Wilker Sousa
Especial para o EM
Embora tenha publicado dezenas de livros desde a estreia em 1968, é como se Patrick Modiano escrevesse apenas um. Suas obras orbitam em torno de um conjunto de motivos autobiográficos que, retomados e transfigurados à exaustão, resultam numa poética de embaralhamento de vivido e inventado. O principal deles é a Ocupação nazista em Paris, período em que seus pais, um judeu francês e uma atriz belga, se conheceram e o conceberam. Tempo em que falsear a identidade podia despistar os nazistas, mas também desperceber ligações com eles. O casal usou pseudônimos e a motivação, no caso do pai, que usou vários, foi ambígua.
Entre 1942 e 1943, chegou a ser capturado duas vezes pela Gestapo francesa. Na primeira, fugiu e, na segunda, foi solto supostamente graças a um amigo colaboracionista. Teria compactuado com o regime ou, para sobreviver, restou se aproximar de pessoas de índole duvidosa? Em que medida vítima ou culpado? Quem eram afinal ele e outras tantas pessoas sob essas máscaras naqueles anos sombrios? Por força disso, mais que cenário, a Ocupação é um mito de origem obsessivamente revisitado pelo autor e cuja marca maior é a incerteza identitária.
O entrecho de “Um circo passa”, romance de 1992 e agora traduzido pela primeira vez no Brasil por Bernardo Ajzenberg, em lançamento da editora Carambaia, é ambientado na Paris dos anos 1960, quando o narrador Jean, aos dezoito, se apaixona pela intrigante Gisèle, três anos mais velha. A essa camada temporal somam-se duas: o momento do qual o narrador, já maduro, revisita a história com Gisèle e os anos 1940, a malfadada herança paterna que ele pena para expurgar.
Para além da figura do pai, há outros pontos de encontro com a biografia do autor, cujo nome de batismo é Jean Patrick Modiano e que passou a juventude em Paris na década de 1960. Mas, a começar por Gisèle, o núcleo principal da trama é composto de personagens inventados. Estamos, portanto, no terreno da ficção.
Ainda que mais distante no tempo e aludida apenas vez ou outra no desenrolar policialesco dos acontecimentos, a Ocupação é o estrato temporal de maior relevância narrativa. É uma época eterna da qual as outras não passam de repetições, simulacros, engenhoso mecanismo modianiano que aparece, entre outras obras, no romance “Vila Triste”, de 1975, no qual a Paris ocupada subjaz a guerra da Argélia.
A força do trauma
A força desse trauma original é materializada sobretudo no apartamento do cais Conti. Jean o divide com Grabley, um velho faz-tudo de seu pai nos negócios. O pai fugiu há pouco para a Suíça, mas permanece como assunto de conversas e como passado nebuloso impregnado na casa. Quando, metido em apuros, Jean observa da janela a paisagem deserta, identifica o mesmo silêncio que o pai “certamente conhecera durante as noites da Ocupação, atrás da mesma janela”. Conclui, também assertivo, que o homem de sobretudo marrom com quem se encontrou num café e agora o persegue é o sujeito encarregado de encontrar judeus clandestinos que vinte anos atrás bateu à porta do apartamento e continuará a repetir sua missão “por toda a eternidade”.
Em seu quarto há uma velha estante com livros deixados por um locatário anterior a seu pai, um escritor em cuja obra “A caçada” narra memórias, algumas vividas ali. Trata-se de uma referência indireta a Maurice Sachs, pseudônimo de Maurice Ettinghausen, judeu francês colaboracionista que praticava negócios escusos durante a Segunda Guerra, elementos que o aproximam ora de Jean, aspirante a escritor, ora de seu pai, judeu envolvido com atividades suspeitas e sobre quem paira o fantasma do colaboracionismo. É como se pai e filho, porque moradores do apartamento, fossem atravessados à revelia pelo espectro de Sachs, por uma história nefasta que neles repercute com variações sutis.
Mesmo fora do cais Conti, Jean é refém dessa tormenta. Em uma delegacia conhece Gisèle, onde ambos depõem. Ela diz ter comparecido na condição de testemunha, ele afirma desconhecer as pessoas citadas pelo investigador, mas ambos não inspiram confiança. Mais que a beleza, arrebatam-no a aura enigmática e o comportamento erradio da jovem. Tudo o que vem dela, até mesmo o nome, pronunciado apenas no segundo encontro, lhe soa incerto e o deixa com “a sensação de que jamais conseguiria retê-la”.
Ainda assim, ou quiçá por força disso, se deixa levar por Gisèle em uma rede de contatos suspeitos, como Ansart, cujo restaurante parece servir de fachada para uma suposta – e antiga – atuação na clandestinidade. A ambiguidade dessas figuras, os encontros noturnos, a semiescuridão dos ambientes, o suspense, as fugas, os delitos, tudo isso remete ao romance noir francês, subgênero policial que nasceu justamente nos anos 1940 sob influência da atmosfera sombria da Ocupação. Mesmo vinte anos depois, Jean está, portanto, enredado nessa atmosfera.
Na iminência de fugir com Gisèle para Roma, ele é tomado por uma euforia libertadora e passa a considerar irreal tudo ao redor – o apartamento do cais Conti, o núcleo familiar, as pessoas com quem cruzou nos últimos dias, até o saguão de um restaurante lhe parece “um desses lugares que frequentáramos havia muito tempo e que revisitamos agora em sonho”. Afora si, considera reais apenas Gisèle e a vida que começariam do zero longe dali. A fuga é, portanto, redentora, “um salto para o futuro”.
Cativo, porém, desse pesadelo em que os relógios pararam na Ocupação, Jean fala quiçá de um salto para o presente, para um presente que não seja o arremedo de um passado nefasto, um presente em que ele se sinta um eu e não a projeção de outrem. Do apartamento, pretende levar apenas os livros deixados pelo escritor antigo locatário do cais Conti. Sua companhia é Gisèle. Se fugir, saltará mesmo para fora desse tempo? Quer saltar?
Wilker Sousa é jornalista, escritor e mestre em Teoria Literária
Projeto gráfico
O projeto gráfico da edição da Carambaia do livro de Modiano, idealizado por Ana Santiago e Asad Pervaiz, do estúdio Index, foi inspirado na circularidade do romance e na ideia do circo que passa pela capital francesa. A capa de hoje do Pensar, de Júlio Moreira e Paulo Miranda, foi criada com o mesmo conceito.
Sobre o autor
Apresentado, à época do anúncio do prêmio Nobel de Literatura, em 2014, como “Proust de nosso tempo”, Patrick Modiano nasceu no subúrbio de Paris em 1945. Tem mais de 20 livros publicados e trabalhou também no cinema, com o argumento do longa-metragem “Lacombe Lucien” (1974), de Louis Malle. Ao aceitar o Nobel, o escritor lembrou as caminhadas que fazia pela capital francesa quando era criança. “Me tornei um prisioneiro da minha memória de Paris”, comparou.