“Naquele 15 de outubro de 2016, de dentro do pub temático em Liverpool, George afastou a cortina e enxergou de novo, do outro lado da rua, um decepcionante Cavern Club. Rodeado pelos prédios da Cook Street e da estreitíssima Mathew Street, aquele lugar sagrado parecia-lhe muito menor do que imaginava. Ainda mais com o bando de turistas à sua frente, a tagarelar e fazer selfies. Uma coisa sem aura, sem autenticidade alguma. A pequena Disneylândia de pessoas usando camisetas dos Beatles, algumas apertadas sobre casacos grossos, retirava dele qualquer resto de privilégio ou de intimidade, qualquer traço de interioridade, qualquer amor. (...) O conjunto todo murchava aquele que tinha sido, para George e John, o lugar mais importante do mundo: o clube onde os Beatles nasceram.”
O trecho acima, carregado de tonalidades de nostalgia, saudosismo e azedume acumuladas pelo protagonista, George, se trata do início da história de “Tropeçália” (Editora Taverna; 2022), segundo livro que integra o tríptico “O inferno dos sentidos” – a primeira obra da trinca é “Berço de Judas” (2019), e a vindoura e última, a priori, deverá se chamar “Mata-cachorros” –, de Jéferson Assumção, escritor gaúcho e diretor do departamento de Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas do Ministério da Cultura. Logo de cara, você poderá supor que os nomes ali citados, George e John (dois irmãos na trama, aliás), fazem referência a dois integrantes dos Beatles, os finados George Harrison (1943-2001) e John Lennon (1940-1980), e que o título, “Tropeçália”, alude à Tropicália, movimento brasileiro nascido na segunda metade da década de 1960, com novas linguagens artísticas, e que tinha em seu efervescente núcleo (ou que transitavam pelo citoplasma daquela manifestação cultural) figuras como os músicos Caetano Veloso e Gilberto Gil, a banda Os Mutantes, o cineasta Glauber Rocha e o ilustrador e compositor Rogério Duarte. Sim, você está certo! Só que essas escolhas do autor não foram brotadas da leviandade ou carregam simples homenagens.
O nome Tropeçália é sim uma alusão à Tropicália, mas, de forma patente ou latente, a critica e a parodia. E se entrelaça também à palavra “tropeço”, aos tropeços com que cada personagem do livro convive e aos trópicos (ou, em mais uma paródia utilizada, aos “tropicos”, aos “tropeções”) – neste caso, se refere ao Cone Sul e, de maneira mais cirúrgica, ao Rio Grande do Sul, cenário onde grande parte da história se passa, em um romance que mistura períodos da história do Brasil dentro de uma narrativa fictícia. O estado, assim como todo o país, vivenciou décadas de Ditadura Militar (1964-1985) e o êxodo rural dos anos 1960 e 1970, com milhões de brasileiros indo parar nas periferias das grandes cidades. Caso da família de John e George em Canoas (RS), cidade onde a dupla, juntamente com outros integrantes, no fim dos anos 1980, criou a banda Blackbirds – referência à música “Blackbird”, dos Beatles, presente no “White album”, de 1968 – e que seria o embrião da Tropeçália.
Só que os momentos de psicodélica e lisérgica felicidade (você vai entender mais durante a leitura da obra) deram lugar ao fim da banda e a uma frustração instaurada no cerne dos músicos e do produtor e jornalista Jey Jey, que tanto apostou na Tropeçália e viu ruir, não somente o grupo, como sua carreira na imprensa, além de ter sido testemunha de um drama vivido por John. Diferentemente de George, único a seguir uma carreira musical de reconhecimento como guitarrista de artistas renomados, John trilhou um caminho pavimentado pelo vício das drogas – e, em meio a dívidas e internações em clinicas de reabilitação, percorreu décadas alimentando a esperança em ver o irmão retomar a banda. E o regresso dela realmente ocorre, embora o motivo principal, para George, não tenha sido o de necessariamente ajudar o irmão ou tentar fechar antigas feridas com seus velhos colegas de Tropeçália. Já com mais de 40 anos de idade, o guitarrista se viu “prensado na parede”, ao ouvir Paulo Banjiro, um dos músicos para o qual trabalha, contestar seu modo de tocar: “Bota mais samba aí, meu rei. Você toca bem pra caralho, mas anda faltando no teu som o Brasil que está no teu sangue”.
