O vaivém de 300 cartas, trocadas no período compreendido entre 1928 e 1945, muito fala da amizade de duas mentes brilhantes, que compartilhavam a obsessão de encontrar a alma de um país que, se fizera República, mas, antes do Modernismo, vagava perdida entre a herança portuguesa e os modos franceses. Escrever “brasileiro”, rasgar o território continental em imersão na cultura popular que abraça mitos e lendas do Nordeste e do Norte amazônico, assim como do barroco de Aleijadinho e da arte colonial das Minas Gerais, são facetas cultuadas na biografia do autor de “Macunaíma, o herói sem nenhum caráter” (1928).
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Mário de Andrade (1893-1945), o segundo escritor brasileiro mais estudado depois de Machado de Assis, - que foi também ensaística, musicista, folclorista, professor e homem público - viajou muito além de tão densas e diversificadas paisagens desvendadas em suas obras literárias. Deixou a marca indelével de suas peripécias à caça do espírito brasileiro, na construção de um campo completamente negligenciado pela Primeira República oligárquica (1889-1930) e ainda hoje, sempre a gritar por mais atenção: o inventário e a proteção do patrimônio cultural e histórico do país. E ele parte de Minas Gerais, nessa busca.
A história é revelada em “Correspondência anotada” (Todavia), - com as cartas trocadas, algumas inéditas, entre Mário de Andrade e Rodrigo Melo Franco de Andrade (1898-1969), advogado e jornalista belo-horizontino, duas importantes personagens do modernismo brasileiro. O livro foi organizado pela neta de Rodrigo Melo Franco de Andrade, Maria de Andrade, que é pesquisadora, editora, socióloga e doutora em Letras. Foi um minucioso processo de garimpagem e busca pelos arquivos do Iphan; do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP), responsável pela guarda da coleção pessoal de Mário de Andrade; e do Arquivo-Museu de Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa (AMLB). A organização partiu do livro “Mário de Andrade: cartas de trabalho, correspondência com Rodrigo Melo Franco de Andrade”, publicado em 1985 pela museóloga Lélia Coelho Frota (1938-2010). Recém-lançada pela Todavia, “Correspondência anotada” é apresentada por Clara de Andrade Alvim, filha de Rodrigo e reproduz o prefácio de Lélia Coelho Frota.
“Mário, vão aí as fotografias das obras do Aleijadinho para V. escolher as que devem ilustrar seu artigo. Incluí uma da igreja das Mercês de Cima, cujo pórtico me parece ter sido ornado por ele também. V. dirá se foi mesmo ou não (...)”, escreve Rodrigo a Mário de Andrade, em 11 de outubro de 1928, quando organizava edição especial de “O Jornal”, do grupo de Assis Chateaubriand sobre Minas Gerais. Rodrigo foi colaborador do Estado de Minas e de diversos outros veículos. Identificado com o ideário modernista de 1922, abriu espaço em todos eles, inclusive na Revista do Brasil, a partir de 1926, depois que esta foi comprada por Assis Chateaubriand do escritor Monteiro Lobato. Rodrigo encerra essa carta a Mário de Andrade, apontando para personagens que, dois anos depois, estariam no centro da Revolução de 1930 - articulada por Minas Gerais, Paraíba e Rio Grande do Sul - a partir da ruptura, de São Paulo com a política do “café com leite”.
“Já estou com saudade de São Paulo. Chegando aí depois de onze anos, tive a impressão de quem sai da província e dá pela primeira vez na capital, no grande centro. O bairrismo de Inah (esposa de Prudente de Morais) exultou com isso, ao que me disse o Manuel. Em todo caso, não escrevo essas coisas em jornal como queria o Chateaubriand, porque podem pensar que eu também, mineiro do centro, estou preparando terreno para aderir à candidatura de Júlio Prestes. Na verdade, os outros começam assim mesmo, dizendo que São Paulo é isso e aquilo e acabam pedindo dinheiro ao Rolim Teles. Seguro morreu de velho”. Um dos maiores fazendeiros cafeicultores do Brasil à época, Rolim Teles (1887-1980), apoiou a indicação de Júlio Prestes para a sucessão de Washington Luís, que rompia com a alternância entre Minas e São Paulo, à frente da Presidência da República. Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraíba não apoiam Júlio Prestes, pegam em armas e elevam Getúlio Vargas ao poder central.
Combate existencial
A obra epistolar de Mário e Rodrigo desvenda os entraves burocráticos e a articulação política no governo Getúlio Vargas para a concepção e fundação do Sphan (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), - atualmente Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) -, essencial para a constituição de uma identidade nacional. As cartas também abordam a luta para a manutenção do órgão em operação, nos governos que se seguiram. O tamanho do desafio proposto pelo Modernismo, de busca da “alma brasileira”, em detrimento da importação de estéticas, foi assim descrito por Mário de Andrade, em 7 de janeiro de 1940, na coluna “Vida Literária”, no Diário de Notícias do Rio de Janeiro: “Conscientemente ou não (em muitos conscientemente, como ficará irrespondivelmente provado quando se divulgarem as correspondências de algumas figuras principais do movimento), o Modernismo foi um trabalho pragmatista, preparador e provocador de um espírito inexistente então, de caráter revolucionário e libertário”.
O Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan) foi criado em 1936, com a aprovação do projeto redigido por Mário de Andrade, a pedido do então ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema. Mario, que até então dirigia o Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, indicou o nome de Rodrigo Melo Franco de Andrade para a direção do Sphan, função assumida em 1937. Para ambos, trata-se de uma causa existencial: Rodrigo, o primeiro presidente, dirigiria o órgão pelas três décadas seguintes, e mesmo em 1967, quando deixou o cargo, manteve-se no Conselho Consultivo até a sua morte, dois anos depois. A interação entre a vida e a obra, se dá, nas palavras de Mário em carta a Rodrigo datada de 27 de fevereiro de 1942, na luta diária e atitude preconcebida, jamais abandonada “de dar a toda a minha (sua) obra esse dinamismo e essa transitoriedade de um combate em vida”. Em carta testamento, Mário de Andrade legou ao patrimônio histórico brasileiro o sítio Santo Antônio, de sua propriedade, em São Roque (SP), um conjunto de edificações bandeiristas, inclusive casa-grande e capela, construído, por volta de 1640, a pedido do bandeirante capitão Fernando Paes de Barros.
Conhecida como a “fase heroica”, os primeiros anos do Sphan, sempre com parcos recursos, foram voltados à institucionalização do serviço do patrimônio histórico no país, com a redação de legislação específica, a introdução da figura de tombamento, a preparação de técnicos para atuarem na área, a realização de inventários, estudos e pesquisas para a conservação, consolidação e restauração de monumentos. Mário e Rodrigo partem, sobretudo de Minas Gerais, na jornada nacional para a identificação, recuperação e proteção de pinturas antigas, esculturas e documentos. Criam diversos museus: o Museu da Inconfidência, em Ouro Preto (1938); das Missões, em Santo Ângelo (1940); do Ouro, em Sabará (1945). Rodrigo seguiu após a morte de Mário, em 1945, instalando o Museu do Diamante, em Diamantina (1954); da Abolição, em Recife (1957); o Regional de São João del Rei (1963), entre outros.
É na pesquisa sobre “O Aleijadinho”, que Mário de Andrade - assim como faria seu último livro sobre o padre Jesuíno do Monte Carmelo - anota a originalidade das esculturas e obras arquitetônicas do século 18, que marcam a presença racial dos dois expoentes da arte brasileira, filhos de pais brancos e mulheres pretas, respectivamente uma escrava e uma alforriada. “Mario constata o surgimento de uma autoimposição, uma autoafirmação que teria se sobreposto às injunções opressoras da metrópole branca e corresponderia a um impulso de independência cultural”, anota a crítica literária Clara de Andrade Alvim na apresentação de “Correspondência anotada”.
Rodrigo e Mário tiveram a colaboração próxima de expoentes da vida artística e cultural brasileira, como Oscar Niemeyer, Vinícius de Morais, Gilberto Freyre, Renato Soeiro e Lúcio Costa. Em sua correspondência, mencionam, em inúmeras passagens, as interações e apoio também dos amigos comuns Carlos Drummond de Andrade, Pedro Nava, Manuel Bandeira, Sérgio Buarque de Holanda, Alcântara Machado, Prudente de Morais Neto (Prudentinho ou “Pru”). Tais cartas documentam a história da vida artística e intelectual brasileira na primeira metade do século 20, e são de tal valor, que Mário de Andrade, antes de uma cirurgia em 1944, deixou ao irmão Carlos uma carta-testamento. Nesta priorizou para a partilha dos bens culturais que “junt(ou) e ganh(ou)”, a volumosa correspondência com os amigos modernistas, principalmente Carlos Drummond de Andrade. Para proteger a intimidade de seus interlocutores, Mário de Andrade sublinhou que fosse “fechada e lacrada” pela família por cinquenta anos após a sua morte.
Em 14 de fevereiro de 1945, onze dias antes de sofrer um enfarto no miocárdio fulminante, Mário de Andrade receberia do amigo a última carta. Nela, Rodrigo elogia a biografia do padre Jesuíno do Monte Carmelo, que acabara de ser concluída por Mário de Andrade, em volume da série de publicações do Sphan, agradece a dedicatória e avisa que o espera no Rio de Janeiro, no mês seguinte. A obra foi publicada postumamente e Rodrigo, em prefácio não assinado, salienta ter sido aquele o último e mais meditado livro de Mário, o único em grandes proporções nos domínios da arte colonial brasileira. À pesquisa sobre padre Jesuíno, Mário de Andrade lhe dedicou os seus derradeiros anos. E em carta datada de 7 de março de 1942 a Rodrigo, descreveu a profunda empatia com o seu biografado: “Você compreende; de tanto estudar e ver Jesuíno, acabei amando Jesuíno, e desconfio que estou trelendo um bocado. As coisas dele me arrebatam e preciso adquirir mais equilíbrio”.
“Correspondência anotada - Obra epistolar: Mário de Andrade e Rodrigo Melo Franco de Andrade”
- Organização de Maria de Andrade
- Notas de Clara de Andrade Alvim e Lélia Coelho Frota
- Todavia Editora
- 528 páginas
- R$ 104,90
- E-book: R$ 69,90