Ana Elisa Ribeiro
Especial para o EM
Não é preciso grande esforço para encontrar a poesia. Em Minas Gerais, ela é amplamente cultivada, em suas muitas formas, por uma profusão de poetas que se espalham pelo estado, em todas as direções, noite e dia, centro e periferia, com timbres notáveis, variadas melodias, alturas e intensidades. No novo dossiê da “Revista da Academia Mineira de Letras”, que organizei junto com Rogério Faria Tavares, presidente da instituição, foram reunidos 11 textos, que tratam, afinal, de 14 poetas, em sua diversidade, apresentados por estudiosos da poesia, em certa medida eles mesmos poetas. Obviamente, este é um conjunto pequeno dentro de um universo muito maior e sempre em expansão.
Entre as mulheres que escrevem e publicam poesia em Minas Gerais, mas que também andam pelo mundo, estão Bruna Kalil Othero, com sua voz crítica e de alta voltagem feminista, apresentada pela professora Maria do Rosário Alves Pereira, estudiosa das escritoras brasileiras. Noutra ponta do século está Lina Tâmega Peixoto, poeta de Cataguases que viveu e faleceu em Brasília, editora da revista “Meia-Pataca” nos anos 1940, apresentada aqui por Angela Laguardia, que tem trabalhado sobre Lina há alguns anos. Nívea Sabino, slammer premiada e reconhecida dentro e fora de Minas Gerais, tem sua obra — em verso, letra e voz — apresentada pela professora Paula Renata Melo Moreira, pesquisadora interessada nas questões da literatura e da interseccionalidade. Contamos ainda com a escritora Simone Andrade Neves e sua elegância poética, apresentada pela professora Andréa Soares Santos; Flávia de Queiroz, com sua obra meticulosa e melódica, pelo professor Antônio Sérgio Bueno; e Yone Gianetti, poeta da poesia-práxis, por Clóvis Salgado Gontijo de Oliveira.
Outras poetas são comentadas no texto do professor Rogério Barbosa da Silva: Luciana Tonelli e Ana Caetano, que fazem parte de uma geração que também editou e espalhou a poesia de maneira coletiva, colaborando, por exemplo, com outros poetas aqui presentes, como Camilo Lara e Adriano Menezes, ambos falecidos precocemente. Na mesma época, e reconhecido por sua atividade múltipla e radial, está Marcelo Dolabela, aqui apresentado pelo professor Kaio Carmona.
Impresso e digital
Pensando a poesia em materialidades diversas, em especial nas mais analógicas, está o poeta Wagner Moreira, apresentado pelo pesquisador, designer e tipógrafo Mário Vinícius Ribeiro Gonçalves. Para finalizar esta lista estão Renato Negrão, poeta e performer mineiro, apresentado pela pesquisadora Fabiane Rodrigues, e Álvaro Andrade Garcia, poeta do impresso e do digital, no ensaio da pesquisadora Andréia Oliveira.
Outros tantos dossiês já saíram e puderam mostrar uma cena possível da poesia contemporânea, com outros nomes e variadas vozes de nosso estado. As pessoas estão em movimento, e a poesia costuma ir adiante, levando nossas possibilidades aos quatro cantos do planeta. Os critérios de escolha estão em rede: a visibilidade da produção, sem deixar de atentar para os segmentos, as formas de publicação, as materialidades, as vozes, tão singulares, mesmo quando fazem parte de coletivos editoriais. Estão em jogo o ativismo poético, a chamada ao fazer conjunto, a peculiaridade temática e/ou formal. Correndo todos os riscos, apresentamos um dossiê possível, com suas lacunas e ausências. Há aqui intermitências, vaivéns, promessas a cumprir, dúvidas, anseios, apostas.
Revista da Academia Mineira de Letras
- Número 82
- Lançamento em 25/05, às 20h, na sede da Academia Mineira de Letras (Rua da Bahia, 1466, Centro, Belo Horizonte) Versão digital integral grátis no site a partir do dia 26/05
ÁLVARO ANDRADE GARCIA
Poesia fractal
uns partem outros nunca
ao limite do infinito
a franja de pontos
o senso das fronteiras
o inexato encosto
entorno de ordem e caos
dois mares que se atracam
nunca e sempre vazantes
uns partem outros nunca
ao topo das lógicas
o absurdo entrevisto
o certo que não se palpa
com o entendimento
mas que se vê com olhos
que dão números ao infinito
(GARCIA, 1994, p. 3)
BRUNA KALIL OTHERO
a vó de uma amiga se casou com 12 anos.
teve o primeiro filho com 14, e não parou nunca mais.