Na mente de George, seria por meio de uma nova experiência – incluindo um “ritual” – com seu antigo grupo que ele “recuperaria” aquilo que se perdeu durante uma trajetória na qual se tornou um sofisticado guitarrista (de ótima “mão esquerda”, como dizem), mas que carecia de “brasilidade”, tanto no ritmo (na “mão direita”), quanto na alma. Essa jornada que acompanha os irmãos, desde os tempos de criança (ou até antes, quando o pai deles, o Negra, ex-motorista de carro de combate em 1964, viria, por necessidade, a se tornar camelô) rumo ao regresso da Tropeçália é cimentada por dramas pessoais, tendo como pano de fundo mazelas da sociedade (vide racismo, LGBTfobia e machismo, entre outras), problemas socioeconômicos e críticas a momentos políticos vividos no Brasil (além da Ditatura Militar, 2016, ano do impeachment da presidente Dilma Rousseff, é alvo de Jéferson Assumção). Dentre os méritos do escritor gaúcho estão a acidez de cada sátira, paródia e alfinetada que emergem, a narrativa visceral e por vezes ardilosa e as camadas inseridas nas subtramas e na história principal.
No fim das contas, e sem dar spoiler, a linha tênue entre a utopia e a possibilidade de reconstrução do lema “o sonho não acabou” se torna alimento para todos aqueles personagens do livro que um dia se apaixonaram com a música dos Beatles e nutriam tantos sonhos.
Livro-disco
“Tropeçália” é uma experiência imersiva. Ao folhear a obra, o leitor vai se deparar com um QR Code que o transporta para o canal no YouTube da banda Tropeçália. Lá estão as músicas citadas no livro, que formam um disco de pouco mais de 40 minutos e são executadas por uma banda a qual Jéferson Assumção faz parte e que foi rebatizada com o nome do fictício grupo da trama.
“Essa ideia surgiu enquanto eu escrevia a primeira versão do livro, que se chamava ‘Os Beatles Negros’. No meio da escrita, me veio o nome ‘Tropeçália’, trocadilho com a Tropicália, e depois a ideia de criar não apenas um romance, mas um romance-disco, com uma banda que sai do livro para tocar de verdade”, relata o escritor gaúcho. “Eu já tinha uma banda em Brasília, com músicas próprias. Expliquei o projeto para o grupo, passamos anos como ‘Tropeçália’ e a ensaiar para gravar as 12 músicas do romance-disco. Para o livro, criei esse grupo de periferia, que fazia uma versão subtropical da Tropicália. Uma banda de Canoas, na Região Metropolitana de Porto Alegre, com um som entre Itamar Assumpção e Júpiter Maçã, um pouco de vanguarda e um pouco indie, digamos assim. Paralelo à escrita do livro, gravamos as 12 músicas da banda.”
'Tempo inexorável'
O escritor Luiz Antonio de Assis Brasil, que assina o texto da contracapa do livro, aponta que “Tropeçália” é mais do que “uma bela peça literária”: “Nos alerta para o tempo que passa, tão inexorável quanto nossa vida pessoal, e que o desejo de reviver antigas utopias, em sua face estática, não terá sentido se não entendermos esse fenômeno”.
“De certa forma, isso (consciência sobre a passagem do tempo que permeia o livro) é algo que se busca com o amadurecimento pessoal, a consciência de que somos feitos disso, do que vivemos, do que passou e do que ainda projetamos como vontade para o futuro. Nesse sentido, tem um pouco de existencialismo, ou pré-existencialismo de sabor orteguiano (referência ao escritor espanhol José Ortega y Gasset – 1883-1955). Não sou um autor de interesse apenas social, mas existencial, ou, no caso do que acontece com quem vive nas periferias e é um leitor de filosofia, de literatura e ama a arte, de um ‘subexistencialismo’, como diz George no livro. Eles (personagens da trama) talvez não devessem mesmo se meter com algo que não era deles, amar o que não se pode possuir totalmente. Em vez de passear com Cortázar pelas ruas frias do Quartier Latin, em Paris, ou sentar ao lado de Borges num banco de praça em Genebra, eles estavam enfiados no barro frio do bairro Mathias Velho dos anos 1980 e 1990”, comenta Assumção.
