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Pesquisa recupera participação de Hipólita Jacinta na Conjuração Mineira

Hipólita Jacinta Teixeira de Melo será, neste sábado, 29 de abril, incluída no Panteão da Inconfidência, no Museu da Inconfidência, em Ouro Preto


28/04/2023 06:00 - atualizado 28/04/2023 00:32

Museu da Inconfidência, em Ouro Preto
Museu da Inconfidência, em Ouro Preto: cerimônia oficial neste sábado terá descerramento de lápide simbólica, já que os restos mortais de Hipólita Jacinta nunca foram localizados (foto: Edesio Ferreira/EM/D.A Press)
Duzentos e trinta e quatro anos depois do fim da Conjuração Mineira, o mais importante movimento anticolonial e republicano que emerge das Minas Gerais contra a derrama e a dominação da Coroa Portuguesa, a historiografia ressuscita a participação de uma mulher, a quem foi imposto o selo do apagamento. Hipólita Jacinta Teixeira de Melo será, neste sábado, 29 de abril, incluída, em cerimônia oficial, no Panteão da Inconfidência, no Museu da Inconfidência, em Ouro Preto, onde estão sepultados Tiradentes e demais conjurados.

 

Haverá o descerramento da lápide simbólica, já que os restos mortais dela nunca foram localizados. Tal foi a brutalidade do esquecimento imposto a Hipólita que, não obstante tenha pertencido a uma das famílias mais ricas e influentes daquele período, até hoje não se encontrou nenhuma imagem ou descrição física que a caracterize. É assim que sobre a única mulher conjurada jamais reconhecida, ainda que tardiamente, paira também uma poderosa indagação e sombra coletiva, relacionada ao gênero: como a historiografia aborda o protagonismo feminino no processo de formação do Estado brasileiro? 

 

Embora tenham os seus nomes gravados em documentos públicos desde o século 18, além de Hipólita, a história dá pouca atenção à viúva Inácia Gertrudes de Almeida, que escondeu Tiradentes no Rio de Janeiro; assim como ao destino imposto à companheira dele, Antônia Maria do Espírito Santo, e a Joaquina, filha do casal.

 

Mais recentemente, as referências a essas  mulheres ressurgem em  obras como a biografia “O Tiradentes” (Companhia das Letras, 2018), do jornalista Lucas Figueiredo, “A fortuna dos inconfidentes” (Editora Globo, 2010), de André Figueiredo Rodrigues, e “A independência do Brasil: as mulheres que estavam lá” (Bazar do Tempo, 2022), organizado por Heloísa Starling e Antonia Pellegrino. Mas o apagamento sobre o protagonismo feminino na política, é legado colonial, que persiste nos dias de hoje. 

Protagonismo

“O que me impressiona nessa história é o esquecimento. Repare. Ela assumiu protagonismo e decidiu agir politicamente em público – e, é bom lembrar, o público é o espaço por excelência da política. Um espaço rigorosamente proibido para uma mulher”, assinala a historiadora Heloísa Starling, professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

 

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Ela conduziu a pesquisa que demonstrou a presença de Hipólita Jacinta Teixeira de Melo na cena da Conjuração Mineira. “Em torno de Hipólita, não gravitam versos líricos, nem existe uma história de amor, como aconteceu com Maria Dorotéia Joaquina de Seixas, a mais conhecida entre as ‘Marílias” de Gonzaga, ou com Bárbara Eliodora, esposa de Alvarenga Peixoto”, destaca Heloísa Starling.

 

Hipólita tampouco evoca o imaginário de uma paixão clandestina, como aquela vivida por Cláudio Manuel da Costa e Francisca Arcângela, mulher negra e pobre a quem o poeta amou, mas nunca a reconheceu publicamente. “Ao redor de Hipólita, só existe política. Então, é preciso que a sua aparição no mundo público, em 1789, se faça história”, declara Heloísa Starling.

 

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A notícia da captura de Tiradentes pela Coroa Portuguesa alcançara, em 20 de maio de 1789, a Fazenda Ponta do Morro – localizada entre a vila de São José del-Rei (atual cidade de Tiradentes) e o arraial de Prados –, de propriedade de Hipólita.  Conjuração Mineira estava sendo desbaratada: as tropas da infantaria, enviadas pelo vice-rei Luís de Vasconcelos e Sousa, chegariam a Vila Rica em poucos dias. Decidida a resistir, Hipólita orientava a sedição a atrair as tropas do Serro do Frio, que, ao lado das comarcas de Vila Rica e do Rio das Mortes, era centro de difusão das ideias mobilizadas por inconfidentes em longos serões, frequentes na fazenda Ponta do Morro. 