(de ter filhos.)
era analfabeta. não sabia ler nem escrever,
assinava com a digital do dedão.
dizia que não se pode lavar o cabelo
durante a menstruação.
apanhava flores no jardim. também apanhava
do marido.
nasceu em 1933. um ano antes,
as mulheres haviam conseguido o voto. um ano depois,
graciliano ramos publicava são bernardo.
o nome dela era
odete.
fora deste poema que ninguém vai ler,
sua história
nunca será contada.
porque é só mais uma odete
entre tantas
outras.
CAMILO LARA
mais poeta e editor
menos dublê de produtor
prevejo sua trilha
pelas ruas do lugar
mãos acompanham o traçado
do próximo número:
fui ali, volto já!
(LARA, 2017, p. 93)
MARCELO DOLABELA
Maletta revisited #
eu estou: nas maravilhas do mundo
no Coliseu da cidade
no naufrágio dos poetas
ouvindo Scheherazade
e o zumzum da matilha do mundo
da Muralha da China, o barulho,
a baunilha dos vagabundos
única geração que ouve
a triste balada dos mouros
o transplante das décadas
a arcádia sem fé e sem ouro.
(DOLABELA, 2006, p. 39)
SIMONE DE ANDRADE NEVES
Nome ao boi
A marcha é limitada; é.
Não se marcha para sempre
sempre se marcha
mas não se marcha
para sempre.
A marcha é limitada
limitada pelo ato
ato de marchar
Não o destino
o para onde da marcha
mas a marcha é limitada
até o destino.
Após
novo marchar
Não o destino
Mas o ato
Marchar
até o destino.
E de lá marchar.
(NEVES, 2020, p. 20)
NÍVEA SABINO
O homem branco
Junto a seu bando
Admirado ao avistar
Congonhas de Sabará
Fez sua
Toda a riqueza
Que a natureza
Escolheu nos dar
Filhos de Nova Lima
A observar
O ciclo do ouro
Que se esvai
E nada fica
Pra gente contar
Extração de saúde
Gerações marcadas
Vidas minadas
De pulmões cheios
Falta fôlego no peito
Pra conseguir gritar
Filhos de Nova Lima
A observar
LUCIANA TONELLI
no começo perdia alguns minutos
depois passou a perder a hora
e todos os dias perdia as chaves
a carteira, a sombrinha, a passagem
não deu tempo ainda
perdia então completamente a calma
o olhar, o gesto, a graça
a presença, a possibilidade
tudo em algum tempo lá atrás
não deu tempo ainda
não se sabe quando nem onde ou por quê
suspeita-se que tenha sido aquele dia
em que perdeu o trem e ganhou
algo imenso para ser digerido
não deu tempo ainda
chegou então o tempo de assumir:
perdeu-se
mas não deu tempo ainda
IONE GIANNETTI FONSECA
Estátua nº 1
Inconsútil
Promessa
De lua:
Sou tua.
Intangível
Moeda
Futura:
Ser tua.
Inconteste
Neblina
Doçura:
Fui tua.
Flávia de Queiroz Lima
TRANSFIGURAÇÃO PELO AFETO
À Dra. Nise da Silveira
Será que a loucura existe
num território – exilada -
ou somente empresta o nome
à angústia encarcerada
na mente onde arde em chaga?
Será que esconde, amordaça
seu rugido submerso
nos confins do sofrimento?
Mora no estreito e recôndito
- um poço sem fundo e borda?
Será que transpõe o vácuo
quando a magia das cores
rompe o enigma, ganha traços,
trazendo à tona os fantasmas
agora em tela espelhados?
No silêncio pelo avesso
o desejo, estrangulado,
derramado, expõe as vísceras
- um rastro denso entre o onírico
e personagens esquálidos.
Quase se escuta o gemido
que trasborda das imagens
desassombrando o escuro,
emergindo como náufrago
do degredo onde vagava.
O tormento se amainando
quando jorra, extravasa,
na geometria sem régua
esboça romper os laços
e usa tinta como asas...
Figuras surpreendentes
surgem pousadas nos quadros.
Devassando labirintos,
a inquietude ali se exprime,
nos perfura como um dardo.
Transpõe muros, atravessa,
e o rascunho se revela,
brota o inimaginável:
cada pincel tange o afeto
- essa chave que abre espaços.
LINA TÂMEGA PEIXOTO
NÃO É PEDRA A MEMÓRIA
Escrevo debruçada na mesa
como se alinhavasse
o espaço
aos atavios do ermo.
Preciso alvorecer o esquecimento
empilhado na estante como um livro
em que se vai lendo lenta
a flora da alma imaginária.
Enquanto vou tangendo de dádivas
as vozes
e ser o silêncio um horrível
escarcéu recomposto
a palavra cai na água do copo
já não é pedra a memória.