Com relação à ideologia da obra, o autor ressalta que “Tropeçália” “traz este clima de que as personagens estão vivendo não apenas aquele conjunto de ideias fora do lugar, como diria Roberto Schwarz, mas ideias também fora do seu tempo. As drogas que libertavam agora escravizam, o sexo livre detona com as relações na banda, o imaginário hippie, quase ingênuo, é corrompido pela realidade sombria, pelo pós-punk e pelo pós-rock. Neste sentido, ‘Tropeçália’ é um livro pós-power-flower e pós-Beatles, também”.
Curadoria
Além dos Beatles, vários artistas são citados ao longo da obra, dos mais distintos segmentos musicais, tanto nacionais (como Caetano, Gil, Alceu Valença, Novos Baianos, Casa das Máquinas, Made in Brazil, Os Mutantes, Som Nosso de Cada Dia, A Barca do Sol, O Peso, Joelho de Porco, O Terço), quanto internacionais (Malmsteen, Cacophony, Jethro Tull, Janis Joplin, Stones, Jackson Five, Frank Zappa, Emerson, Lake & Palmer, Focus, Genesis, King Crimson, Metallica). Com tantas menções, Assumção não rechaça a ideia de que, sem presunção, “Tropeçália” também sirva de curadoria para seus leitores.
“Acredito que um livro pode servir também para trazer repertórios artísticos e referências, sejam elas filosóficas, literárias ou musicais. Em ‘Tropeçália’, quis trazer esse universo da banda e sua fé num rock que há muito se perdeu. Tanto a fé, como o rock. Na minha época, de 16, 17 anos, em Canoas, vivíamos muito desse universo e buscávamos aprender sobre a vida com esses artistas. Era uma coisa de hippie-tardio, já com o pé na maravilhosa vanguarda paulista dos anos 80. Quis colocar no livro esse efeito na vida de qualquer jovem, que é a educação sentimental e filosófica que temos por meio da música. Explorei isso com essas referências mais antigas, o que dá um certo ar vintage que eles vivem”, destaca.
Ficha técnica: "Tropeçália"
- Jéferson Assumção
- Editora Taverna
- 272 páginas
- R$ 65
Quem é Jéferson Assumção
Nascido em Santa Maria (RS) em 1970, é autor de mais de 20 livros, dentre eles “Berço de Judas” e “Tropeçália”. Doutor em filosofia pela Universidade de León, na Espanha, tem pós-doutorado em Literatura na UnB. Atualmente é diretor do departamento de Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas do Ministério da Cultura.
Entrevista com Jéferson Assumção
Como e de onde surgiu a ideia para o livro “Tropeçália”? Por mais que faça parte da trinca “O inferno dos sentidos”, quando surgiram as ideias e como foi o processo de construção e finalização da obra?
Surgiu enquanto eu escrevia a primeira versão do livro, que se chamava “Os Beatles Negros”. No meio da escrita, me veio o nome “Tropeçália”, trocadilho com a Tropicália, e depois a ideia de criar não apenas um romance, mas um romance-disco, com uma banda que sai do livro para tocar de verdade. Eu já tinha uma banda em Brasília, com músicas próprias. Expliquei o projeto para o grupo, passamos a nos chamar “Tropeçália” e a ensaiar para gravar as 12 músicas do romance-disco. Para o livro, criei este grupo de periferia, que fazia uma versão subtropical da Tropicália. Uma banda de Canoas, na Região Metropolitana de Porto Alegre, com um som entre Itamar Assumpção e Júpiter Maçã, um pouco de vanguarda e um pouco indie, digamos assim. Paralelo à escrita do livro, gravamos as 12 músicas da banda, que estão acessíveis por um QR Code impresso no início do livro.