 

Em bilhete aos líderes militares, Hipólita instruía para que fosse dado o brado de incitação à sublevação com a proclamação ritual de “Viva o Povo”, ao mesmo tempo em que fossem executadas as etapas previstas na ação de sublevação: o fechamento do Caminho Novo, que fazia a ligação com o Rio de Janeiro, à altura dos despenhadeiros da Mantiqueira; simultaneamente, o posto fiscal mais movimento da capitania, o Registro do Paraibuna, na divisa com o Rio de Janeiro, seria ocupado por um grupo armado, impedindo o avanço das tropas do vice-rei em direção às Minas.

 

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“Quem não é capaz para as coisas, não se meta nelas. E mais vale morrer com honra que viver com desonra”, arremata Hipólita na correspondência, não deixando dúvidas quanto à sua disposição de enfrentar a Coroa. A referência está nos Autos da Devassa, o processo instaurado pela Coroa contra os conspiradores, que ousaram defender um projeto republicano, de independência para as Minas Gerais.

Culta e intelectualizada

Nascida em Prados, em 1748, culta e intelectualizada, filha de uma das três famílias de proprietários de terras mais ricas da Comarca do Rio das Mortes, Hipólita ousou abandonar a esfera doméstica – destinada às mulheres – e ocupar o espaço da política. Foi personagem importante na Conjuração Mineira:  colaborou para a comunicação entre os inconfidentes, de perfis sociais e histórias bastante heterogêneas,  financiou algumas das ações do movimento e disponibilizou a sua residência, na Fazenda Ponta do Morro, para encontros entre conjurados. 

 

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O movimento foi reprimido e todos os líderes foram encarcerados, inclusive Francisco Antônio de Oliveira Lopes, marido de Hipólita. Apesar de não ter sido presa (não houve acusação formal contra ela), Hipólita teve, por ordem do visconde de Barbacena, governador da capitania, todos os bens do casal arrestados, sem direito à partilha conjugal e incluindo os bens pessoais dela, como a Fazenda da Ponta do Morro, herança paterna.

 

 Entre as esposas dos conjurados, apenas Hipólita foi penalizada dessa forma. “Nesse ato, Barbacena quebrou o silêncio mais profundo do relato sobre a história: admitiu a presença de Hipólita no centro do acontecimento político e fez dela inconfidente”, afirma Heloísa Starling. “A perda total de seus bens sem direito à meação conjugal estabelecia com nitidez o crime de inconfidência praticado pela única mulher com protagonismo político na Conjuração Mineira”, acrescenta. Hipólita morreu em 1828, não sem antes recuperar de forma engenhosa todos os seus bens que lhe foram sequestrados. 

 

Entrevista/ Heloísa Starling 
Professora e historiadora

 

“Hipólita fez o mais proibido para a mulher até hoje: atravessar a fronteira da política”

 

Qual é a importância da Inconfidência Mineira no contexto dos movimentos anticoloniais no Brasil?

 

A conjuração é o primeiro movimento que vai se organizar para construir um projeto de independência no século 18 para as Minas Gerais. É um projeto republicano. E vai colocar em movimento as ideias de soberania e de independência que vem dos pensadores da Revolução Americana. Pois a Conjuração Mineira coloca essas ideias em movimento.

 

Essas ideias vão passar a circular na colônia e vão alimentar projetos das outras duas conjurações – a do Rio de Janeiro e a Baiana. E depois essas ideias, o livro de Tiradentes, o projeto republicano vai reaparecer no Recife, na Revolução de 1817. Então a Conjuração Mineira pensa um projeto de independência e põe em circulação as ideias que vão alimentar o debate e que chega até o projeto da Revolução de 1817, no Recife.

 

A conversa do Recife, da Revolução de 1817 com a Conjuração Mineira é muito intensa, por conta do Livro de Tiradentes, o outro exemplar dele reaparece no Recife. Teve gente que participou da franja da conjuração e vai estar no Recife, lutando na Revolução de 1817. Não se conhece a data precisa em que a Conjuração Mineira tomou forma.

 

Foi em algum momento entre 1781 e 1788, quando o projeto de criar uma República nas Minas passou a ser expressamente debatido em reuniões realizadas com esse propósito na capitania. Uma vez mobilizadas pelos conjurados em longos serões, inclusive na Fazenda Ponta do Morro, de Hipólita, que entravam pela madrugada afora, as ideias de autossuficiência econômica, independência, soberania e poder republicano se espalharam com rapidez. 

 

Por que demorou tanto tempo para ser reconhecida a participação da mulher conjurada no movimento mineiro?

 

Havia duas musas, duas mulheres fortes, valentes, Barbara Eliodora e Marília de Dirceu, mas que não participam do debate político. Até recentemente, o que a história nos dizia era que quem estava assumindo voz pública e fazendo a discussão política eram só homens.

