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Elza Cataldo: 'O meu feminismo é muito peculiar, ligado a sentimento'

Diretora de 'As órfãs da rainha' revela o porquê de se interessar em narrar histórias de mulheres que também são 'histórias de esquecimento e de apagamento'


19/05/2023 04:00 - atualizado 18/05/2023 23:00
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Elza Cataldo
"Eu quis mostrar o sofrimento da mulher e não explorar a sexualidade da cena", Elza Cataldo, sobre a inclusão de uma cena de estupro em "As órfãs da rainha" (foto: Jonathas Marques Abrantes)

 
Mirian Chrystus
Especial para o EM
 
Para os que a conhecem, a palavra que define Elza Cataldo é “determinação”; para ela mesma, é “paixão”, mergulhar de cabeça nos projetos, não fazer “nada pela metade”. Assim foi desde o Doutorado em Educação, em Paris, onde estudou Política educacional, no começo dos anos 1980. Sem saber quase nada de francês, em três meses estava compreendendo e participando das aulas, promessa feita ao examinador que a selecionou.

Nos últimos dez anos, a paixão foi canalizada para a realização do filme “As órfãs da rainha”, que incluiu uma minuciosa pesquisa em arquivos de Portugal, Espanha e também morar na Bahia onde a Inquisição aportou em 1591, no Brasil. O filme, que também se passa naquele ano e está em cartaz nos cinemas, é a história de três órfãs protegidas pela rainha de Portugal que são mandadas para se casar e iniciar a colonização no país, numa fictícia Vila Morena, no Recôncavo baiano (a locação foi em Tocantins, Minas Gerais).

Para além da paixão pelo cinema, Elza Cataldo é uma feminista que, em todos seus filmes fala da história das mulheres, segundo ela, tão apagada, tão esquecida. A seguir, a entrevista com Elza Cataldo:
 
Você fez Doutorado em Educação, em Paris, na Sorbonne, e Cinematografia, no início da década de 1980, em Nanterre. Como foi a união das duas atividades?
Paris, em si, já é uma cidade cinematográfica e, na época, tinha uns trezentos cinemas. Eu estudava a utilização do cinema na Educação e frequentava um curso de Jean Rouche, do “cinéma verité”, em que aprendíamos a usar o corpo como instrumento (ele não admitia o uso do tripé). Tínhamos, inclusive, aulas de educação física para fortalecer pernas e braços para carregar a câmera por muitas horas. Eu via muitos filmes mais próximos da nossa realidade e que não passavam no Brasil: cinema japonês, indiano. Quando voltei, através de Albicoco, um francês, que queria criar salas de cinema no Brasil, e dois amigos, criamos o Cine Belas Artes, no qual fui programadora por 14 anos. A princípio, conciliei cinema e Universidade. Depois, me joguei sem rede de proteção, saí da UFMG e fiquei só com o cinema.

E o cinema enquanto fazer, como começou?
Como programadora, eu frequentava os principais festivais do mundo, Berlim, Veneza, Cannes. Meu critério de escolha era baseado em mim mesma: eu trazia os filmes que mais me tocavam. O perfil do Belas Artes era muito filme francês, mas também de outros países, o público queria uma diversidade estética. Nessas viagens, terminei ficando muito próxima do crítico Rubens Ewald Filho. Um dia ele me perguntou: “Você gosta tanto de cinema, por que não faz um filme?” Essa pergunta mudou a minha vida. Sete anos depois, quando estreou meu primeiro longa-metragem, “Vinho de rosas”, disse a ele que esta era a minha resposta.

Os seus filmes, documentários ou não, sempre têm uma perspectiva feminista. Mas quando a conheci, em 1974, você não era próxima do movimento feminista. Quando se deu esta aproximação?
O meu feminismo é muito peculiar, ligado a sentimento, ele também veio principalmente pelo cinema. Eu tinha leituras de cunho sociológico, afinal de contas eu estudei na Fafich, nos anos 1970. Mas ele ficou mais evidente quando abordei a vida de Joaquina, a irmã de Tiradentes em “Vinho de rosas”, em 2005. Ali comecei a entender o quanto a história das mulheres era uma história de esquecimento, de apagamento. A partir dali, todos os meus filmes, “A má notícia”, “O lunarium” e tantos outros curtas, falam sobre as mulheres.

No caso de seu mais recente filme, que acabou de estrear, também se conta uma história de mulheres que realmente existiram, as “órfãs da rainha”, uma categoria histórica que, você conta, foi desenvolvida pelo historiador Ronaldo Vainfas.
Elas foram jovens que viveram na corte portuguesa, mas afastadas, sob a proteção da rainha e que foram enviadas às colônias, como Goa, na Índia, e Brasil, a contragosto, praticamente sequestradas. Eu conto a história de três delas, o conflito com o ambiente selvagem, inóspito, a brutalidade dos homens. O medo, o terror delas na nova situação, as tentativas de adaptação.

A cena que mostra isso em seu grau mais extremo é o estupro de Brites por seu marido. Como foi fazê-la? A mais famosa cena de estupro do cinema é “O último tango em Paris” e Bernardo Bertolucci, o diretor, não avisou a atriz.
 E ele acabou com a vida dela, Maria Schneider. Eu vi muitos filmes de diretoras, Jane Campion (de “O piano”) é minha referência, e me pergunto (é uma pergunta difícil), se mulheres não filmam este tema de modo muito diferente. Nós fizemos o oposto. Tudo foi muito preparado, conversado, desde o uso da câmera no alto, em plongé, focando o rosto da atriz e o homem de costas. Eu quis mostrar o sofrimento da mulher e não explorar a sexualidade da cena. Até porque, hoje, há uma discussão sobre isso, se mostrar uma cena de sexo ou violência não termina por inspirar quem assiste. Quanto à realização da cena, há atores que quando vão participar de uma cena de violência, se afastam, tratam mal a companheira, para dar “um clima”. Mas o ator Alexandre Cioletti foi muito cuidadoso e delicado. Mesmo assim, quando terminou a filmagem, todos no estúdio choravam.

E por que você quis esta cena no filme?
Porque eu queria mostrar as consequências na vida das personagens estupradas. Brites, e sua irmã Leonor, que é estuprada na capela (a cena é apenas sugerida) mudam, ficam mais tristes. Depois Leonor, diante do Inquisidor que chega ao povoado, denuncia o estupro por seu cunhado, marido de Brites. Esta cena, da denúncia ao inquisidor, eu adaptei da vida real, ela foi retirada de um Livro da Inquisição, é a primeira denúncia de estupro registrada no Brasil por Luiza D’Almeida, em 1591, que vivia num engenho. Naquele momento histórico, era a grande oportunidade, porque não havia nenhum lugar pra isso.

Já Brites que era maltratada e estuprada cotidianamente, tenta, de todos os modos realizar o desejo do marido, dar-lhe um filho.
Ela tenta desesperadamente se adaptar, construir uma relação no casamento. Como, até hoje, tantas mulheres fazem, apesar de todos os abusos e violências sofridos no ambiente doméstico.

Leonor termina se acertando com Escobar, um judeu culto e tolerante. E Mécia larga tudo e vai embora com um indígena.
Mécia se apaixona por um indígena, vai embora com ele para o sul - mas, a sua paixão é muito maior, é principalmente pela floresta, que, apesar de proibida, vivia lá, pintando e desenhando.


“As órfãs da rainha”

  • De Elza Cataldo 
  • Em cartaz em Belo Horizonte 


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