O título do livro chama atenção por fazer referência ou alusão à Tropicália e também se confunde ou alude aos trópicos, ao Cone Sul, ao Rio Grande do Sul e à palavra ‘tropeço’. Enfim, tem todo um significado. Mas queria que você nos dissecasse um pouco desse termo e como ele se estende ao conteúdo do livro, às inspirações e aos sonhos das personagens no sentido de buscarem um ideal, e esse ideal ir mudando para cada um ao longo das páginas.
Sempre achei o Tropicalismo cheio de um otimismo até certo ponto injustificável, se pensarmos no Brasil como um todo, em suas distintas realidades sociais, regionais, econômicas e mesmo climáticas. É fundamental para o Brasil contemporâneo, claro, mas o chamado pós-Tropicalismo, do próprio Caetano, de Jards Macalé, Sérgio Sampaio, Gal Costa, e seus frutos vanguardistas dos anos 80, como Itamar Assumpção, Arrigo, Os Mulheres Negras, sempre me pegaram mais. Nesse sentido, brinco que a banda Tropeçália e o livro são “neo-pós-tropicalistas”. No livro, a Tropeçália nasceu em Canoas no fim dos anos 80, e seus integrantes veem o movimento tropicalista com desejo, mas também com distanciamento cultural, social e econômico. Aos poucos, vão percebendo que aquilo não é “deles”, mas de um Brasil muito longínquo, para quem vive numa periferia ou vem do Pampa, no interior do Rio Grande do Sul. As personagens, John, George, Lena e Deco, começam com um sonho em comum, a formação da banda, mas aos poucos os tropeços da vida amorosa e dos percalços pela falta de dinheiro, ambições e perspectivas estéticas e filosóficas vão fragmentando a banda. Cada um segue seu rumo, mas, como são suburbanos, carregam o que eu vejo como um amor meio religioso que os mais pobres, como é minha origem também, acabam tendo em relação à arte, no caso de se sentirem “salvos” por ela. É uma perspectiva estética e de classe distinta da classe média, e isso o protagonista George e o produtor Jey Jey enxergam melhor que todo mundo. Assim, “Tropeçália” é uma história de amor à arte e à música, um desejo de participar de algo a que as personagens não foram convidadas e não têm força para entrar. A não ser George, o guitarrista ególatra e ensimesmado, o único que deu certo porque não caiu no sentimentalismo populista em que os outros vivem.
Luiz Antonio de Assis Brasil, que assina o texto da contracapa do livro, diz: “Este romance é mais do que uma bela peça literária: ele nos alerta para o tempo que passa, tão inexorável quanto nossa vida pessoal, e que o desejo de reviver antigas utopias, em sua face estática, não terá sentido se não entendermos esse fenômeno”. Queria que você falasse a respeito deste comentário. E o quão positivo e negativo pode ser a questão do tempo para “o desejo de reviver antigas utopias”.
Pois é. Ao tentar voltar com a banda, 20 anos depois e com tantas camadas culturais, econômicas, sentimentais e sociais formadas entre eles, temos a sensação do tanto que a passagem do tempo carrega e nos forma, o quanto o tempo nos consubstancia. O Assis me disse que há uma consciência sobre a passagem do tempo que permeia o livro, e de certa forma isso é algo que se busca com o amadurecimento pessoal, a consciência de que somos feitos disso, do que vivemos, do que passou e do que ainda projetamos como vontade para o futuro. Nesse sentido, tem um pouco de existencialismo, ou pré-existencialismo de sabor orteguiano. Não sou um autor de interesse apenas social, mas existencial, ou no caso do que acontece com quem vive nas periferias e é um leitor de filosofia, de literatura e ama a arte, de um “subexistencialismo”, como diz George no livro. Eles talvez não devessem mesmo se meter com algo que não era deles, amar o que não se pode possuir totalmente. Em vez de passear com Cortázar pelas ruas frias do Quartier Latin, em Paris, ou sentar ao lado de Borges num banco de praça em Genebra, eles estavam enfiados no barro frio do bairro Mathias Velho dos anos 80, 90. Em relação à ideologia, “Tropeçália” traz este clima de que as personagens estão vivendo não apenas aquele conjunto de ideias fora do lugar, como diria Roberto Schwarz, mas ideias também fora do seu tempo. As drogas que libertavam agora escravizam, o sexo livre detona com as relações na banda, o imaginário hippie, quase ingênuo, é corrompido pela realidade sombria, pós-punk e pós-rock. Neste sentido, “Tropeçália” é um livro pós-power-flower e pós-Beatles, também.