 

Demorou tanto tempo porque o que Hipólita fez foi a coisa mais proibida para a mulher até hoje: atravessar a fronteira da política. Até hoje, as mulheres ainda têm dificuldade de ir para a cena pública. Imagine, então, no século 18, quando ela está confinada à vida doméstica.

 

A repressão que caiu sobre ela foi o esquecimento. Os gregos dizem que o esquecimento é pior do que a morte, pois na morte a gente guarda a lembrança de quem foi embora. No esquecimento a pessoa nunca existiu; é como se a Hipólita nunca tivesse existido. 

 

Como recuperar o protagonismo de uma personagem apagada?

 

É pesado o silêncio sobre a história singular da Hipólita. O esquecimento e as incertezas da documentação referentes aos episódios de sua vida são um problema sem tamanho para o historiador que revisita o passado.

 

A estratégia que usei é a da abordagem indireta das fontes para contornar a extensão do não dito. Esse pode ser um recurso alternativo para acessar algo do mundo que Hipólita viu e, assim, tentar compreender sua trajetória no tempo que lhe foi dado viver, bem como as intervenções que ela desempenhou na conjuntura política com os meios que dispunha. Lucas Figueiredo havia me dito há mais tempo sobre a presença de uma mulher na Inconfidência Mineira metida na questão política.

 

E fui investigar. Quando ela sabe da prisão de Tiradentes, manda a mensagem aos dois líderes militares. Então ela sabe quem são, está no centro da atividade política da conjuração. Então, transitar entre realidade e possibilidade é uma opção quando se trata de enfrentar o mutismo das fontes que costuma recair sobre mulheres e, especialmente, sobre aquelas como Hipólita, capazes de reivindicar protagonismo político. Foi preciso construir e dizer para o leitor que estamos trabalhando em determinados momentos com a imaginação do possível (nome dado por historiadores ao uso controlado dessa estratégia).

 

Por exemplo: Tiradentes era o comandante da Patrulha do Mato, que patrulhava o Caminho Novo (principal rota de trânsito do Rio de Janeiro para a Capitania das Minas Gerais). A fazenda da Hipólita está no Caminho Novo. Tiradentes ia à fazenda de Hipólita. Então, se eu provo isso tudo, é possível que ela tenha conversado com Tiradentes sobre a conjuração.

 

O irmão do padre Carlos Correia de Toledo, Luiz Vaz de Toledo Pixa, está nos serões conspiratórios da fazenda da Hipólita. Então é provável que ele tenha dito que a “liberdade é amável” e ela tenha ouvido, quando ele desejava explicar a alguém as razões que o levaram a tornar-se um conjurado: o amor pela liberdade não se resume a uma conduta política orientada pela utilidade. Então avisamos ao leitor as informações que temos e vamos reconstruídos. Dá muito trabalho porque buscamos detalhes e cercamos a personagem pelo lado. 

 

A sua pesquisa conseguiu recuperar alguma imagem de Hipólita?

 

Eu não acredito que uma das três maiores fortunas de Minas não tenha tido nenhum desenho, nenhuma pintura do rosto dela. Não sabemos qual é o rosto dela. Foi apagado. Ela está enterrada em algum lugar num altar lateral da igreja de Prados. Não tem jeito de identificar mais, pois são várias ossadas lá. É muito pouco provável que se consiga recuperar o corpo dela, pois está no altar, não se sabe em que lugar do altar e era comum os enterros serem nas igrejas. Então, ali tem restos mortais de várias pessoas.

 

O que representa para o protagonismo feminino na história do Brasil a incorporação de Jacinta Hipólita ao Panteão da Inconfidência Mineira, em Ouro Preto, neste sábado, 29 de abril?

 

No livro “Independência do Brasil, as mulheres que estavam lá” (Bazar do Tempo/2022), falamos da baiana Maria Felipa, que organizou, na guerra da Independência, um grupo de 40 mulheres, que eram vigias da ilha de Itaparica e defendiam o território impedindo que os portugueses desembarcassem. Dessas 40 mulheres sabemos apenas o nome de cinco delas.

 

Tem mulheres que procuramos, por exemplo Ana Lins, que a pesquisa não encontra nada, foi uma dificuldade levantar a história delas. Todas elas atravessaram a fronteira para a política e sofreram um processo de apagamento, uma repressão forte. Então isso não ocorreu só com a Hipólita JacintaTeixeira de Melo.

 

As mulheres fazem a história também, e na cena pública, defendendo a liberdade, a independência e a soberania. Na exposição itinerante da Independência, nosso caminhão levou a história dessas mulheres a todos os cantos do Brasil. E quando começamos a contar a história delas, as meninas paravam e prestavam atenção. O que a Hipólita Jacinta, no século 18, está dizendo para nós é: “O lugar da mulher é onde ela quiser estar”. E se ainda estamos no século 21 lutando para dizer isso, pensa como foi viver no século 18. 


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