Jornal Estado de Minas

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Em 'Gênero queer - Memórias', Maia Kobabe se descobre como não-binária

Foram quase 30 anos de frustração com o próprio corpo para que Maia Kobabe, cartunista dos EUA, descobrisse o real motivo de tanta aversão: a falta de identificação com o gênero feminino, com o qual nasceu, e com o masculino. Kobabe é uma pessoa de “gênero queer”, também conhecido como não-binário.





O processo de descoberta não foi fácil, principalmente quando se leva em consideração o fato de Kobabe ter nascido no final da década de 1980 e passado sua juventude entre os anos 2000 e 2010, período em que discussões a respeito de identidade de gênero eram praticamente inexistentes - mesmo nos EUA, onde debates sobre esse tema avançaram de maneira muito mais rápida do que no Brasil.

Os percalços - e foram muitos - de Kobabe nesse processo de autoconhecimento e autodescoberta são o tema da HQ “Gênero queer - Memórias”, que chega ao Brasil agora em junho pela editora Tinta da China.

Lançado originalmente em 2019, com uma tiragem tímida para os padrões editoriais - foram 5 mil cópias -, “Gênero queer - Memórias” passaria despercebido, não fosse uma ação orquestrada de autoridades do Partido Republicano, em 2021, na Carolina do Norte, Carolina do Sul, Texas e Virgínia solicitando a proibição da HQ nas bibliotecas escolares por ela ser “pornográfica”.





Como dezenas de escola obedeceram os parlamentares, antes mesmo que qualquer debate fosse feito ou mesmo que decisões jurídicas a respeito do tema fossem tomadas, criou-se um mal-estar entre progressistas e liberais, dando um caráter ainda mais político a uma discussão insólita, baseada na seguinte questão: quem deve decidir os títulos que integram os acervos das bibliotecas escolares?

A resposta deveria ser óbvia: bibliotecários e profissionais especializados na educação escolar. Contudo, em mais um episódio de polarização política, personalidades influentes da direita e da esquerda norte-americana tomaram as rédeas do debate, de modo que Kababe se viu em meio ao fogo cruzado, tendo sua obra questionada.

Muitas escolas, por medo de boicotes ou represália de pais de alunos, acabaram por acatar a intimidação travestida de sugestão dos parlamentares republicanos e retiraram “Gênero queer - Memórias” de seus acervos. Detalhe: em nenhuma escola a leitura era obrigatória, a HQ apenas integrava o acervo da biblioteca.

O debate atingiu proporções tão grandes, que, de acordo com a Associação Americana de Bibliotecas e com a PEN America, organização que defende a liberdade de expressão nos EUA, “Gênero queer - Memórias” se tornou o livro mais contestado no país em 2021.





Conforme mostrou o "The New York Times", as pessoas que pressionaram pela retirada do livro dos acervos escolares reclamavam do conteúdo sexual que há na HQ. À época, o debate ganhou força, porque se discutia nos EUA direitos dos trangêneros, após autoridades republicanas de diversos estados terem apresentado projetos de lei que criminalizavam a aplicação de tratamentos médicos a crianças transgênero e que proibiam a discussão sobre identidade de gênero nas escolas. 

Mas “Gênero queer - Memórias” é, de fato, uma obra pornográfica? 

A resposta é não. As pessoas se esquecem que, por definição, a pornografia vai além da exposição da prática sexual, tendo como objetivo estimular a excitação sexual.

Há, sim, em “Gênero queer - Memórias”, cenas que remetem à práticas sexuais - sendo uma única representação de sexo explícito -, no entanto, são cenas fundamentais para o desenvolvimento e entendimento da história. Não está ali o sexo pelo sexo, de maneira vulgar e indecente.





Assim, pedir o boicote da HQ seria equivalente a pedir a censura de "Cama francesa" (1646), de Rembrandt; e "O jardim das delícias terrenas" (1504), de Bosch, telas constantemente exploradas em aulas de história da arte.