Em meio ao livro, há críticas a contextos históricos, de forma patente ou latente, casos da Ditadura Militar e o ano de 2016, quando Temer assume o poder após o impeachment de Dilma Rousseff, mesmo sem você citar nomes. E há também várias críticas sociais, tendo como cenário várias cidades do Rio Grande do Sul.
Ao contar a vida de George e dos integrantes da Tropeçália, a história perpassa cerca de 50 anos da vida política brasileira. Influenciado pelo produtor Jey Jey na juventude, George começa a ter certa consciência política e a refletir sobre o mundo ao redor dele, desde o fato de o pai, o Negra, ter sido motorista de carro de combate no ano de 1964, ou seja, de ter estado do lado “de lá”, por uma mistura de elementos, a idade, os 19 anos e as circunstâncias políticas e sociais, porque afinal quase que apenas os mais pobres servem o exército como soldados. Foi o caso do Negra, mas também talvez interesse a forma como aquela ideologia dos militares permanece no pai de George e John, mesmo tantos anos depois e com todos os tropeços econômicos da vida dele. O Negra perdeu o emprego no início dos anos 80, quando quebra o projeto desenvolvimentista dos militares, teve que virar camelô, mas continuava a defender o capitalismo, queda após queda, e a justificar a luta dos militares contra o comunismo. Essas consequências políticas são as mesmas que se pode observar numa massa de pessoas simples de todo o Brasil, cujas respostas simplistas e falsas dadas por políticos de ultradireita manipulam velhos medos inventados pelos militares lá atrás. Sobre isso, também tem a decadência de Porto Alegre e do Rio Grande do Sul, que do Fórum Social Mundial e das exitosas administrações petistas vão decaindo até a explosão da violência em 2016. Este é um ano emblemático, para Porto Alegre e o Brasil, com o golpe contra a presidente Dilma, e no livro aparece como ponto de coagulação de consciência de que se deixou há décadas um mundo de construção de alternativas políticas, da qual Porto Alegre e depois os governos Lula e Dilma são exemplos. É a consciência para as personagens, principalmente para Jey Jey, de que estamos num mundo pós-rock, pós-Beatles, pós-tropicalista e que os coloca num papel de certa ingenuidade sonhadora também. De certa maneira, George é a consubstanciação disso. Ele vive o sonho que ninguém entre seus amigos conseguiu, virando um músico internacional de jazz.
E em meio a várias outras questões abordadas, fala-se de vícios, problemas de famílias, laços de amigos, bandas, escolas, vários círculos sociais, problemas com drogas, questões relacionadas a racismo, LGBTQIA+ etc. Como foi incluir tantos temas à narrativa e esses temas estarem tão bem encaixados a essa narrativa?
A passagem do tempo suscita a entrada em cena de todos esses temas. O mundo mudou para as personagens e a nós. No caso da banda, a mobilidade social de George, sua ascensão vertiginosa, esgarça as relações com os outros amigos. Os conflitos familiares e com os amigos se acentuam, mas o mais forte são os tropeços de John com o crack, a desestruturação do irmão e da família dele. São todos temas de nosso tempo, e uma narrativa contemporânea não pode passar à margem deles.
