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Estado de Minas PENSAR

´Há uma sinceridade profundamente dolorida em 'O turista aprendiz''

Pesquisadora traduziu para o inglês o livro com relatos das viagens de Mário de Andrade pela Amazônia e outras partes do Brasil no início do século 20


26/05/2023 04:00 - atualizado 26/05/2023 00:49
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Flora Thomson-DeVeaux
Flora Thomson-DeVeaux: tradução de uma "pequena joia bruta" de Mário de Andrade (foto: Reprodução/Twitter)
A tradutora e pesquisadora Flora Thomson-DeVeaux passou parte da pandemia ‘viajando’ pela Amazônia e outras partes do Brasil. Sem poder sair do Rio de Janeiro, onde mora e trabalha, ela mergulhou no trabalho de traduzir “O turista aprendiz”, relatos de Mário de Andrade sobre as viagens que fez pelo país na primeira metade do século 20. “Foi um deleite puro traduzir enquanto eu estava basicamente presa em casa por motivos pandêmicos”, lembra Flora. “Apesar de toda a professada dificuldade em capturar aquilo que estava vendo, Mário consegue cristalizar as paisagens mais espantosas: uma multidão inimaginável de pássaros em revoada, a metamorfose de um amanhecer amazônico, o bote magnífico de um jacaré-açu abocanhando um pato”, destaca.
Responsável pela mais recente tradução em inglês de “Memórias póstumas de Brás Cubas”, Flora Thomson-DeVeaux tem PhD em Português e Estudos Brasileiros pela Brown University. Pesquisadora conhecida também pela produção de podcasts como “Praia dos ossos”, da Rádio Novelo, ela chama “O turista aprendiz” de “pequena joia bruta” e lembra que, após a leitura, os relatos grudaram nela “como um carrapato”. “Me identifico muito com o livro, tem uma sinceridade profundamente nele”, acredita. 

“Não considero nada praticamente intraduzível (haja vista a tradução magnífica vindoura de ‘Grande Sertão: Veredas’, da Alison Entrekin), porque sempre há a possibilidade de uma transcriação mais ou menos radical em relação à obra original”, avalia Flora Thomson-DeVeaux ao ser questionada sobre os desafios da tradução publicada pela Penguin Classics. “O que dificulta, muitas vezes, é a falta de contexto para a obra ser compreendida pelo público-alvo.” Ela também revelou os títulos de obras brasileiras que teria interesse em traduzir. “Tem alguns livros estranhos na minha prateleira mental que penso com carinho – entre eles ‘Armadilha para Lamartine’, de Carlos e Carlos Sussekind, e ‘Os ratos’, de Dyonélio Machado –, mas não tenho certeza dos meus próximos passos. Tenho sempre a tentação de cair novamente nos braços do Machado”, conta. 

A seguir, a entrevista de Flora Thomson-DeVeaux ao Pensar sobre a tradução de “O turista aprendiz” (o original em português está disponível no site do Iphan).

O que a levou a traduzir Mário de Andrade e, na obra dele, o que a fez escolher “O turista aprendiz”?
A química que me leva a querer traduzir uma obra é um pouco misteriosa para mim até hoje; é quase como a química que a gente sente ou não com uma pessoa, o famoso “bateu o santo”. É uma comichão que vem quando você lê, uma sensação de ‘nossa, como será que eu traduziria isso?’ que não tem necessariamente a ver com estratégia editorial ou alguma afinidade mais óbvia, mas para mim é muito difícil de resistir. 

No caso, não foi exatamente uma decisão calculada essa de traduzir Mário e, mais especificamente, “O turista aprendiz”. Depois de “Brás Cubas”, eu quis traduzir um livro que nunca tivesse sido traduzido; e “O turista” foi um livro que grudou em mim que nem carrapato. Li pela primeira vez na época da Flip que homenageava ele e, desde então, nunca mais consegui tirar “O turista” da minha cabeça. O livro é uma pequena joia bruta – e acredito que, por isso, Mário nunca chegou a destruir o manuscrito, como ele fez com tantos outros; mas ele também não conseguiu publicá-lo em vida. É um livro que o incomodava, e é um livro que incomoda quem lê, no melhor sentido: um registro de paisagens estonteantes e de expectativas frustradas, com arroubos de êxtase em meio a longos estirões de tédio sarcástico. 