Nada disso tem caráter pornográfico. Em termos etimológicos, pornografia vem do grego “pórne” (prostituta), e “pórnos” (que se prostitui), além de “pornographos” (autor de escritos sobre a prostituição). Todos esses termos, portanto, remetem a uma ideia de negócio, compra e venda, justamente o contrário do que pretendia Rembrandt, Bosch e, agora, Kobabe.

Com “Gênero queer - Memórias”, Kobabe pretende mostrar aos não-binários qual a condição deles e o que, ou a quem essas pessoas podem recorrer para não sofrerem o que sofreu e que foi narrado no livro.





Na HQ, Maia Kobabe se expõe sem pudores e de maneira corajosa. No início do livro, revela que não tinha o menor interesse em escrever uma autobiografia. Só o fez porque estava fazendo um mestrado em quadrinhos e uma das disciplinas exigia dos alunos uma produção em graphic novel da própria vida. 

“Uma boa forma de começar é fazer uma lista com os seus maiores segredos - pelo menos um deles pode render uma história”, disse a professora. “Nunca”, respondeu Kobabe mentalmente. “Ninguém mexe nos meus segredos. Eles são meus!”, completou.

Kobabe, no entanto, foi se rendendo à proposta da professora. Colocou no papel seu processo de descoberta como pessoa de gênero não-binário. Para isso, lembrou desde os tempos de infância, quando não percebia diferenças que tinha com vizinho e melhor amigo, Galen.





Na escola, tinha comportamentos tido como de meninos, o que confundia seus coleguinhas. “Afinal, você é menino ou menina?”, era a pergunta que Kobabe mais ouvia. No entanto, não desagradava. Essa dúvida dava uma sensação de bem-estar.

A adolescência, no entanto, foi um dos períodos mais difíceis. A começar pela primeira menstruação, seguida das cólicas, insuportáveis. Quando chegou na época em que os amigos começaram a namorar, Kobabe não sentia atração por meninos nem por meninas. Tinha vontade de ter um corpo masculino, mas não de se relacionar com uma mulher. Não entendia onde se encaixava.

Tentou até engatar dois relacionamentos, um heterossexual e outro homossexual, mas não havia libido e nem mesmo interesse em manter um namoro. 

Os términos, narrados sem constrangimentos por Kobabe, foram frios e secos - ambos foram por telefone -, de modo que, por muito tempo, Kobabe alimentou a ideia de que seria uma pessoa fleumática.





Quando fez o primeiro exame papanicolau, experimentou pela primeira vez uma penetração. “Senti como se tivesse sido esfaqueada no corpo inteiro e com isso veio uma onda de completo horror”, escreveu. “O que meu corpo me contou ali foi que essa invasão do meu interior físico pelo mundo exterior era uma coisa errada num nível profundo demais para ser posto em palavras”, continuou.

O trauma aumentou em Kobabe a aversão ao próprio corpo e deu a certeza de que fazer as pazes com ele seria algo impossível. Só descobriu que existia pessoas de gênero não-binário quando teve contato com o livro “Tocando o nervo: o eu no cérebro”, da filósofa analítica Patricia Churchland.

Com Churchland, Kobabe aprendeu de maneira biológica como que era possível ter um órgão sexual feminino, mas o cérebro masculinizado. Aprofundou os estudos sobre o tema e descobriu o gênero neutro (com os pronomes “elu” e “ile”), justamente o que procurava para se definir.

Kobabe se encontrou e, finalmente, achou quem compartilhasse experiências e dramas semelhantes devido a uma falta de identidade. Para essas pessoas, "Gênero queer - Memórias” é um importante guia para a autodescoberta. Já para quem se enquadra na heteronormatividade, a HQ é um importante manual para quebrar preconceitos. 
 

“GÊNERO QUEER”

  • Maia Kobabe
  • Clara Rellstab
  • Tinta da China
  • 240 páginas
  • R$ 99