não me agradou na ocasião. Em geral, o meio literário costuma usar “entretenimento” para adjetivar obras onde não enxergam maior valor artístico ou político, mesmo que a literatura de entretenimento costume ter, no fim das contas, um papel muito mais político que a mais engajada das literaturas. Mas a realidade é que, ao fazer essa divisão, o Jabuti passa a dar visibilidade e destaque para o bom entretenimento. Ou ao menos, quero acreditar que seja bom, já que eu mesmo já fui agraciado com um (risos).
O prefácio de “As minas do rei Salomão” apresenta também a trajetória dos romances de aventura e da literatura popular. O que o motivou a fazer uma nova tradução e como a obra de Henry Haggard se situa entre os romances de aventura?
Traduzir às vezes é como executar uma engenharia reversa na obra do autor, abrir a tampa do motor e tentar entender o funcionamento das peças, e isso pode ser útil para um escritor de ficção. No caso de “As minas do rei Salomão”, eu queria entender a estrutura básica do romance, pelo tanto que ele influenciou o século seguinte de entretenimento. E também porque não aguentava mais o pedantismo de dizerem que a tradução do Eça de Queiroz era “melhor que o original”, quando o dandismo de Eça claramente estava em conflito com a visceralidade por vezes vulgar e sensacionalista de Haggard.
“As minas do rei Salomão” é um marco por estabelecer as bases de uma forma específica de narrar aventuras, o gênero das “civilizações perdidas”, que iria influenciar praticamente todo o entretenimento do século seguinte, de Tintim à Indiana Jones. E também por carregar uma série de neuroses raciais e sexuais vitorianas que fazem dela uma peça de propaganda do colonialismo inglês que seguiu sendo replicada de modo quase inconsciente por seus imitadores.
Ainda há espaço para a literatura de aventuras no século 21? Ou o espaço foi ocupado pelos videogames, que você define como “uma nova forma narrativa a herdar as estruturas do romance imperial”?
Narrativas de aventuras seguem sendo populares, independente da forma com que são narradas. Em relação ao videogame, eles permitem uma imersão narrativa cuja profundidade é comparável
à da literatura, especialmente em grandes jogos de mundo aberto – embora eu veja mais relações com o teatro, uma vez que a progressão da narrativa depende de o jogador acertar marcações de cenário e linhas de diálogo.
“O crime do bom nazista”
- Samir Machado de Machado
- Todavia
- 128 páginas
- R$ 59,90
Um autor, diversos gêneros
Conheça os livros anteriores de Samir Machado de Machado
“Quatro soldados” (2013)
“Meu primeiro romance é uma forma de repensar o Brasil Colônia como nosso equivalente à Idade Média, um cenário perfeito para adaptar aventuras fantásticas.”
“Homens elegantes” (2016) e “Homens cordiais” (2021)
“Como eu gosto de repensar gêneros a cada romance, me propus a escrever uma série de ação e aventura, aos moldes de ‘Os três mosqueteiros’ e James Bond, mas com um protagonista brasileiro e gay.” Homens elegantes” venceu o Prêmio Açorianos na categoria de Melhor Romance.
“Tupinilândia” (2018)
Prêmio Minuano de Literatura de Melhor Romance/Novela. “Foi uma forma de repensar a obsessão da cultura pop com o consumismo dos anos 80 por um viés brasileiro, por meio de uma aventura que replicasse e descontruísse os
estereótipos do gênero.”
“Piratas à vista” (2022)
“Meu infantojuvenil é uma aventura de piratas aos moldes de ‘A Ilha do Tesouro’, mas com toque brasileiro.”
“Corpos secos” (2020)
Escrito com Luisa Geisler, Marcelo Ferroni e Natalia Borges Polesso, o livro ganhou o Prêmio Jabuti de Melhor Romance de Entretenimento.
“Foi uma ideia muito louca escrever com outros três autores um romance de apocalipse de mortos-vivos no Brasil.”