Mário se define na introdução como um “antiviajante”. Qual a diferença de “O turista aprendiz” para outros relatos de viagem?
Eu abro o meu prefácio brincando com Tolstói, dizendo que todos os viajantes felizes se parecem, mas cada viajante infeliz é infeliz à sua maneira. Mário realmente não é um viajante tranquilo; ele começa a viagem arrependido de estar saindo de casa, leva um balde de água fria logo na chegada ao Rio de Janeiro, ao constatar que a entourage que ele imaginava tinha evaporado, e termina a viagem brincando que vai se trancar em casa e jogar a chave fora. E o resultado disso é que “O turista aprendiz” é a crônica de uma viagem feita, e também a crônica de outras tantas viagens não feitas – a viagem imaginada antes de sair de São Paulo, a viagem dos devaneios no tédio lento dos trechos monótonos do rio, as viagens que Mário passa a inventar depois de constatar o quão limitado ele vai ser enquanto membro da comitiva da Dona Olívia. 

“O turista” carrega uma angústia constante, uma dificuldade imensa do Mário de se entregar ao momento e se sentir à vontade fora de lugar, e acredito que foi essa angústia, essa tensão permanente, que fez com que o livro ganhasse um lugar cativo na minha prateleira. Eu me identifico muito com o livro. Tem uma sinceridade profundamente dolorida nele. 

Quais foram os maiores desafios ao traduzir para o inglês? E qual a parte dos relatos mais a impressionou?
Os maiores desafios nesta obra tinham a ver com seu aspecto polifônico e etnográfico. Mário viaja com os olhos e ouvidos abertos, catando falas no ar como quem captura borboletas, e trazendo para o texto. O resultado é necessariamente fragmentado, impossível de reconstituir com alguma fidelidade. Quando traduzi “Memórias póstumas de Brás Cubas”, a minha maior dificuldade no começo era estabelecer justamente a voz do narrador defunto; uma vez que eu conseguia “ouvir” Brás Cubas, tudo começou a fluir melhor. Com “O turista”, não é uma voz, são muitas – e não são só as vozes que Mário registra a seu redor. Ele também vai alternando entre personalidades, uma mais íntima, outra mais poética, um tom pseudo-antropológico pomposo, outro mais folclórico... 

São muitos momentos no texto que me marcaram, e foi um deleite puro traduzir “O turista” enquanto eu estava basicamente presa em casa por motivos pandêmicos. Apesar de toda a professada dificuldade em capturar aquilo que estava vendo, Mário consegue cristalizar as paisagens mais espantosas: uma multidão inimaginável de pássaros em revoada, a metamorfose de um amanhecer amazônico, o bote magnífico de um jacaré-açu abocanhando um pato. 

Qual o Brasil que Mário de Andrade mostra aos brasileiros - e, agora, aos estrangeiros - com “O turista aprendiz”?
O Brasil do livro é um Brasil que não se reconhece, um Brasil cindido. A viagem que Mário faz chega a colocar em questão qualquer noção de país. O que une a vivência urbana paulistana dele à experiência de vida do rapaz em Barreira do Tapará que carrega lenha no vapor e quer aprender a ler “mais que dinheiro”? Tem uma cena emblemática em Tefé em que os viajantes assinam um livro de visitas, indicando a origem de cada um; tem gaúcho, paulista, e amazonense, e o Mário é o único que assina simplesmente como “brasileiro” – mas essa declaração está constantemente sendo colocada em xeque. Para o público estrangeiro, o livro é uma janela para a Amazônia de 1927, emoldurada por uma perspectiva muito diferente da vasta maioria dos relatos amazônicos: temos um narrador que ao mesmo tempo se identifica e não se encontra ali. 
 
 

“The apprentice tourist” 

  • Mário de Andrade
  • Tradução para o inglês: 
  • Flora Thomson-DeVeaux
  • Penguin Classics
  • 205 páginas
 

Nova tradução de “Macunaíma” 

A obra mais conhecida de Mário de Andrade ganhou nova tradução em inglês. “Macunaíma: the hero with no character” foi publicado pela editora New Directions, nos Estados Unidos, e pela Fitzcarraldo, no Reino Unido. A tradução é de Katrina Dodson, a mesma que levou para o inglês os “Contos completos” de Clarice Lispector. “Macunaíma” é um romance, ou uma ‘rapsódia’ como Andrade o chamava, que revela uma linguagem experimental capaz de misturar agressivamente o português coloquial com o tupi e outras línguas indígenas ao lado de palavras com raízes africanas, refletindo a colisão sincrética de comunidades do país”, explica Katrina Dodson, em seu site.
 
 


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