Jornal Estado de Minas

PENSAR

Dois livros reúnem trabalhos do poeta Antonio Carlos Secchin

 

Leonardo Antunes *

Especial para o EM 

 

Perdoe o leitor, perdoe a leitora, se eu acaso fugir à dicção que se espera de uma resenha de livro. É que faço agora a resenha de “Papéis de poesia II” e “Papéis de prosa”, saborosos volumes assinados pela mão do poeta, crítico literário, professor emérito da UFRJ e acadêmico da ABL Antonio Carlos Secchin. Ambos vieram à lume em 2022, pela Editora da Unesp. Somados ao primeiro “Papéis de poesia” (Martelo, 2014), fecham um tríptico digno de nota e que já seria suficiente para chamar-se de “obra completa” de algum literato menos prolífico. 





 

No caso, contudo, são a reunião da “outra” produção crítica de Secchin, que recentemente também lançou seu “João Cabral de ponta a ponta” (Cepe, 2020), um calhamaço de quase 600 páginas, com estudos sobre os 20 livros que compõem a obra cabralina. A essas produções no terreno crítico, somam-se ainda a sua poesia autoral, reunida em “Desdizer” (Topbooks, 2017), sua ficção autoral, reunida em “Ana à esquerda” (Martelo, 2022), e tantos outros trabalhos que, se elencados e somados às demais láureas já recebidas pelo autor, acabariam por tomar todo o espaço que aqui me foi cedido, antes mesmo que pudesse chegar à resenha de fato.

 

Sei que o próprio resenhado não se incomodará, pessoa gentilíssima que é, já que não parece ter se incomodado nem quando um entrevistador lhe perguntou como era ter estudado um só poeta durante a vida toda. Com paciência e bom-humor, Secchin lhe respondeu que, na verdade, tinha estudado muitos autores ao longo de sua vida, ainda que, de fato, tenha se dedicado principalmente à poesia de João Cabral. Pois bem, o tríptico em tela é a reunião de todos esses estudos sobre outros autores. O próprio Cabral ora ou outra também acaba aparecendo, mas, à exceção de um ensaio sobre suas facetas de poeta tradutor & traduzido, ele não é o tema da vez em nenhum dos textos que compõem os dois volumes.

 

Em “Papéis de Poesia II”, encontram-se estudos sobre poetas célebres da poesia brasileira, como Ferreira Gullar, Cecília Meirelles, Caetano Veloso, Donizete Galvão e Manuel Bandeira. Também há ensaios dedicados à poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen e de Giuseppe Ungaretti. Para além desses nomes bem conhecidos, deste e do outro lado do Atlântico, Secchin ainda se dedica a figuras quase ou de todo esquecidas de nossa poesia, como Guimarães Passos e Francisco Mangabeira. Com o mesmo cuidado que dedica a todos esses poetas, o autor também se debruça sobre parte de sua própria obra poética, discutindo os caminhos que explorou e dando a ver um pouco de seu laboratório criativo, num relato saborosíssimo e muito esclarecedor a todos e todas que se interessam em saber como funciona a poesia.





 

 

Machado e mais autores 

 

Por sua vez, “Papéis de Prosa” tem um subtítulo bastante informativo: “Machado de Assis & mais”, à semelhança do subtítulo “Drummond & mais”, que figurava no primeiro “Papéis de Poesia”, de 2014. A abordagem empregada para falar do grande romancista é a mais variada possível, indo desde a criação de um conto autoral para desdobrar as complicações do caso Bentinho-Capitu, passando pelos mecanismos tradicionais do comentário crítico à obra machadiana e chegando ainda à recuperação histórica dos primórdios da ABL, com relatos sobre a relação entre seu primeiro presidente, o próprio Machado, e os escritores que apadrinhou. No restante do volume, também são contemplados Álvares de Azevedo, Euclides da Cunha, Rubem Braga e Graciliano Ramos, entre outros.

 

Os dois livros incluem ainda discursos, entrevistas e uma autobiografia desautorizada. Aos “Papéis de Poesia II”, couberam os belíssimos discursos que Secchin proferiu em homenagem a outros (Lêdo Ivo, Cleonice Berardinelli, Ivan Junqueira, Gilberto Gil, Ferreira Gullar e Geraldo Carneiro). Nos “Papéis de Prosa”, por sua vez, constam os discursos de ocasião em que o próprio autor era o homenageado. Arrisco dizer que a divisão assim feita resulta em uma renovada honra a seus homenageados.

 

Em todos esses textos, de variados gêneros, o que se lê sempre é uma prosa fluente, clara e bela, em que as três facetas principais de Secchin se unem: o poeta, o crítico e o professor. O poeta trabalha para dar sabor à escrita, que por vezes chega a se configurar quase como uma prosa poética, arriscando jogos de linguagem e um humor que daria inveja a Oswald de Andrade. O crítico confere base sólidas ao texto, tanto pelo estudo minucioso das obras em suas características formais quanto pelo comentário preciso a respeito dos aspectos históricos que são importantes (e muitas vezes divertidíssimos) de serem lembrados. Como guia desses dois impulsos, surge sempre o professor, que não permite nem que o poeta se torne excessivo em seu virtuosismo linguístico nem que o crítico caminhe mais rápido do que podemos acompanhá-lo pelas veredas dos raciocínios.





 

É certamente um equilíbrio difícil de ser alcançado, mas Secchin o faz com a naturalidade de quem tem dedicado uma vida inteira ao amor pela literatura, com uma paixão que, como já bem notou Antonio Cicero, é “altamente contagiante”.

 

Leonardo Antunes é poeta e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul 

 

Trecho
“Memórias da Semana de 22”

 

“Uma narrativa costuma apresentar protagonistas, antagonistas e coadjuvantes. E, na história da literatura brasileira, nenhum evento foi tão propício à criação de personagens quanto a Semana de Arte Moderna de 22. Não só por ser considerada, com ou sem exagero, como uma espécie de refundação da literatura do Brasil, quanto pelo caráter coletivo de que se revestiu.

 

À diferença dos movimentos anteriores – romantismo, parnasianismo, simbolismo -, o modernismo dispõe de um grandioso e específico acontecimento público para chamar de seu. Ora, exatamente por essa dimensão coletiva, não apenas pelo número de participantes, mas também pela congregação de um colegiado de artes – literatura, música, pintura, arquitetura, escultura -, as versões se acrescentam, se justapõem, se contradizem, a ponto de podermos dizer que parece ter havido diversas Semanas eventualmente até conflitantes abrigadas numa só Semana, a acreditarmos no que sobre ela disseram seus antagonistas, antagonistas e coadjuvantes.”

(De “Papéis de prosa: Machado & mais”)

 

“Papéis de prosa: Machado & mais”

 

 

 

“Papéis de poesia II”