Missão cumprida: a chama está viva
Antônio Sérgio Bueno *
Especial para o EM
Fala-se muito que nós, brasileiros, somos um povo sem memória. O que acontece, de fato, é que poucos de nós temos acesso a obras de arte que funcionam como espelhos, nos quais podemos reconhecer nossa identidade cultural. A obra de Pedro Nava é um desses espelhos mais ricos. Otto Lara Resende escreve sobre “Baú de Ossos” palavras que valem para o conjunto da obra de Nava: “Considero ‘Baú de Ossos’ um livro fundador, no sentido de que sozinho dá notícia de uma cultura. Mais importante para a literatura brasileira do que Marcel Proust para a cultura francesa.”
Nava tinha consciência de que o memorialismo era um gênero anfíbio: “Se eu fosse historiador, tudo se resolveria. Se ficcionista, também. Acontece que o memorialista é forma anfíbia, ora tem de palmilhar as securas desérticas da verdade, ora de nadar nas possibilidades oceânicas de sua interpretação.” O primeiro aspecto que o leitor de Nava deve observar é a relação do autor-narrador com o espaço vivido. Na primeira frase do “Baú de Ossos” ele se apresenta numa paráfrase de Eça de Queiroz, identificando-se em termos espaciais: “Sou um pobre homem do Caminho Novo das Minas dos Matos Gerais”.
Quando vive sua juventude em Belo Horizonte, ele se identifica como “um sujeito do Bar do Ponto” (o Bar do Ponto era o reduto da juventude intelectual da capital mineira). As ruas de Belo Horizonte são mostradas como um espaço vivo para o leitor. Um segundo aspecto importante a ser observado é a relação do narrador com o corpo. Vale lembrar que Pedro Nava era médico e um excelente anatomista. O corpo é tratado como espetáculo, um teatro anatômico, que privilegia o baixo corporal. O terceiro ponto a ser levado em conta é a figuração, o lado artista plástico do autor. Nava tinha ouvido de poeta e olho de pintor. Ele dizia que sua primeira manifestação artística tinha sido a pintura, o desenho. Em um trecho de “Beira-Mar”, Nava descreve um pôr do sol na capital mineira como se pintasse um quadro: “A tela esplendia um instante e logo desmerecia quanto mais mergulhava o sol.” Mais para o fim da vida, Nava deixa a medicina pela literatura. Na medicina ele combatia a morte, sabendo que perderia a última batalha. A literatura era um meio mais eficaz de vencer a morte. Como ele próprio escreveu, “todo ser humano tenta criar uma marca para se perpetuar, manter viva a sua chama.” Pedro Nava cumpriu esse objetivo: sua chama está mais viva do que nunca.
* Antônio Sérgio Bueno é professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
Autor de harmônicas sinfonias barrocas
André Botelho *
Especial para o EM
Numa entrevista ao Caderno B do Jornal do Brasil, de 12 de julho de 1976, Pedro Nava referia-se às “Memórias” que vinha publicando desde 1972, com “Baú de ossos”, como um tipo de “sinfonia mineira”. A metáfora musical pode parecer algo inusitada para esse que se mostra um narrador passional por excelência do memorialismo brasileiro. O narrador cordial, cujas preferências, amores e ódios formam o eixo do exercício em nada pretendido imparcial de recriar o passado. Sua força está antes na parcialidade que assume. Com ele e outros de sua geração mineira, como Drummond com “Boitempo” (1968) e Murilo Mendes com “A idade do serrote” (1968), sobretudo, Nava forja o melhor do memorialismo modernista brasileiro. Mas a principal diferença entre esses experimentos narrativos é que Nava sempre olha com certa simpatia para os costumes que insistia em criticar acidamente. Por isso, sua prosa é composta por movimentos tão contrastantes.
Contrastante, porém, não significa, necessariamente, conflituoso. Ao contrário, e isso aprofunda a qualidade diferencialmente barroca do seu experimento, pois conflitos são harmonizados, arestas são arredondadas. Então, a “sinfonia mineira” de que se trata, talvez, não seja exatamente a clássica que acabou se rotinizando na vida musical moderna, mas a sua antecessora barroca (que, aliás, sobreviveu na abertura das óperas). Em sua forma básica de movimentos de andamentos tão contrastantes (o primeiro e o último rápidos), a narrativa de Pedro Nava ganha sentido e reverberação. Como em volutas barrocas da memória, esses são momentos em que a empatia do leitor com os pontos de vistas desse narrador tão afeito à oralidade mineira é testada. Pontos de vistas no plural e em contrastes, alguns deles violentos, cujo efeito é não apenas a vertigem, mas certa desorientação dos sentidos, mas que logo podem se harmonizar, musicalmente. Uma sinfonia inacabada, as “Memórias” se realizam e se expandem como experiência estética e interpretação do Brasil perenes e abertas aos leitores e às leitoras-ouvintes de hoje.
* André Botelho é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, autor da apresentação de edição de “Baú de ossos” e estará na abertura do encontro “MinasMundo: Pedro Nava 120 anos”, em 05/06, no IFCS/UFRJ (Largo de São Francisco 1, sala Evaristo de Moraes, Centro, Rio de Janeiro)
Trecho de “Beira-mar”
“Quem queria ir até as lindes do Grande Bar do Ponto podia descer um pouco de Bahia, renteando o triângulo ocupado pelo Correio antigo. Era justamente o lado onde se abria o portão que dava entrada ao misterioso Colis-Postaux e logo se batia de cara com a reta do Viaduto Santa Teresa. Essa construção de cimento armado comporta um grande vão e sua estrutura é levantada por enormes arcos de concreto que têm largura de cerca de metro. Sua altura é vertiginosa. Pois esse era o caminho escolhido pelo poeta de minha geração quando na tarde para sua casa, na Floresta. Em vez da pista ponte escolhia suas parábolas de sustentação e passava por cima delas aos ventos vendo rolar embaixo os trens da Central.
Um dia foi interpelado, cá de baixo, por um guarda-civil. O senhor não pode usar esse caminho – e esteje preso. Das alturas veio resposta anuente. Aceito a prisão mas o senhor venha me prender cá em cima. O guarda topou o desafio, aliviou-se das botinas, da túnica e começou a subida. Ao fim dos poucos metros deu-se conta da elevação em que se achava e tomado de vertigem e aquela doçura frouxa do períneo que nos vem na borda dos abismos, ajoelhou, pôs-se de gatinhas, atracou firme no semicírculo e deixou-se escorregar de marcha à ré. Embaixo recompôs-se e para salvar a face, gritou para as negruras da noite que relaxava a prisão. O poeta tranquilo iniciou sua descida pela outra vertente. Depois de Bahia o passeante podia continuar a circular os Correios, agora subindo Tamoios no trecho de que já falei, onde ficavam a casa do Doutor Haberfeld e a dos irmãos Caldeira. (A um, vi morto quando eu era menino e ele me assombra até hoje. Já contei essa história – uma das gêneses de meu poema ‘O defunto’).
Pedro Nava nasceu em Juiz de Fora em 5 de junho de 1903 e morreu no Rio de Janeiro em 13 de maio de 1984. O trecho acima foi retirado do livro “Beira-mar”, que narra a juventude do autor, em Belo Horizonte, de 1921 a 1926.