Sob outro prisma, vários artistas são citados, tanto nacionais (vide Caetano, Gil, Alceu Valença, Novos Baianos, Casa das Máquinas, Made in Brazil, Mutantes, Som Nosso de Cada Dia, A Barca do Sol, O Peso, Joelho de Porco, O Terço), quanto internacionais (Malmsteen, Cacophony, Jethro Tull, Janis Joplin, Beatles, Stones, Jackson Five, Frank Zappa, Emerson, Lake & Palmer, Focus, Genesis, King Crimson, Metallica). Quando li achei muito interessante, não apenas por ser um livro que tem uma veia musical, como também no aspecto, penso eu, de funcionar como uma curadoria. Acredita que há pessoas que possam descobrir alguns desses artistas lendo o livro? Foi algo intencional ou não?
Sim, acredito que um livro pode servir também para trazer repertórios artísticos e referências, sejam elas filosóficas, literárias ou musicais. Em “Tropeçália”, quis trazer este universo da banda e sua fé num rock que há muito se perdeu. Tanto a fé, como o rock. Na minha época, de 16, 17 anos, em Canoas, vivíamos muito desse universo e buscávamos aprender sobre a vida com esses artistas. Era uma coisa de hippie-tardio, já com o pé na maravilhosa vanguarda paulista dos anos 80. Quis colocar no livro esse efeito na vida de qualquer jovem, que é a educação sentimental e filosófica que temos por meio da música. Explorei isso com essas referências mais antigas, o que dá um certo ar vintage que eles vivem.
Ainda nessa toada, há a história dos irmãos John e George tomando gosto pela música graças a uma fitinha dos Beatles, que um amigo, Ivan, os presenteia, “The Beatles: os reis do iê-iê-iê”. Creio que muita gente pode ter se lembrado do primeiro contato com rock e os Beatles. Como a nostalgia está no ar de alguma forma, chegou a ser nostálgico para você rememorar por exemplo seu primeiro contato com Beatles e outras bandas que admira? E como foi seu primeiro contato com seus artistas favoritos e a música deles?
Sim, talvez a velocidade das transformações tecnológicas e culturais de nosso tempo nos traga de vez também uma necessidade de nostalgia, de passado, de alguma coagulação no mundo líquido. Na nossa velocidade atual, o passado tem talvez mais encanto. É como se estivéssemos vivendo o passado muito presente, pois com o avanço digital temos muitas imagens disponíveis sobre ele. É um encanto maior do que num tempo em que tínhamos imagens quase que exclusivamente do tempo presente, quando estávamos presos à televisão. Hoje o passado é presente, via YouTube etc. Para muitos jovens que conheço e gostam de música, a descoberta no Spotify ou YouTube do disco “Stand Up” (1969), do Jethro Tull, vale tanto quanto o mais novo lançamento de uma banda atual. É um traço de nosso tempo, este que a tecnologia nos permite mergulhar tanto no passado quanto viver o futuro: a conquista da ubiquidade no tempo. Meu primeiro contato com os Beatles foi com uma fitinha, como a descrita no livro. Quando fui camelô, por muitos anos em meados de 80 até início dos 90, muita coisa chegava a mim e meu irmão de referências em discos, fitas ou alguém tocando violão na praça. Da mesma maneira que George e John e na mesma praça da Bandeira. O professor de literatura Igor Graciano, em artigo sobre “Tropeçália”, chama isso não de autoficção, mas de “ruído biográfico”.
Enquanto alguns personagens clamam por brasilidade, George se distancia dela (ou pelo menos esta é a crítica que muitas pessoas ao seu redor fazem a ele). Gostaria que falasse a respeito disso, porque, me parece (me corrija se eu estiver errado) que há uma crítica ali em termos musicais, mas também dessa questão de nacional x internacional.
Sim, um dos conflitos culturais é exatamente o de George ir se interessando cada vez mais pelo clássico e certo jazz supertécnico e cerebral e deixar para trás um som rítmico e brasileiro. Sua mão esquerda se desenvolve mais que a direita, o que ele se dá conta com a crítica de Paulo Banjiro, no início do livro. Aquilo desencadeia também seu mergulho no passado, em busca de corrigir esse elemento que o está prejudicando profissionalmente. O egoísta George está preocupado com isso e não com a banda, mas acha que o retorno a certo ritual de adolescência deles pode consertar tanto esse problema quanto algo central em sua vida. O livro inicia com George acompanhando Paulo Banjiro numa pequena turnê por França e Inglaterra e já o mostra tomado por um certo ar de música internacional. Incomoda-o um (som) nacional meio ingênuo e até falso, instrumentalmente vivido pelos outros integrantes da banda, de Banjiro e de seu antigo grupo.
Há também conflitos de gerações. Quando George retorna a Porto Alegre para tentar retomar a banda, encontra dificuldades de conversar com jovens nos bares. Mesmo considerado antenado, ele vê que ninguém liga para suas piadas de “tiozão” e se surpreende com o papo de um grupo formado por cinco jovens.
Sim, na volta dele a Porto Alegre, ele se vê pela primeira vez mais velho do que imaginava. E isso pela forma como não se encaixa mais na cidade, entre os jovens que circulam pela Cidade Baixa ou os velhos roqueiros do Bom Fim. Ele é uma espécie de fantasma, a viver algo que já morreu por ali. Algo muito forte que o carrega, como numa lufada para a consciência de que está ultrapassado, é um diálogo que ele escuta entre jovens que falam que ficar com homens ou mulheres tem, para eles, a ver não com gênero, mas com uma questão de força muscular ou aspereza da pele ou dos pelos.
Outro trecho que gostaria de mencionar diz respeito novamente à política brasileira: “O Partido Progressista é conservador, o Podemos daqui é o oposto do da Espanha, o Partido Comunista não tem comunista nenhum, o da social-democracia é neoliberal, o dos trabalhadores tá assim de capitalista, nos Republicanos tem uns véio monarquistas”. Queria que falasse a respeito desse cenário, em sua opinião, e também o quanto isso está presente na sociedade, da forma como você a enxerga.
A questão central no livro é a paródia. Para Jey Jey, tudo é paródia no Brasil. A própria Tropeçália é uma paródia da Tropicália. George e Jey Jey pensam que na política nossa paródia ultrapassa muito dos limites do razoável. Acho que às vezes as ideias fora do lugar atingem aqui proporções e versões ainda maiores que em outros países, pela nossa capacidade de misturar e criar paródias. Até de nós mesmos.
O livro se estende ao álbum que está disponível nas plataformas. Como foi fazer esses trabalhos de forma paralela e de forma entrelaçada, um completando o outro? E quais são suas maiores influências na música?
Sim, o álbum está disponível em diversas plataformas e agora também fisicamente, pelo menos quatro músicas em um vinil. Gosto muito de música brasileira: Tom Zé, Jards Macalé, Mutantes, Os Mulheres Negras, Gal Costa, Sérgio Sampaio, os pós-tropicalistas, mas escuto muito de groove-jazz, hard-bop, rock argentino... Adoro Andrés Calamaro e Charly García.
E quais seus planos para o futuro? O que virá pela frente? Algo que possa nos adiantar?
Agora estou de volta à gestão de Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas, como diretor dessa área no Ministério da Cultura. Mesmo assim, tenho começado o terceiro volume de “O Inferno dos Sentidos”. Se não mudar de nome, vai se chamar “Mata-cachorros”.
Por fim, gostaria que deixasse uma mensagem para seus leitores e futuros leitores. E, dentro dessa mensagem, de que forma você apresentaria “Tropeçália” para alguém que ainda não leu e quer ler o livro?
O Brasil é um país vibrante e criativo, para muito além dos grandes centros urbanos. Um país tropical, repleto de tropeços e possibilidades. “Tropeçália” é um livro sobre escrever e fazer música neste país vivo, mas muitas vezes devorador de nossas possibilidades. Isso já está em “Berço de Judas”, primeiro livro do tríptico “Inferno dos Sentidos”. Digo tríptico e não trilogia, porque são mais painéis mesmo, ou seja, três quadros unidos por uma moldura. A moldura é o êxodo rural. Gosto do diálogo com outras artes e em especial com as artes plásticas. No caso desses três romances, o que está em mente é o tríptico “O Carro de Feno”, de Hieronimus Bosh, claro que só como inspiração.